sexta-feira, 10 de abril de 2009

Artigo: Uma nova leitura da autodefesa

Uma das garantias fundamentais mais relevantes concedidas aos acusados em geral é aquela que vem insculpida no art. 5º, LV, da CF; trata-se, pois, do direito à ampla defesa.

No Processo Penal, aliás, este asseguramento ganha muito mais relevância, sendo cindida, quase que pacificamente, por doutrina e jurisprudência, em direito à defesa técnica e à autodefesa.

Aquele implica a necessidade do réu estar sempre amparado, na lide penal, por advogado que, em seu favor, obrigatoriamente terá que apresentar defesa suficiente, efetiva e real.

Este — objeto deste singelo estudo — contempla a possibilidade do acusado, sempre que assim quiser(1), controverter as acusações feitas, participando pessoalmente da instrução do processo e apresentando sua versão sobre o fato que lhe é imputado.

Cumpre salientar, por muito oportuno, que a autodefesa também admite dois enfoques, o direito de audiência e o direito de presença: “O primeiro traduz-se na possibilidade do acusado influir sobre a formação do convencimento do juiz mediante o interrogatório. O segundo manifesta-se pela oportunidade de tomar ele posição, a todo momento, perante as alegações e as provas produzidas, pela imediação com o juiz, as razões e as provas.”(2)

O seu exercício, como se percebe, ocorre primordialmente, tanto no interrogatório, como também durante a oitiva das testemunhas, atos processuais realizados concentradamente na audiência de instrução julgamento, perante o julgador que irá, a partir de agora, proferir a sentença.

Vale lembrar que, até 2003, discutia-se sobre a natureza da oitiva do réu em Juízo, já que não se previam — expressamente — a presença de defensor e a possibilidade de reperguntas deste; no entanto, a partir das inovações trazidas pela Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, ficou evidente que o interrogatório do acusado é um claro meio de defesa.

Com o advento da última grande reforma do CPP, o interrogatório e, por conseguinte, a autodefesa, ganharam ainda mais importância, principalmente porque aquele ato passou a ocupar o derradeiro momento da persecução penal, permitindo, assim, ao réu, apresentar a sua versão dos fatos após ter tido contato pessoal com todas as demais provas produzidas, principalmente as orais.

Trata-se, como se percebe, de importante inovação, que confere ao acusado uma maior possibilidade de defender-se, até porque, como se sabe, talvez em razão da falta de investimentos ou, até mesmo, de cultura em investigação, quase sempre os processos criminais são decididos com base nas provas testemunhais colhidas.

No entanto, obviamente, para que o réu possa desempenhar sua autodefesa de maneira ampla, é essencial que ele esteja pessoalmente presente durante a realização da audiência de instrução e julgamento e, também, a da tomada de todos os testemunhos que ocorram fora desta.

Tal afirmação já era válida na sistemática anterior, com fundamento na CF e, até mesmo, na Lei Adjetiva vigente, mas tornou-se inquestionável doravante, tendo em vista a supramencionada alteração na ordem da colheita das provas e, bem assim, o entendimento do STF quanto à hierarquia dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos(3).

Quanto a este último aspecto, cumpre destacar que o Brasil é signatário do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York, aprovado pelo Dec. Leg. nº 266/1991 e promulgado pelo Dec. nº 592/92, o qual expressamente prevê, como direitos de todos os que sejam acusados criminalmente, “de estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente (art. 14, 3, d)(4).

Assim, como consequência desta interpretação mais ampliada da autodefesa, pode-se destacar o entendimento, que já vem se firmando na corrente doutrinária mais garantista, de que o art. 217 do CPP(5), em sua nova redação, deve ser interpretado da seguinte maneira: “A retirada do acusado da sala de audiência somente pode ser determinada em caráter absolutamente excepcional, caso o réu tenha um comportamento capaz de influenciar indevidamente aquelas pessoas que serão ouvidas”(6), mas, mesmo assim, garantindo-se-lhe forma de assistir ao ato e ter contato simultâneo com o seu defensor.

Outrossim, com base nesses mesmos fundamentos, terá que se assegurar ao réu preso, ao contrário da praxe forense, a participação na audiência de todas as testemunhas que eventualmente sejam ouvidas por carta-precatória, garantindo-se, neste caso, o seu transporte à Comarca em que o ato for realizado.

Não basta, portanto, como acontece comumente, a presença apenas de um defensor ad hoc durante esta oitiva, o qual nunca teve qualquer contato com os autos e que tem comprometimento meramente moral com o acusado, sendo nomeado apenas e tão-somente para cumprir um formalismo.

Afinal, se o réu tem indiscutivelmente o direito de presenciar o depoimento de todas as testemunhas que são ouvidas na audiência de instrução e julgamento, da mesma maneira tem de ser-lhe garantida a participação na oitiva das que deponham fora daquele momento, até porque, obviamente, inexiste qualquer diferença entre elas. Aliás, é bem possível, até mesmo, que tais testemunhas sejam as mais importantes para o deslinde do processo, oferecendo-se extremamente prejudicial ao acusado não estar presente ao ato.

Neste ponto, muitos dirão que esta interpretação causará maiores prejuízos ao Estado (gastos com escolta e translado do acusado), tornará os processos mais lentos, além de expor a sociedade a um maior risco (possibilidade de evasão do preso); contudo, em um estado democrático de direito, como pretende ser o Brasil, a proteção às garantias do acusado devem ser postas em primeiro lugar, relativizando tais interesses da sociedade, até porque é ele considerado inocente até o trânsito em julgado da sentença penal(7).

No mais, e ainda, a prática do interrogatório por videoconferência e a eventual oitiva de testemunhas por este meio, incluída no ordenamento jurídico pela Lei nº 11.900, de 8 de janeiro de 2009, também afronta a interpretação aqui defendida sobre a ampla defesa.

Com efeito, como mencionado alhures, a autodefesa pressupõe a participação — pessoal — do acusado nos atos processuais (direito de presença), sendo que aquela meramente virtual não é suficiente, porque retira do acusado a possibilidade de efetivamente participar da formação do convencimento do seu juiz natural.

Aliás, em um país em que os réus dos processos criminais são quase sempre pobres e de pouca educação, e, muitas vezes, nunca tiveram qualquer contato com a informática e a internet(8), chega a ser hipócrita esperar que eles tenham a desenvoltura suficiente para apresentar, por meio eletrônico, ainda que de maneira oral, sua versão sobre os fatos, conversar com seu defensor que está a quilômetros de distância, além de identificar pontos controvertidos nas declarações de testemunhas.

Além disso, conforme as palavras do ministro Cezar Peluso(9), o interrogatório no cárcere é demasiadamente perigoso, pois o acusado ficará exposto, pela proximidade, a várias pessoas que podem influenciar suas palavras (carcereiro ou outro agente público, co-réu, integrantes de uma quadrilha, etc.), e, pela distância, poderá ficar constrangido em denunciar essa situação ao julgador, o que evidentemente irá restringir a sua ampla defesa.

Destarte, por tudo o que foi observado, é hialino que a realidade do processo penal pátrio muitas vezes se distancia das garantias conferidas aos cidadãos, em razão de inovações legais criadas em momentos de grande turbulência ou, até mesmo, pelo mero costume dos operadores do Direto; todavia, este afastamento deve ser fortemente rechaçado, banindo-se, se necessário, estas incongruências, pois, nas palavras do ministro Eros Grau, “a preservação dos princípios impõe, seguidas vezes, a transgressão das regras”(10).

Notas

(1) Art. 5°, LXII, CF.

(2) GRINOVER, Ada Pellegrine; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio. As Nulidades no Processo Penal, 9ª Ed., RT, 2006, p. 88.

(3) No Julgamento dos RE n° 466.343/SP e 349.703/RS e do HC n° 87.585/TO o Pretório Excelsior, em votação majoritária, entendeu que tais Acordos teriam status supralegal (informativo n° 531 do STF), malgrado nos parecer mais correta a corrente segundo a qual teriam eficácia constitucional, quando ingressados no Ordenamento Jurídico anteriormente à EC n° 45.

(4) Neste mesmo sentido, o Pacto de São José da Costa Rica dispõe que “toda pessoa detida ou retirada deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais” (art. 7º, 5).

(5) Art. 217. ”Se o juiz verificar que a presença do réu, pela sua atitude, poderá influir no ânimo da testemunha, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará retirá-lo, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. Neste caso deverão constar do termo a ocorrência e os motivos que a determinaram.”

(6) SOUZA, João Fiorillo de. “A retirada do réu da sala de audiência e o novo artigo 217 do CPP”, Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 192, pp. 4-5, nov. 2008 – com destaques.

(7) Artigo 5°, LVII, CF.

(8) Lembre-se, mesmo após muitos anos de implementação, grande parte da população tem dificuldade em manusear um simples caixa-eletrônico.

(9) STF, HC n° 88.914-0/SP, relator ministro Cezar Peluso, Segunda Turma, DJE 05/10/2007.

(10) STF, HC n° 94.916 -9/RS, relator ministro Eros Grau, Segunda Turma, DJE 12/12/2008.


Matheus Siveira Pupo
Advogado

PUPO, Matheus Silveira. Uma nova leitura da autodefesa. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 196, p. 14-15, mar. 2009.


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