Uma das frases mais utilizadas pelos
defensores das armas em todo o mundo é: “armas não matam; são pessoas que
matam”. Trata-se de formulação vazia, de natureza tautológica. Ora, no conceito
de “objeto” não está escrita a possibilidade da ação. Então é claro que quem
mata é o sujeito. Isso é também verdadeiro para o assassinato do raciocínio: o
culpado é sempre um ser que um dia pensou. O “argumento” apareceu novamente em
artigo de Dênis Rosenfield, publicado pelo Estado de S.Paulo no último dia 13 (http://migre.me/ain1K).
Para que se compreenda o quanto a frase contorna o problema ao invés de
enfrentá-lo, é preciso lembrar o conceito de letalidade. Examinemos, por
exemplo, os suicídios nos EUA: 75,5% das tentativas correspondem a casos de
intoxicação com altas dosagens de medicamentos. Neste grupo, as taxas de
sucesso – vale dizer: de morte alcançada – é de 0,4%. Já as tentativas de
suicídio com emprego de armas de fogo respondem por apenas 0,6% dos casos, mas
sua taxa de sucesso é de 78,2% (WINTEMUTE et
al, 1987). O método empregado pelo suicida faz toda a diferença. A depender
dele, as chances de alcançar o resultado morte variam milhares de vezes e é um
erro imaginar que os que tentam o suicídio terminarão por alcançá-lo
independentemente do método. A experiência vivida pelos britânicos, ao final
dos anos 50, oferece um exemplo clássico. Durante décadas, as taxas de suicídio
na Grã Bretanha estiveram muito vinculadas à intoxicação por gás de cozinha. A
substituição por gás muito menos tóxico produziu queda de 40% no número de
suicídios por este meio. O mais interessante, entretanto, foi que a taxa geral
de suicídios decresceu 20%. Ou seja, apenas a metade do grupo que usaria o
recurso tradicional migrou para outros métodos e alcançou o resultado morte
(STENGEL,1964). Desde então, sabe-se que métodos de prevenção situacional
também funcionam para a prevenção do suicídio.
A letalidade difere fortemente segundo
a natureza da arma. Se tomarmos o caso dos roubos nos EUA, por exemplo, as
“taxas de fatalidade” (proporção de crimes com resultado morte) para roubos
praticados com armas de fogo (quatro mortes/1000 casos) são três vezes maiores
do que roubos praticados com o uso de facas, dez vezes maiores do que roubos
praticados com outros tipos de armas e 20 vezes maiores do que roubos
praticados sem qualquer arma (COOK, 1987). Estudo clássico de Newton e Zimring
(1969) na cidade de Chicago mostrou que agressões físicas praticadas por
pessoas armadas produzem a morte das vítimas em 12,2% das vezes, percentual
cinco vezes mais alto do que agressões de pessoas armadas com faca. A
letalidade das armas de fogo é tão alta que elas matam mais do que ferem,
enquanto armas brancas ferem mais do que matam. Aliás, armas de fogo são tão
letais que é possível produzir com elas o resultado morte mesmo quando os
sujeitos que as empunham não desejam este resultado. O professor Dênis
certamente já ouviu falar em pessoas mortas por “bala perdida”, mas nem a
dialética hegeliana irá lhe permitir falar em vítimas de “faca perdida”.
Ao invés de enfrentar estas evidências,
o lobby das armas espalha pérolas como a que Rosenfield repete: “(se o
argumento em favor do controle de armas for aceito) então as mortes no trânsito
(..) deveriam também levar a uma campanha pelo ‘desarmamento’ dos carros,
visando à sua proibição”. Primeiro, armas de fogo possuem letalidade muito
maior que acidentes com carros. A letalidade das pessoas internadas por lesão
por projétil de arma de fogo no Brasil é igual a 8,9%, enquanto que por
acidente de trânsito é de 4,4% (PHEBO, 2005). Ora, carros foram feitos para o
transporte e a eles foram agregadas muitas outras possibilidades. Armas de fogo
foram feitas para matar. A finalidade delas é tão evidente e tão indesejável
que sequer seus proprietários anseiam pelo momento de usá-las. Exceção feita
aos casos patológicos, proprietários de armas ficariam satisfeitos se soubessem
que jamais as usarão. O fato de que um carro mal conduzido possa produzir
acidentes fez com que leis rígidas de trânsito se tornassem comuns em todo o
mundo. Os motoristas precisam estar habilitados; devem passar por exames e
demonstrar aptidão técnica e psicológica. A depender do comportamento no
trânsito são multados e perdem habilitação. Não podem dirigir após beber, nem
transitar com seus carros em qualquer lugar. Devem, ainda, pagar impostos e
taxas pela propriedade. Com estas e outras providências, o Estado procura
prevenir o uso irresponsável de veículos. Chama a atenção, entretanto, que, até
há poucos anos, fosse possível adquirir uma arma de fogo no Brasil sem nenhuma
das exigências necessárias para se dirigir um carro. O mesmo ocorre desde
sempre nos EUA.
Rosenfield cita dados sobre homicídios
nos EUA, Suíça e Brasil afirmando que os números revelam que “quanto mais
armas, menos homicídios”. A afirmação não é nova. Ela traduz exatamente a
posição da indústria das armas e, nos EUA, o mantra da National Rifle
Association que recomenda que os professores dêem aulas armados para o caso de
aparecer alguém atirando nas crianças (ocorrência trágica que, não por acaso,
já se repetiu mais de 600 vezes nos EUA). A conclusão de Rosenfield é
totalmente arbitrária, porque só é possível saber se a variável
“disponibilidade de armas de fogo” afeta as taxas de homicídio se todas as
demais variáveis forem mantidas. Por isso, só podemos chegar aproximadamente a
conclusões do tipo lidando com dois grupos tão similiares quanto possível: um
experimental (com variação na disponibilidade de armas) e outro de controle (sem
mudanças na variável “armas”). Pela mesma razão, pode-se admitir comparações
entre os EUA e a maioria dos países europeus, mas não entre qualquer um deles e
o Brasil. Além do mais, há muito que homicídios deixaram de ser um grave
problema de segurança pública nos países desenvolvidos. Entre eles, os
suicídios são muito mais relevantes. Nos EUA, a propósito, a taxa de suicídios
de jovens com menos de 15 anos com armas de fogo é 11 vezes maior do que a
média dos demais países industrializados (MILLER and HEMENWAY, 1999).
Referências
COOK, Philip J.
Robbery Violence. Journal of
Criminal Law and Criminology 78: 357-76, 1987.
MILLER, M. e
HEMENWAY, D. The Relationship Between
Firearms and Suicide: a review of the literature. Aggression and Violent
Behavior, Vol. 4, No. 1, pp. 59–75, 1999.
NEWTON, G.D e
ZIMRING, F.E. Firearms and Violence in
American Life: A Staff Report Submitted to the National Commission on the
Causes and Prevention of Violence. Washington, D.C.: National Commission on the
Causes and Prevention of Violence, 1969.
PHEBO, Luciana. Impacto da Arma de Fogo na Saúde da
População, 2005. Disponível em: http://comunidadesegura.org.br/files/active/0/vitimas_armas_impacto_saude.pdf
STENGEL, E. Suicide and Attempted Suicide.
Baltimore: Penguin, 1964.
WINTEMUTE et al. When children shoot children: 88 unintended deaths in California,
JAMA, 257(22):3107-3109, 1987.
Texto cedido pelo autor.
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