terça-feira, 13 de abril de 2010

Artigo: Em março de 2010, as mulheres estarão em marcha

Trata-se da “Marcha 2010”, que ocorrerá entre os dias 8 e 18 de março, de Campinas a São Paulo, e marca o centenário da instituição do Dia Internacional da Mulher.
As mulheres caminharão juntas para resgatar a origem do 8 de março, que remonta à II Internacional das Mulheres Socialistas e a um período de intenso protagonismo político das mulheres; massificar o engajamento na luta feminista e re-significá-la através do incentivo à solidarização internacional das mulheres e, por fim, constituir-se como um processo de formação política que permita às mulheres realizar a leitura das relações sociais vigentes entre os sexos, para identificar as práticas sociais que determinam a sua dominação e sobre-exploração, no marco da nova configuração da divisão sexual do trabalho Dessa forma, busca-se contribuir para que as mulheres se identifiquem enquanto sujeito político de uma nova práxis, apto a formular as táticas da luta social em prol da igualdade entre homens e mulheres.
Dentre os quatro eixos temáticos eleitos para compor a formação política das marchantes e orientar a sua plataforma de ação, cumpre aprofundar brevemente o debate acerca dos eixos “Paz e Desmilitarização” e “Violência contra as Mulheres”, tendo em vista a sua intersecção com discussões que pautam permanentemente a agenda  do IBCCRIM.
Aqui, o Núcleo de Pesquisa pretende cumprir, timidamente, o seu papel de ponte de diálogo entre o Instituto e os movimentos sociais, visando contribuir para que a militância de seus associados em prol dos direitos humanos não esteja descolada das demandas concretas e do sentido das lutas sociais de seu momento histórico.
No que diz respeito ao eixo “Paz e Desmilitarização”, as convergências preliminares dos encontros de preparação da Marcha 2010 apontam para conferir visibilidade aos impactos diretos e específicos da militarização na vida das mulheres, associando-a ao modo-de-produção capitalista e ao sistema patriarcal que naturalizam o exercício da violência.
A militarização tem sido legitimada pelos Estados mediante o recurso a duas vias de manipulação ideológica. Uma delas é o discurso do combate ao terrorismo, em nome da defesa da segurança nacional e da soberania dos povos. A segunda via é o discurso do combate ao crime organizado e ao tráfico de drogas, em nome da garantia da segurança pública - alçada ao status de política pública mais relevante -, sendo o inimigo identificado nas classes sociais marginalizadas, alvo da imposição de condições de trabalho precarizadas, da contingência da economia informal, da sub-remuneração do trabalho assalariado e potencialmente insubmissas à nova ordem econômica. Em ambos os casos, a militarização serve à tutela dos interesses das classes dominantes e, portanto, dos homens brancos, seja em seus projetos imperialistas, seja quando busca neutralizar as classes sociais refratárias à ordem econômica e a moral do trabalho vigentes. 
A militarização, empreendida a serviço da guerra, amplia largamente o poder social dos homens nos termos do papel que desempenham no patriarcado. Primeiramente porque reforça as instituições militares, as quais, para além de serem estritamente masculinas, estão fundadas em relações hierárquicas, no culto à obediência incondicional, na banalização da violência física e no corporativismo que legitima o exercício arbitrário de poder e a corrupção. Em suma, tratam-se de instituições anti-democráticas, incongruentes com o exercício das liberdades públicas e pautadas por um paradigma androcêntrico de socialização.
Ademais, a militarização confere aos homens, protagonistas das guerras, o monopólio do uso das armas, agravando a vulnerabilidade das mulheres nas zonas de conflito. Nesse sentido, as guerras aumentam as ocorrências de violência doméstica e, não só isso, valem-se do recurso ao estupro massivo de mulheres. Isto porque as mulheres são equiparadas ao território em disputa nos conflitos, isto é, aos objetos de propriedade do inimigo. Disso decorre que são estupradas para promover a desmoralização e a desonra do inimigo, afirmando para os seus “proprietários” o poder dos soldados vitoriosos.
Relativamente à militarização da segurança pública, temos que ela amplia o poder social dos homens que controlam o aparato policial. Por certo que a violência policial, exacerbada pela militarização, recai seletivamente sobre os homens, -notadamente os jovens e negros da periferia -, tendo em vista que o direito penal é um sistema específico de controle das relações de trabalho produtivo e incide, a priori, na esfera pública, campo privilegiado de realização dos papéis sociais atribuídos aos homens.
Todavia, há que se considerar os drásticos efeitos da violência policial na vida das mulheres pobres e negras da periferia que perdem seus filhos, companheiros, irmãos etc. pela ação dos agentes do Estado. Restam, essas mulheres, absolutamente desamparadas no que toca à apuração dos crimes que vitimaram seus familiares e à consequente responsabilização dos seus perpetradores, dada a conivência dos operadores do sistema de “justiça” criminal face às ilegalidades cometidas por agentes estatais. Nesse sentido, as mulheres são obstadas em sua tentativa de acesso à justiça, posto que a incidência seletiva do sistema punitivo sobre seus familiares tem como contraface a imunização penal dos homens que integram as instâncias policiais.
Ademais, a maximização do Estado Penal, da qual a militarização é um importante componente, é indissociável da redução do Estado econômico e da precarização das políticas públicas. Disso decorre a imposição de uma sobrecarga de trabalho às mulheres. Como o desempenho do trabalho doméstico e de cuidados é social e historicamente atribuído às mulheres, o vácuo de políticas públicas nas áreas de educação, saúde, assistência social etc. implica na (re) privatização dessas atividades, que voltam a ser por elas desempenhadas e acumuladas a outras jornadas de trabalho assumidas. Portanto, o único contato das mulheres pobres com o Estado se efetua através da polícia, a qual, crescentemente militarizada, tende a ser cada vez mais brutal e letal em suas ações.
A cultura da paz reivindicada pelas mulheres significa mais do que o pleito pela ausência de guerra. Implica na exigência de que os seus direitos não sejam anulados pela lógica da excepcionalidade invocada em momentos de conflito. Ainda, exige a garantia da sua participação nos processos de negociação e construção da paz, a redução do montante dos orçamentos públicos destinados aos gastos com armamentos de guerra e a punição, nos termos do devido processo legal, dos agentes do Estado pelas arbitrariedades cometidas nas zonas de conflito, aí inclusas as favelas, conferindo especial respaldo e credibilidade aos depoimentos das vítimas.
O pleito por paz, portanto, não se identifica com a tutela da ordem em favor das classes dominantes, vale dizer, não pretende servir como forma de mascarar os antagonismos sociais latentes para manutenção do status quo. Também não pretende alçar a paz ao status de princípio imponderável, independentemente do contexto histórico e dos atores sociais em conflito.
O eixo temático da “Violência contra as mulheres” vem acompanhado de algumas compreensões preliminares acerca desse problema, a principal delas é a de que a violência contra as mulheres é componente estrutural e inerente aos sistemas capitalista e patriarcal.
A violência contra as mulheres constitui uma forma de exercer o controle sobre o corpo, a sexualidade e a vida das mulheres e inclui o estupro, o assédio sexual, a prostituição, o tráfico de mulheres, o feminicídio, a pornografia, a esterilização forçada, a lesbofobia, a negação do aborto seguro e das opções sexuais e reprodutivas e a violência doméstica. Ademais, atravessa todas as classes sociais, raças/etnias, credos religiosos e tradições culturais.
A mais comum dessas formas de violência é a doméstica, em suas facetas física, sexual, moral, psicológica e patrimonial. Tal como a reprodução da ideologia dominante serve à manutenção do status quo, a violência doméstica contra as mulheres constitui mais um mecanismo, talvez o mais severo deles, de preservação dessas relações desiguais entre homens e mulheres.
Nesse sentido, a violência doméstica contra as mulheres é “justificada” pelos agressores com base na alegação de que estas não estariam cumprindo bem o seu papel de boas esposas, mães e donas de casa, ou seja, se manifesta como instrumento de fixação das mulheres no seu “devido lugar”, dentro do modelo de divisão sexual do trabalho, obstando a sua participação no espaço público. Acrescente-se que não é produto ocasional e episódico do excesso provocado pelo consumo de entorpecentes ou bebidas alcoólicas, diferentemente, é exercida com habitualidade no seio das relações conjugais, familiares ou de hospitalidade, em sede das quais as agressões tornam-se progressivamente mais frequentes e violentas, muitas vezes levando as mulheres à morte.
O movimento feminista aponta o fato de que o Direito Penal historicamente tem se ausentado de intervir no plano das relações travadas entre os sexos na esfera familiar, delegando ao chefe da família o poder praticamente absoluto sobre o território simbólico e físico do lar, o que denota a legitimação pública da falta estrutural de tutela das mulheres.
Nesse sentido, se reivindica a intervenção penal no âmbito privado, não porque seja suficiente para resolver um problema estrutural, como o da violência contra as mulheres, mas para assegurar, em caráter subsidiário, isto é, demonstrada a ineficácia das políticas públicas preventivas, as suas vidas. Não se trata, portanto, de irracional clamor punitivo orientado pela produção midiática da intranquilidade social, a partir da instrumentalização de vítimas e da exploração de crimes que atingem as elites.
Ademais, a reivindicação pela intervenção penal no âmbito doméstico não implica em ignorar a incidência seletiva do sistema punitivo, nem o caráter excludente da pena criminal, mas coloca o imperativo de que se avance criticamente para além dessas constatações, a fim de incorporar a ruptura epistemológica representada pela teoria feminista.
Vale dizer, a construção de uma compreensão crítica e totalizante acerca da dinâmica de funcionamento do sistema penal, exige que se lance um olhar não apenas para as contradições e antagonismos de classe e de raça/etnia, como também para as relações sociais travadas entre os sexos. Mais que isso, implica no esforço de compreender de que forma essas chaves de dominação-exploração se relacionam e se redimensionam reciprocamente.
Dessa forma, não há contradição do movimento na defesa concomitante da desmilitarização e da tutela penal dos crimes de violência doméstica, muito pelo contrário, esta reflete a compreensão da dinâmica pela qual opera o sistema de controle penal, seja nos seus conteúdos, seja nos seus não-conteúdos e de que forma se articulam para a reprodução das desigualdades materiais entre os sexos.
Os eixos da marcha 2010 colocam em relevo a discussão sobre o papel do Estado e, mais que isso, sobre as perspectivas e limites da disputa do Estado - e do próprio Direito Penal -, tendo em vista o papel que cumpre no sistema capitalista e patriarcal. Nesse sentido é que a construção política ao longo da marcha não estará pautada apenas pela reivindicação de políticas públicas que incorporem à sua racionalidade a compreensão das desigualdades materiais entre homens e mulheres e o objetivo de combatê-las. Isto porque a capacidade do Estado de promover essas políticas permanecerá limitada enquanto for instrumento político de exercício e manutenção do poder social dos homens, não apenas pela sua composição masculina, mas pela sua estrutura androcêntrica.
O caminho a ser percorrido na busca pela concretização de alternativas a este modelo que oprime as mulheres é longo e seguiremos em marcha até que todas sejamos livres!

Bibliografia

WACQUANT, Loic. As prisões da miséria.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; 174p.
BARATTA, Alessandro. O paradigma de gênero: da questão criminal à questão humana. In: Criminologia e Feminismo (Carmen Campos, org). Porto Alegre. Sullina. 1999; p.19-80. http://www.sof.org.br/acao2010/ - acessado em 31/01/2010.

Isadora Brandão A. da Silva
Estudante do 5º ano do Curso de Direito da Universidade de São Paulo.
Membro do Núcleo de Pesquisa do IBCCRIM.
Membro do Coletivo Feminista Dandara-USP.


Boletim IBCCRIM nº 208 - Março / 2010

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