sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Crime antecedente fixa competência do crime de lavagem

A Lei 12.683/2012, que alterou alguns aspectos da Lei 9.613/1998 (Lavagem de Dinheiro), objetivando torná-la mais eficiente em relação à persecução penal dos respectivos crimes, não modificou o tema sobre a competência. Segundo o teor do artigo 2°, inciso III da Lei:
São da competência da Justiça Federal:
a) Quando praticados contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas;
b) Quando o crime antecedente for de competência da Justiça Federal;
A conclusão que ressalta do dispositivo é no sentido de que, pela regra, a competência para processar e julgar os crimes de lavagem de dinheiro é da Justiça Estadual, sendo os casos da Justiça Federal, apenas os expressamente referidos no dispositivo com enumeração e referência taxativas.
Há entendimento, entretanto, que não se afigura o mais correto, no sentido de que as hipóteses de competência federal para julgamento de crimes de lavagem de dinheiro não se esgotariam nesse rol, interpretando-se que o artigo 2º, inciso III, da Lei teria “deixado de abordar expressamente a questão da lavagem de dinheiro transnacional, sem se considerar o delito antecedente e tampouco a origem dos recursos lavados”. Sustenta-se que esta seria uma terceira hipótese de fixação da competência federal, quando valores são enviados para o exterior, aplicando-se o artigo 109 III da CF que dá competência a juizes federais para as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional.
Esse raciocínio, data venia, é inaplicável.
No caso de crimes de lavagem de dinheiro, o delito antecedente e o próprio delito consequente (de lavagem de dinheiro) são interdependentes e indissociáveis. Não há hipótese de separação processual-legal ou prática das infrações penais no aspecto da competência para julgá-los.
Em primeiro lugar é necessário considerar que o artigo 109 III da Constituição Federal, utilizado para a fundamentação daquele entendimento, não se aplica ao caso de crimes de lavagem de dinheiro nestas condições — com remessa e depósitos no exterior.
O dispositivo constitucional estabelece:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
[...]
III - as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional; 
A melhor hermenêutica decorre não da interpretação literal da Lei ou do dispositivo constitucional, mas da sua interpretação lógica e sistemática. Não é possível, então, apenas enxergar o teor do inciso do artigo 109 III para se concluir de forma correta. Exige-se, para a correta interpretação, a análise de todo um contexto, processual-legal e prático.
Em todo caso, ainda que assim fosse, desde logo a sua análise literal, por si só, já afastaria a interpretação da extensão do alcance da competência federal.
Isso porque o dispositivo refere “Tratado” ou “Contrato” da União [...]
Mas a Lei 12.683/2012 (9.613/98) não advém de Tratado ou Contrato, mas da “Convenção” de Viena (1988), subscrita/ratificada pelo Brasil[1]. São conceitos diversos que não se confundem. Além disso, quando os valores têm destino em outros países e offshores, a facilitação de intercâmbio de informações, documentos e recuperação de ativos, são pautados por “Acordos” de cooperação em matéria penal. Os “tratados” e os “contratos” têm outra natureza jurídica completamente diversa. Vejamos[2]:
Tratado: A expressão Tratado foi escolhida pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, como termo para designar, genericamente, um acordo internacional. Denomina-se tratado o ato bilateral ou multilateral ao qual se deseja atribuir especial relevância política. Nessa categoria se destacam, por exemplo, os tratados de paz e amizade, o Tratado da Bacia do Prata, o Tratado de Cooperação Amazônica, o Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, o Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares.
Convenção: Num nível similar de formalidade, costuma ser empregado o termo Convenção para designar atos multilaterais, oriundos de conferências internacionais e que versem assunto de interesse geral, como por exemplo, as convenções de Viena sobre relações diplomáticas, relações consulares e direito dos tratados; as convenções sobre aviação civil, sobre segurança no mar, sobre questões trabalhistas. É um tipo de instrumento internacional destinado em geral a estabelecer normas para o comportamento dos Estados em uma gama cada vez mais ampla de setores. No entanto, existem algumas, poucas é verdade, Convenções bilaterais, como a Convenção destinada a evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal celebrada com a Argentina (1980) e a Convenção sobre Assistência Judiciária Gratuita celebrada com a Bélgica (1955).
Acordo: O Brasil tem feito amplo uso desse termo em suas negociações bilaterais de natureza política, econômica, comercial, cultural, científica e técnica. Acordo é expressão de uso livre e de alta incidência na prática internacional, embora alguns juristas entendam por acordo os atos internacionais com reduzido número de participantes e importância relativa. No entanto, um dos mais notórios e importantes tratados multilaterais foi assim denominado: Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT).
O dispositivo Constitucional não se aplica, então e desde logo, a “Convenções” e “Acordos” subscritos pelo Brasil no caso de Lavagem de Dinheiro, e os “Tratados”, previstos, estes sim, no dispositivo Constitucional, tem cunho mais específico, o político, e não jurídico-processual.
Ademais, a competência da Justiça Federal nos referidos “Tratados”, é restrita às disposições do próprio Tratado, isto é, à sua forma e seu mérito, e não às questões práticas dele decorrentes, isto é, a aplicação prática do seu conteúdo.
Nesse sentido, inclusive, interpretando o dispositivo Constitucional, já se pronunciou recentemente o STF:
Processo: RE 475616 PE
Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA
Julgamento: 19/02/2010
Publicação: DJe-042 DIVULG 08/03/2010 PUBLIC 09/03/2010
Parte(s): COMÉRCIO E REPRESENTAÇÕES LACERDA LTDA RAIMUNDO DE SOUZA MEDEIROS JÚNIOR UNIÃO PROCURADOR-GERAL DA FAZENDA NACIONAL
A Justiça Federal é incompetente para dirimir controvérsias envolvendo o ICMS de bacalhau importado proveniente de país signatário do GATT, uma vez que somente se inserem em sua competência as disposições do próprio tratado. [...] Ao caso em exame não se aplica o dispositivo supramencionado, isto porque a discussão posta pelas impetrantes/apeladas não diz respeito ao mérito do tratado internacional referido pelas mesmas.
Por outro lado, a Lei 12.683/2012, que tramitou longamente pelas Casas do Congresso Nacional, podendo estabelecer expressamente esta circunstância de fixação da competência federal em casos de remessa de valores para o exterior, não o fez, sendo defeso concluir simplesmente que “deveria ter previsto”. Não houve previsão legal expressa, porque o legislador efetivamente assim não desejou, mesmo sabendo que há inúmeros casos de lavagem de dinheiro com remessas para o exterior, especialmente em offshores.
Mas, não obstante, como dizíamos, a interpretação lógica e sistemática também não permite incluir a remessa de dinheiro para o exterior como sendo de hipótese — não prevista na Lei — da competência da Justiça Federal.
A lógica dos crimes de lavagem de dinheiro, consiste na persecução penal e punição de quem obteve “bens, direitos ou valores” através (“provenientes”) da prática de infração penal, e pretende ocultá-los para que tenham aparência de origem lícita. Então, obviamente, a infração penal antecedente não pode, de forma alguma, dissociar-se do próprio delito de lavagem, o que o tornaria uma espécie de “delito órfão”. Ambas as ações criminosas são, por assim dizer, interdependentes.
Pela regra geral da Lei, a regra lógica, o crime antecedente é o que fixa a competência do crime de lavagem, e não o contrário. Embora as infrações penais de lavagem de dinheiro “independam do processo e julgamento das infrações penais antecedentes”[3], eles (processo e julgamento) podem existir. E, se existirem, deverão ter o mesmo foro competente, e não foros materiais distintos. Tanto isso é correto, que a segunda parte do artigo 2° II da Lei 9.613/98 estabelece:
II — independem do processo e julgamento das infrações penais antecedentes, ainda que praticados em outro país, cabendo ao juiz competente para os crimes previstos nesta Lei a decisão sobre a unidade de processo e julgamento;  (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012).
Assim, ao juiz competente para julgamento dos crimes de lavagem de dinheiro caberá decidir sobre unidade de proccesso e julgamento — também do crime antecedente, deste originário. É reunião de processos em unidade que permite estabilidade de relação jurídico-penal ao acusado, mas também à sociedade, representada pelo Ministério Público. E por outro lado, como poderia o juiz competente, federal, p. ex., decidir sobre a unidade com o processo do crime antecedente, de juiz competente estadual? Como se aplicaria este dispositivo? Note-se que esta parte final do dispositivo foi inserida pela Lei 12.683/2012, que significa, mais uma vez, que não se trata de mero “esquecimento” do legislador para casos de lavagem com remessas transnacionais de dinheiro, mas simplesmente afirmação da competência, mesmo nestes casos, regulada pela competência material do crime antecedente.
Mas não é só. Aquela interpretação inviabiliza a sua própria operacionalização prática. Tanto assim que se a ação que julgar o crime antecedente nos termos do artigo 386 incisos I (estar provada a inexistência do fato), III (não constituir o fato infração penal), ou IV (estar provado que o réu não concorreu para a infração penal), do Código de Processo Penal, inexistirá, simplesmente, a ação penal pelo crime de lavagem de dinheiro. E então, como seria possível alguém ser processado por um delito na esfera estadual, e pelo consequente, dele dependente, na esfera federal de jurisdição? Sendo inafastável a conexão entre as infrações penais, como se resolveria a questão do artigo 79 do CPP (A conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento) [...]?
Direito é bom senso. E se a eventual investigação do crime antecedente, na esfera estadual for arquivada, estando o processo por lavagem de dinheiro na esfera federal já em andamento, ou pior, sentenciado? Sem a viabilidade de reunião dos processos, que tramitariam em esferas diversas de jurisdição, se poderia atingir o absurdo de alguém estar cumprindo pena por condenação em crime de lavagem de dinheiro na esfera federal, e ser o delito, dele originário, arquivado em inquérito policial ou mesmo absolvido por inexistência do fato na esfera estadual...
Mas não é só. Deverá o Ministério Público Federal ficar “nas mãos”, ou melhor, na total dependência da atuação de dominus litis e opinio delicti do Ministério Público Estadual, ou no aguardo da conclusão de inquérito policial em trâmite na Polícia Civil estadual em relação a esta infração penal antecedente? Suponha-se que o agente público é acusado de receber “propina” (jurisdição estadual) e envia o dinheiro para uma offshore. Serão dois processos criminais em esferas distintas de jurisdição independentes, em juízos independentes, com Tribunais Ad Quem também independentes, sem qualquer possibilidade de que um aguarde o deslinde do outro e, pior de tudo, impedindo e inviabilizando direitos constitucionais do acusado, como a ampla defesa e o contraditório, que responderá por processos distintos, mas interligados, em esferas distintas de jurisdição...Suponha-se que, em grau de recurso, o TRF confirme condenação por delito de lavagem de dinheiro, enquanto o TJ o absolva por inexistência do crime antecedente...Como a condenação não pode, simplesmente, “sumir”, ele deveria recorrer ao STJ, mas...se este Tribunal não pode rever o mérito da causa, como se resolveria esta questão processual, e muitas outras? As possibilidades de soluções jurisdicionais contraditoriamente insanáveis seriam muitas, abalando a estrutura das relações jurídico-penais e, pior de tudo, os direitos e garantias individuais constitucionais do cidadão “duplamente processado”, em esferas jurisdicionais distintas, mas por crimes dependentes e interligados, causando insegurança e instabilidade jurídica ao acusado.
Enfim, não se afigura correta a construção da hipótese de que alguém seja processado por um crime de lavagem de dinheiro na esfera federal e, pela sua infração penal antecedente, na esfera diversa, a estadual. Não há como promover processos naturalmente conexos em esferas distintas de jurisdição, seja pela interpretação literal, seja pela lógica ou sistemática jurídica. Se isso ocorrer, o resultado será a nulidade absoluta e insanável, por incompetência absoluta, nos exatos termos do artigo 564 I do Código de Processo Penal.
[1] Decreto n° 154 de 26 de junho de 1991
[2] Fonte: DAI - Divisão de Atos Internacionais - Ministério das Relações Exteriores/Brasília-DF
[3] Cf. art. 2° II da Lei 9.613/98.
Marcelo Batlouni Mendroni é promotor de Justiça em SP tem pós-doutorado pela Università di Bologna (Italia) é doutor em Direito Processual pela Universidad Complutense de Madrid.

Revista Consultor Jurídico, 29 de agosto de 2013

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