Deve ser permanente o combate e a denúncia de todas as formas de opressão e de violência contra as mulheres. Essa ação não se esgota em situações presentes ou na prevenção de ocorrências futuras. Há também a necessidade de que igualmente denunciemos formas históricas que comprovam a tirania e a brutalidade sofridas. Ainda que se admita a armadilha historiográfica da leitura presenteísta de um mundo pretérito que não é nosso, e do qual não compartilhamos enquanto experiência existencial, a variedade de tristes exemplos ilustra uma condição historicamente humilhante, em desfavor das mulheres, cuja reversão é obrigação de nossos tempos.
Ilustro o argumento com fragmento do Direito criminal português da era colonial, contido no Livro V das Ordenações Filipinas, cuja vigência entre nós, brasileiros, deu-se até o advento do Código Criminal do Império, aprovado em 1830 e vigente a partir de sua publicação, em 1831. A confecção de um Código Criminal era determinação da Constituição de 1824.
No Livro V das Ordenações, espelha-se todo o despotismo e a beatice[1] da cultura portuguesa arcaica que herdamos, na qual a misoginia e o androcentrismo eram enfáticos e assumidos. Constata-se no modelo um conjunto normativo que indica algum “espírito das instituições”, identificado pela união entre Estado e igreja, a exemplo do Santo Ofício, que era uma instituição estatal: o rei designava o inquisidor[2].
Fórmulas inquisitórias de obtenção de uma verdade previamente desejada eram comuns[3]; delações premiadas eram recorrentes: ao delator cabia parte das multas cobradas, quando componentes das horríveis penas que então se aplicavam. Incentivava-se o dedodurismo, que era bem recompensado, mesmo quando inventado. Realizava-se a imagem de Cecília Meireles, para quem, a propósito dos delatores da inconfidência, era tábua de salvação dizer-se tudo o que fosse preciso, tudo quanto inocentasse: a verdade era uma conveniência[4]. A delação, nos crimes contra a moral da época, era fórmula de expiação de pecados e de prevenção de reprimendas.
O Título XXX do Livro V das Ordenações tratava das barregãs dos clérigos, isto é, das amantes e amancebadas com eclesiásticos. A regra fulminava mancebas de religiosos. O tipo criminal exigia que o eclesiástico fosse visto por seis meses contínuos, por sete ou oito vezes, frequentando a casa da mulher que a comunidade então entendia como amante do clérigo. A mulher era sentenciada a pagar uma pena de 2 mil réis, bem como era degredada, por um ano, para qualquer ponto em Portugal, desde que fora dos limites da cidade onde o crime (ou o pecado) ocorrera.
Se reincidisse, pagaria novamente 2 mil réis, e o degredo, por igual período, um ano, era fixado para fora do bispado. Além do que, a mulher seria açoitada em praça pública. Uma segunda reincidência teria como pena o degredo perpétuo, para o Brasil. Provado que a mulher era “manceba teúda e manteúda notoriamente” na casa do eclesiástico, apenava-se com o açoite público, com o degredo para fora do bispado e com o pagamento de uma pena pecuniária, livremente fixada pelo julgador. No título XXXI do mesmo Livro V das Ordenações Filipinas, determinava-se que frades encontrados na companhia de mulheres deveriam ser entregues aos respectivos superiores; não poderiam ser presos, em nenhuma hipótese.
A leitura desse inusitado tipo penal nos revela algo substancialmente suspeito. As penas, isto é, se a lei fora realmente aplicada, recaíam apenas sobre as mulheres e jamais sobre aqueles que incidiam nesses relacionamentos fronteiriços entre crime e pecado, no contexto do Direito da época. E porque a lei espelha culturas e mentalidades, tem-se na dramática construção normativa aqui comentada prova de que uma concepção de mundo machista excludente e discriminatória infelizmente nos persegue desde tempos imemoriais. Certamente, a valer essa digressão histórica, homens cheios de sedução e poder, porque detinham verdades metafísicas, espreitavam o holocausto de suas vítimas, açoitadas, pagando multas e diabolicamente enviadas para o degredo em terras distantes.
[1] Essa é a opinião de Batista Pereira, resgatada por Pierangeli, José Henrique, Códigos Penais do Brasil – Evolução Histórica, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 58.
[2] Nesse tema, por todos, o clássico livro de professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Barbas Homem, António Pedro, O Espírito das Instituições, Coimbra: Almedina, 2006, especialmente, quanto ao Santo Ofício, pp. 180 e ss.
[3] A Inquisição em Portugal, e o ambiente de um processo penal no qual a heresia era o guarda-roupa no qual cabia qualquer inimigo ou desafeto, foi estudada de modo ortodoxo por Herculano, Alexandre, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, Lisboa: Tavares Cardoso & Irmão, 1897.
[4] “Direi quanto for preciso, tudo quanto me inocente... Que alma tenho? Tenho corpo! E o medo agarrou-me o peito... E o medo me envolve e obriga... Todo coberto de medo, juro, minto, afirmo, assino. Condeno. (Mas estou salvo!) Para mim, só é verdade aquilo que me convém.” (Cecília Meireles – Romanceiro da Inconfidência)
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Revista Consultor Jurídico, 12 de março de 2017.
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