sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Artigo: Concurso de crimes de menor potencial ofensivo e permanência do feito no juizado especial criminal

Com a edição da Lei 11.313/2006 restou firmado que, ... na reunião de processos, perante o juízo comum (...), decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência, observar-se-ão os institutos da transação penal e da composição dos danos civis ... Ou seja, passou a ser Lei o direito do acusado pela prática de crime de menor potencial ofensivo processado no Juízo Comum – independente do motivo, se por não ter sido localizado para a citação pessoal ou se em razão de conexão ou continência – ter aplicado em seu favor as benesses da Lei 9099/95.

Antes desta regulamentação, talvez pela redação original do artigo 66, parágrafo único, da Lei 9099/95, campeava o entendimento de não ter espaço os benefícios e o rito da Lei 9099/95, em caso de processo no Juízo Comum dos crimes de menor potencial ofensivo.

Art. 66. A citação será pessoal e far-se-á no próprio Juizado, sempre que possível ou por mandado.

Parágrafo Único. Não encontrando o acusado para ser citado, o juiz encaminhará as peças existentes ao Juízo comum para adoção do procedimento previsto em lei. (sem destaque no original)

Como os procedimentos previstos para o trâmite dos processos no Juízo Comum – ordinário e sumário – não contavam com os institutos da transação e da composição dos danos civis, estes não eram aplicados no processo ao acusado que, isolada ou juntamente com outro crime, respondesse, também, por crime de menor potencial ofensivo.

Ressalte-se, por fim, que em razão de ter sido o paciente denunciado também por crimes que se processam pelo rito ordinário do Código de Processo Penal, não prevalece a competência do Juizado Especial Criminal para processar e julgar a infração ao art. 16, da Lei n. 6.368/76, visto que "havendo conexão entre crimes da competência do Juizado Especial e do Juízo Penal Comum, prevalece a competência deste último" (enunciado criminal n. 10, aprovado pelo VII Encontro de Coordenadores de Juizados Especiais do Brasil)." (Ap. Crim. n. 00.007873-5, de Urubici. Rel. Des. Álvaro Wandelli, j. em 29/08/2000), não havendo, portanto, falar-se em direito ao benefício da transação penal ou qualquer outro previsto pela Lei n. 9.099/95.[2]

Louváveis exceções reconheciam o direito ao acusado destes benefícios, da composição dos danos civis e da transação, em nome do princípio da aplicação da norma mais benéfica.

Sendo assim, numa leitura simplista, de que o processo e julgamento do crime de menor potencial ofensivo, no Juízo comum, importariam na adoção do procedimento previsto em lei – afastando as disposições da Lei 9099/95 – passou-se a adotar de modo irrestrito o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça. Porque, de uma forma ou de outra, os crimes submetidos ao Juízo Comum seriam regidos pelo procedimento comum !!!

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ARTS. 330, 329 E 147 DO CÓDIGO

PENAL. CONCURSO MATERIAL. COMPETÊNCIA.

No caso de concurso de crimes, a pena considerada para fins de fixação da competência do Juizado Especial Criminal será o resultado da soma, no caso de concurso material, ou a exasperação, na hipótese de concurso formal ou crime continuado, das penas máximas cominadas ao delitos. Com efeito, se desse somatório resultar um apenamento superior a 02 (dois) anos, fica afastada a competência do Juizado Especial (Precedentes do Pretório Excelso e do STJ). (sem destaque no original)

Ocorre que, com a Lei 11.313/2006, especialmente no caso de concurso de crimes de menor potencial ofensivo, a aplicação indiscriminada do entendimento jurisprudencial, acarreta (a) ignorar a aplicação da norma mais benéfica ao acusado, (b) leva ao esvaziamento indevido da competência do Juizado Especial e, por conseqüência, (c) passa ao Juízo Comum a tarefa de aplicar os benefícios da Lei 9099/95 aos acusados, podendo criar situações incompatíveis, se não, teratológicas.

Vejamos, não é incomum no atendimento da ocorrência de um crime de ameaça, no mesmo contexto, ser praticado o crime de desacato contra os policiais que atenderam a ocorrência (concurso material). Há conexão que justifique o deslocamento para o Juízo comum ? Talvez, mas rara e não obrigatoriamente, seja o caso de conexão instrumental e probatória.

Se o deslocamento de competência se dá, é por conta, tão-somente, do concurso de crimes, o que de fato existe (artigo 69 do C.P.). Nesses casos, somadas as penas, estas ultrapassam 02 anos; recebendo e processando o feito, o Juízo Comum corre o risco de se tornar uma “filial” do Juizado Especial Criminal, porque, obrigatoriamente, serão aplicados os institutos da transação penal e da composição dos danos civis!!! E o que disto pode advir ?

Uma situação teratológica, na qual, depois de aplicado um instituto da Lei 9099/95, não se terá mais competência para processamento do crime residual, que carecerá de oferecimento da denúncia.

Tome-se a hipótese da prática de um crime de ameaça[3] em concurso material com o crime de desacato[4], os quais, somadas as penas, excede ao limite do artigo 61 da Lei 9099/95 (dois anos).

Numa aplicação mecânica do precedente do STJ, recebido o termo circunstanciado no Juizado Especial Criminal, este se daria por incompetente (em razão da soma das penas) e encaminharia o procedimento ao Juízo Comum.

Neste, em fazendo jus o acusado do instituto de transação, obrigatoriamente irá aplicar, decerto que com relação à ameaça – o crime apenado mais brandamente. Que restará ? O crime de desacato. Como já houve transação em benefício do acusado, no crime de ameaça, a seqüência lógica seria o oferecimento da denúncia, pelo crime de desacato, com proposta de suspensão do processo (artigo 89, Lei 9099/95).

Pergunta-se: seria o Juízo Comum competente para receber a denúncia tão somente com relação ao crime de desacato ? Pensamos que não !

A Constituição Federal, no artigo 98, I, CF previu a criação dos juizados especiais (...) competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de (...) infrações penais de menor potencial ofensivo (...) nas hipóteses previstas em lei ... (sem destaque no original)

Veio a Lei 9099/95, com a alteração da Lei 10.259/2001, e disse no artigo 61 que ... consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a Lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos,cumulada ou não com multa (sem destaque no original).

A lei que dispõe sobre os Juizados Cíveis e Criminais e dá outras providências (a 9099/95) fixou a pena máxima dos crimes a serem julgados no Juizado Especial Criminal e não excepcionou, em nenhum de seus artigos, a possibilidade de deslocamento de competência (que é constitucional) pelo fato de serem cometidos em concurso.

Então, ao aceitar sem questionamento a posição anterior à Lei 11.313/2006, do Superior Tribunal de Justiça quanto ao deslocamento da competência ao Juízo Comum em caso de concurso de crimes de menor potencial ofensivo, estar-se-á criando numa situação de crise, na qual, depois de aplicado um instituto da Lei 9099/95, como no exemplo acima, não se terá mais competência para processamento do crime residual (desacato), que demandará de oferecimento da denúncia.

Tem-se, numa interpretação sistemática da Lei com o advento da Lei 11.313/2006 que, em caso de concurso de crimes, não é o resultado puro e simples da soma das infrações que determinará o deslocamento para a Justiça comum[5].

Em se tratando de concurso de crimes de menor potencial ofensivo no Juizado Especial Criminal, de início, é de se ver se tem cabimento a aplicação dos institutos da transação ou da composição dos danos civis. Em caso positivo, analisar a situação do(s) crime(s) restante(s), se beneficiado, igualmente, com a alguma disposição da Lei 9099/95, como a suspensão do processo, p ex.

Aqui, faz-se necessária uma observação. Caberá a suspensão do processo até mesmo em mais de um crime no mesmo feito, desde que a soma das penas mínimas não ultrapasse a 01 ano. Este entendimento está sumulado pelo STJ – Súmula 243[6]. Ou seja, não obrigatoriamente o acusado deverá sofrer o ônus de todo o processo apenas porque praticou mais de um crime de menor potencial ofensivo. Desde que a soma das penas mínimas não ultrapasse a um ano, não sendo o caso de transação, remanesce a possibilidade da suspensão nos termos do artigo 89 da Lei 9099/95.

Uma hipótese: caso, no mesmo processo se tenha a prática dos crimes de lesão corporal leve (detenção, de 03 meses a 01 ano), dos crimes de ameaça (detenção, de 1 a 6 meses ou multa) e desacato (detenção, de 6 meses a 2 anos e multa), cometidos por uma só pessoa, em concurso material, nada obsta, em nosso entender, à luz do disposto na Lei 11.313/2006, o processamento no Juizado Especial Criminal.

Pode ocorrer: (1) composição dos danos civis com relação ao crime do artigo 129, caput, do Código Penal, excluindo a possibilidade de representação e remanescendo (2) o crime de ameaça, no qual seria possível a transação e por fim (3) o crime de desacato, de menor potencial ofensivo, onde caberia a suspensão.

Mesmo que não houvesse composição dos danos civis, e fosse mantida a representação para o crime do artigo 129, caput[7], do CP, (a) possível transacionar quanto à ameaça e (b) como a soma das penas mínimas dos crimes de lesão corporal leve e desacato não chegam a 01 ano, incide o artigo 89 da Lei 9099/95.

Ainda, não se pode olvidar que o Juizado Especial Criminal tem um rito processual específico (artigo 78 a 81 da Lei 9099/95). Então, não se vê óbice legal em um mesmo procedimento, operar-se a audiência do artigo 74, seguida daquela do artigo 76, se for o caso, com oferecimento da denúncia por crime residual.

Como se vê, a aplicação indiscriminada da remessa de autos do Juizado Especial Criminal para o Juízo Comum, sem a análise das possibilidades no caso concreto, pode levar à uma usurpação (forçada) de competência deste último que, instado a ficar com o feito, feita a transação no crime menor é obrigado a processar, pelo rito sumaríssimo (artigo 394, § 3º, CPP – com a inovação da Lei 11.719/2008) reservado ao Juizado Especial Criminal, uma infração que não é da sua competência.

Mais estranho seria devolver os autos ao Juizado Especial, depois de operada a transação, para processo e julgamento do crime de menor potencial ofensivo remanescente (!?!).

Conclui-se, portanto, que no caso de concurso de crimes de menor potencial ofensivo, com a edição da Lei 11.313/2006, o feito não deve ser encaminhado ao Juízo Comum pelo mero somatório das penas.

É indeclinável que se faça a fundamentação do porquê não se pode aplicar os institutos devidos no Juizado Especial Criminal, de forma escalonada como prevê a Lei, crime a crime. Afora os casos previstos na própria Lei 9099/95, somente em casos excepcionais de concurso de crimes de menor potencial ofensivo com crime de médio, grave ofensividade ou crime hediondo[8], pode-se determinar o deslocamento da competência.

[1] Promotora de Justiça no Estado do Paraná, titular da 2ª Promotoria de Justiça da comarca de Ponta Grossa; Especialista em Direito Contemporâneo e suas Instituições Fundamentais pela PUC-PR e em Direito Penal Econômico pela Universidad Castilla-La Mancha, Espanha e Mestranda em Direito pela PUC-PR.

[2] Extraído do corpo do acórdão – TJSC – HC 2006.001684-3, da Capital; Des. Relator: José Gaspar Rubick; Data da Decisão: 14/02/2006 – EMENTA – HABEAS CORPUS - PRISÃO EM FLAGRANTE POR EXPOSIÇÃO DA VIDA OU SAÚDE DE OUTREM A PERIGO, PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO, DISPARO DE ARMA DE FOGO E PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE PARA USO PRÓPRIO - ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO PARA A DEFLAGRAÇÃO DA AÇÃO PENAL - EVENTUAL IRREGULARIDADE SUPERADA PELO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA - ANÁLISE APROFUNDADA DA PROVA DA MATERIALIDADE E DA AUTORIA DO CRIME INCABÍVEL NA ESTREITA VIA MANDAMENTAL - INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO CONEXA A CRIMES PROCESSADOS PELO RITO ORDINÁRIO - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM - CONSTRANGIMENTO ILEGAL INOCORRENTE - ORDEM DENEGADA. (disponível no site www.tj.sc.gov.br, consultado em 18.08.2008 – sem grifo no original).

[34] Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

[4] Art. 331 - Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.

[5] Pode ocorrer o deslocamento da competência, p ex., no caso de complexidade da situação fático-jurídica nos termos do artigo 77, § 2º, da Lei 9099/95. Mas, mesmo assim, entende-se, a remessa dos autos ao Juízo Comum há de ser fundamentada, sob pena de, à vista da necessidade de realização de qualquer prova ou diligência, ser considerado complexo o caso e esvaziar o Juizado Especial Criminal.

[6] STJ Súmula nº 243 - 11/12/2000 - DJ 05.02.2001

Suspensão do Processo - Concurso Material ou Formal ou Continuidade Delitiva - Somatório ou Incidência de Majorante - Limite Aplicável

O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.

[7] Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

[8] Exemplo clássico e corriqueiro na lide forense é o concurso de crime de compra de droga para uso próprio com a venda da mesma substância, implicando em conexão instrumental ou probatória. Oferecida a denúncia contra o fornecedor da droga, arrola-se o usuário como testemunha e, na cota de oferecimento da denúncia, requer designação de audiência para os fins do artigo 76 da Lei 9099/95, à vista do disposto na Lei 11.313/2006.


Suzane Maria Carvalho do Prado Patricio, Promotora de Justiça/PR, Titular da 2ª Promotoria de Justiça da comarca de Ponta Grossa; Especialista em Direito Contemporâneo e suas Instituições Fundamentais pela PUC-PR e em Direito Penal Econômico pela Universidad Castilla-La Mancha, Espanha; Mestranda em Direito pela PUC-PR.

PATRICIO, Suzane Maria Carvalho do Prado. Concurso de crimes de menor potencial ofensivo e permanência do feito no juizado especial criminal. Disponível em: www.ibccrim.org.br. Acesso em: 18 nov. 2008.

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