sábado, 8 de janeiro de 2011

Artigo: Dignidade sexual e liberdade de autodeterminação sexual

Por Bruno Salles Pereira Ribeiro

Uma importante mudança ocasionada pelo advento da Lei 12.015, de 2009, foi a alteração da denominação impressa no Título VI do Código Penal, passando a grafar-se “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”, em contraposição à antiga e combatida denominação de “Dos Crimes Contra o Costume”.
Em uma análise perfunctória, deve-se dar graças ao legislador que, seguindo a posição que já se encontrava amplamente defendida na doutrina(1) e aceita na jurisprudência, eliminou a designação do bem jurídico tutelado nas normas inseridas naquele título como sendo os costumes, termo carregado de um conteúdo moral e não jurídico, não deve ser objeto de atuação do Direito Penal.
Aceitando-se que a instância jurídico-penal se dispõe, exclusivamente, à defesa de bens jurídico-penais, entendendo-se esses como os interesses fundamentais à convivência e à coesão social, a tutela de valores morais, mormente em um Estado Liberal defensor de uma sociedade pluralista e igualitária, fugiria ao seu escopo de proteção.
A designação escolhida pelo legislador, malgrado a importante contribuição acima assinalada, não foi das mais felizes, devendo-se apontar que a escolha do termo “dignidade” engendra uma série de questionamentos desnecessários a respeito do conteúdo material do bem jurídico tutelado nos delitos englobados sob sua égide.
O termo “dignidade”, utilizado no Título VI do Diploma Penal, tem sua origem conceitual na idéia de “dignidade da pessoa humana”, noção que passa a nortear a maioria dos ordenamentos jurídicos ocidentais a partir da segunda metade do Século XX, mas que, no entanto, carece de uma definição precisa e satisfatória a orientar a aplicação da norma penal, função a qual é inerente ao bem jurídico.
Em que pese a observação de Greco Filho de que a função sistemático-interpretativa não esgota o conteúdo material do bem jurídico tutelado,(2) a definição imprecisa do objeto jurídico de proteção da norma jurídico-penal pode carrear problemas hermenêuticos, abrindo amplo espaço interpretativo, incompatível com o princípio da taxatividade, norteador do sistema normativo penal.
Retroagindo-se ao conceito origem – “dignidade da pessoa humana” – é importante que se assente, em primeiro lugar, que sequer se encontra hoje em dia uma definição precisa sobre o papel jurídico que desempenha no ordenamento, questionando-se sua atuação como princípio,(3) norma de dupla estrutura(4) ou, ainda, derivando-se da construção de Humberto Ávila, como postulado normativo ou “metanorma”.(5) Nesse ponto, já se pode observar o quão problemático pode se tornar o aporte do conceito dirigido à figura central do homem, a uma característica inerente ao próprio homem, a qual constitui, dele, apenas umas das inúmeras facetas.
Mesmo quando se debruça sobre o estudo da dignidade da pessoa humana, não se consegue delimitar, com precisão, em que ordem conceitual se situa o titular desse direito à dignidade:(6) se na ordem individual, calcando-se em uma ordem patentemente subjetiva; se na ordem coletiva, tomando-se o conceito de pessoa humana como sinônimo de “gênero humano”; ou, ainda, como propõe Greco e Rassi, nas duas ordens conceituais retroexpostas.
Isso se deve ao próprio uso desmedido e descomprometido do conceito que, por ter inflado seu conteúdo de proteção a “quase tudo”, acaba sendo resumido a “nada”, comprometendo a aplicabilidade e a eficácia do próprio princípio (ou postulado). Por isso, Neuman nos alerta para o problema na inflação do conceito de dignidade humana e seu uso como fundamento para defesa ou proibição de qualquer coisa.(7)
Contudo, afora os problemas acima apontados, que já seriam suficientes a condenar o uso do termo “dignidade” na caracterização sistemática do bem jurídico penal protegido nos “delitos sexuais” capitulados no Título VI do Código Penal, não se pode deixar de perceber a notória carga valorativa que se estende por trás do conceito de dignidade humana, a qual nos faz voltar à proteção da moral sexual.
Explique-se. O princípio da dignidade da pessoa humana aporta o significado de que o ser humano é um valor em si mesmo, devendo ser preservado independentemente de características históricas, políticas, sociais, econômicas ou de qualquer outra espécie, havendo-se de impedir a instrumentalização do homem, de modo que jamais perca sua essência de humanidade. Em outras palavras, quando se assenta sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, busca-se evitar que o homem deixe de ser homem, de que lhe sejam retiradas, alteradas ou modificadas suas características inerentes, transformando-o em objeto. Tal formulação não pode ser transposta para o valor da sexualidade.
Conforme delineamos, a sexualidade é uma característica fundamental e inerente à pessoa humana e, como tal, deve ser protegida e tutelada pela esfera penal. Ocorre, entretanto, que a sexualidade jamais poderá ser tomada como um fim em si mesmo. Da mesma forma, será impossível tratar da sexualidade humana, destituindo-se de suas características histórico-sociais, sob pena se professar a existência de uma sexualidade ideal, a qual, certamente, se permearia de conteúdo moral e não poderia atender às condições de uma sociedade pluralista calcada no modelo liberal de Estado.
Assim, ao nosso entender, aceitar a designação “dignidade sexual” serve aos anseios de se fundamentar de maneira ampla qualquer comportamento contrário à moral sexual, sendo certo que a vacuidade do conceito permite que seja preenchido com o conteúdo material de maneira arbitrária, mesmo que seu fundamento encontre-se calcado em uma ordem moral.
Entendemos que bem melhor seria, se o legislador houvesse adotado a definição, já defendida na doutrina e aceita pela jurisprudência antes da reforma de 2009, de “Crimes contra a liberdade de autodeterminação sexual”, a qual, tomada em seus aspectos positivos e negativos de proteção, daria guarida à proteção alçada pelas normas jurídico-penais relativas à matéria em voga e evitaria a quantidade absurda de incriminações de cunho meramente moral.
É importante frisar que a liberdade sexual presume, em seu aspecto positivo, a ampla autonomia do corpo e da sexualidade – desde que essa liberdade não influa na liberdade sexual alheia –, a qual não deve sofrer intervenção do Estado ou de terceiros e que, pelo contrário, deve ser assegurada.(8) Já em seu aspecto negativo, a liberdade sexual pode ser entendida como o direito de não se estar submetido a qualquer comportamento sexual que não deseje. Deve-se destacar, ainda, a posição mista de Polaino Navarrete, que procura equalizar os modos de proteção à liberdade sexual.(9)
Partindo-se dessas premissas, sempre se tendo em conta o aspecto relacional da liberdade, que procurará seu substrato, agora sim, na dignidade da pessoa humana, é que o direito deve impor restrições à liberdade, procurando os comportamentos eticamente justificáveis para que possam ser assegurados e coibindo os comportamentos não justificáveis.
Ressalve-se, entretanto, que o fato de se buscar os valores fundantes da produção normativa na sociedade não implica em dizer que quaisquer valores poderão ser tutelados pelo ordenamento jurídico – mormente, no que tange à égide da esfera criminal –, o que nos faria aceitar que o direito poderia se encarregar da proteção da moral.
É nesse sentido que Natscheradetz afirma que “apenas se recorre à ética sexual vigente para determinar as características em termos de relevância que uma ação sexual deve revestir, para que se possa afirmar a sua aptidão geral para provocar nas pessoas uma grave limitação da sua liberdade sexual”.(10)
Diante de tais considerações, encerramos a discussão com a convicção de que melhor escolha teria feito o legislador ao designar o bem jurídico de proteção como a “liberdade de autodeterminação sexual”, a qual, em razão de seu conteúdo hermético e preciso, evitaria os problemas hermenêuticos que podem decorrer do novel e vazio termo “dignidade sexual”, o qual, em função de sua indigitada amplitude, ainda permite a incriminação de condutas morais e dá guarida à formulação de uma grande gama de tipos de perigo abstrato.

NOTAS

(1) Sobre o tema, cite-se ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito penal. Lisboa: Vegas, 1986. É de se destacar que o aparte de direito e moral foi foco de intenso debate na Alemanha na segunda metade do século XX, engendrando, como nos lembra Tadeu Antonio Dix Silva (Crimes Sexuais – Reflexões sobre a nova Lei 11.106/2005. Leme: J. H. Mizuno, 2005), nas recomendações propostas pelo 47º Congresso de Juristas Alemães da revogação de um grande leque de incriminações sexuais.
(2) GRECO FILHO, Vicente. Tipicidade, bem jurídico e lavagens de valores in Direito penal especial, processo penal e direitos fundamentais. São Paulo: Quartier Latin, 2006.
(3) Assim defende CANOTILHO. Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1996, citado em COSTA, Helena Regina Lobo da. A dignidade da pessoa humana. São Paulo: RT, 2008, p. 35.
(4) Nesse sentido, Alexy, fazendo sua distinção entre princípios e regras, propõe a estruturação da dignidade da pessoa humana com adequação simultânea às duas categorias (Teoría de los derechos fundamentales, citado em COSTA, Helena Regina Lobo da. op. cit., p. cit.).
(5) No entender do autor, postulados normativos seriam normas anteriores aos próprios princípios, que orientariam sua construção e aplicação, situando-se, portanto, em um plano superior ao das regras e dos princípios (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo. Malheiros, 2003). É calcando-se nessa concepção tripartite das normas jurídicas que Helena Regina Lobo da Costa assenta a possibilidade de se tomar a “dignidade da pessoa humana” como um metaprincípio orientador da aplicação dos princípios constitucionais (op. cit., p. 38/55).
(6) Sobre as ordens conceituais em que se situaria a dignidade da pessoa humana EDELMAN, Bernard. A Dignidade da Pessoa Humana, um conceito novo. In PAVIA, Marie-Luce; REVET, Thierry (org.). La Dignité de la Personne Humaine. 1ª ed. Paris: Economica, 1999.
(7) NEUMAN, Ulfried. A dignidade humana como fardo humano – ou como utilizar um direito contra o respectivo titular. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Dimensões da Dignidade – Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
(8) NATSCHERADTZ, Karl. O Direito penal Sexual, p. 139, apud GRECO, Alessandra Orcesi Pedro; RASSI, João Daniel. Crimes Contra a Dignidade Sexual. São Paulo: Atlas, 2010, p. 55.
(9) Conforme assenta GRECO, Alessandra Orcesi Pedro; RASSI, João Daniel. op. cit., p. 55.
(10) NATSCHERADTZ, Karl. O Direito penal Sexual, p. 139, apud GRECO, Alessandra Orcesi Pedro; RASSI, João Daniel. Crimes Contra a Dignidade Sexual. São Paulo: Atlas, 2010, p. 56.


Bruno Salles Pereira Ribeiro, Advogado Criminalista. Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestrando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo.


RIBEIRO, Bruno Salles Pereira. Dignidade sexual e liberdade de autodeterminação sexual In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 217, p. 14-15, dez., 2010. 

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