O procurador-geral dos EUA, Eric Holder Jr., anunciou nesta segunda-feira (12/8) a primeira medida do que poderá ser uma reviravolta histórica na política de Justiça criminal dos Estados Unidos. Em discurso no encontro anual da American Bar Association (ABA, a ordem dos advogados dos EUA), em São Francisco, ele disse que vai ordenar aos promotores que omitam, em suas denúncias, a quantidade de droga apreendida, em casos menos sérios. Com isso, será possível "contornar" as leis federais que impõem longas sentenças mínimas, obrigatórias, para crimes relacionados a drogas.
Historicamente, os EUA sempre aprovaram medidas para aumentar as penas, como mostra umareportagem do The Economist, republicada pela ConJur — nunca o contrário. De acordo com o jornal New York Times, a agência Reuters e outras publicações, o governo Obama quer, agora, reverter o quadro do sistema prisional dos EUA, que tem hoje a maior população carcerária do mundo.
O país tem apenas 5% da população mundial, mas encarcera 25% da população carcerária do mundo. São mais de 2,3 milhões de presos, 40% acima da capacidade de suas prisões. Para cada 100 mil americanos, 716 estão na cadeia. Isso se compara a 479 na Rússia; 284 no Irã; 274 no Brasil; 209 no México; 149 na Inglaterra e País de Gales; 121 na China; 114 no Canadá; e 80 na Alemanha, de acordo com estatísticas do Centro Internacional para assunto prisionais.
Por isso, o governo Obama quer soltar presos e prender menos réus — ou mantê-los por menos tempo nas prisões. A superlotação das prisões e cadeias públicas começará com um esforço para libertar presos idosos ou doentes que não mais oferecem perigo à sociedade. Para prender menos e por menos tempo, o governo quer que a Justiça, por iniciativa dos próprios promotores, orientados pelo Departamento de Justiça, parem de jogar pesado contra acusados de tráfico de drogas cujos crimes não têm os costumeiros agravantes.
Em um memorando, Holder invoca seu poder discricionário como acusador, para ordenar a todos promotores do país que não mencionem, na acusação, a quantidade de drogas apreendidas, quando for possível enquadrar os réus nos seguintes critérios: sua conduta não envolve violência; o tráfico não envolve o uso de armas nem a venda a menores; eles não são líderes de uma organização criminosa; não têm ligação significativa com grandes gangues ou cartéis; não têm um antecedente criminal considerável.
Qualquer quantidade acima de dez gramas, se mencionada, implica sentença mínima de dez anos, pela atual legislação.
Uma série de medidas administrativas e legislativas estão na pauta para mudar o sistema. Holder disse aos participantes do encontro da ABA que o governo quer um sistema judicial mais justo, com uma política menos custosa em termos morais, humanos e econômicos. "Há muitos americanos em muitas prisões, por muito tempo demais, por muito pouco", ele declarou. Mas o motivo econômico é certamente o mais convincente. Só em 2010, os EUA gastaram mais de US$ 80 bilhões para manter seu sistema prisional, ele informou. "O contribuinte não pode continuar arcando com toda essa despesa", afirmou.
Com esse argumento econômico-financeiro, o governo Obama, democrata, já conseguiu convencer parte dos parlamentares republicanos, incluindo representantes do "Tea Party", o braço ultraconservador do Partido, para promover outras mudanças administrativas e algumas legislativas. Os senadores republicanos Rand Paul, de Kentuchy, e Mike Lee, de Utah, que estão entre os líderes do movimento "Tea Party, já manifestaram ao governo sua intenção de se somar aos democratas para promover as medidas legislativas necessárias para mudar o quadro.
A primeira medida legislativa será flexibilizar — ou mesmo eliminar — a legislação de sentenças mínimas obrigatórias. Essa é uma legislação que desagrada os juízes e, de uma forma geral, boa parte da comunidade jurídica do país. Ela retira dos juízes a capacidade de julgar a gravidade de um crime, bem como levar em conta circunstâncias atenuantes e mesmo pesar os fatos em um julgamento. Uma vez que o júri determina que o veredicto é "culpado", o juiz não tem mais nada a fazer, a não ser aplicar a sentença mínima.
Por exemplo, na Flórida, uma mulher foi condenada a 20 anos de prisão por dar um tiro de advertência. Os jurados não podem ser informados, durante o julgamento, que o veredicto de "culpado" pode obrigar o juiz a fixar a pena mínima. Por isso, consideraram Marissa Alexander, de 31 anos, mãe de três filhos, culpada de um crime menor — o de colocar em risco a vida das crianças, quando ela atirou contra a parede, porque seu ex-marido a ameaçava, e o tiro ricocheteou para o teto — poderia ter ricocheteado para baixo e acertado uma criança. O juiz, por sua vez, não pode considerar a história, nem as circunstâncias: uma vez culpada por um crime, com o uso de arma, a ré foi sentenciada a 20 anos.
Antes de o Congresso discutir a reformulação da lei, o procurador-geral e membros do governo tentarão convencer a Comissão de Sentenças dos EUA a garantir maior flexibilidade aos juízes para fazer os que os juízes fazem: julgar e sentenciar de acordo com os fatos, as provas e as circunstâncias atenuantes ou agravantes. Sem ficaram atados à sentença mínima.
O governo terá de trabalhar também com os estados, para tentar modificar leis estaduais consideradas draconianas. Por exemplo, a Califórnia tem uma lei chamada "Three strikes, you’re out", uma expressão tirada do beisebol (quando o rebatedor erra três bolas, está fora), que em tradução livre significa "três delitos e você está fora da sociedade". A lei prevê pena de prisão perpétua para pessoas que cometem três crimes, mesmo que sejam leves.
As condenações podem ser absurdas. No Texas, um homem foi condenado a 80 anos de prisão, quando foi condenado por comprar, em um cinema, dois cachorros-quentes, duas cocas-colas e um saquinho de pipoca com uma nota falsa de US$ 20. Os jurados foram autorizados a considerar os antecedentes criminais do homem, então rotulado de "criminoso profissional". Ele teria roubado um cortador de grama, um veículo off-road e uma carreta de 18 rodas, além de fraudar um banco, carregar uma arma e cigarros falsificados.
Mas foram o Texas e também Arkansas os dois primeiros estados a aprovar medidas administrativas e legislativas para reduzir a população carcerária de seus territórios. Implantaram programas de tratamentos de drogas como alternativa ao encarceramento, passaram a libertar prisioneiros idosos com bom comportamento e expandiram os programas de treinamento profissional e de ressocialização. O governo federal vai copiar esses programas, conforme anunciou Holder.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 13 de agosto de 2013
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