terça-feira, 17 de março de 2009

Artigo: Tortura, anistia e arquivos secretos

Não existe crime mais ignóbil, vil, repugnante e hediondo do que a tortura. Parodiando o jurista italiano Giorgio Del Vec­chio, eu diria que ela degrada mais quem a pratica do que quem a sofre.

No século XV foi largamente empregada. No Manual dos Inquisidores, a confissão era considerada a prova por excelência da culpa, devendo ser extraída do suspeito mediante fraude, ardil e, em último caso, através da tortura.

Na polícia brasileira ela sempre existiu e, por vezes, ainda persiste, atingindo, em geral, os mais pobres e, portanto, menos protegidos. Na ditadura militar que se instalou em nosso país em 1964 e recrudesceu a partir de 1968, a tortura passou a atingir pessoas de todas as camadas sociais, desde que fossem consideradas “inimigas da pátria” pelos detentores do Poder, causando centenas de vítimas fatais e tantas outras que até hoje guardam sequelas físicas e psicológicas, nestas se incluindo seus familiares.

Passadas mais de duas décadas da promulgação da Lei de Anistia, o Brasil ainda não conseguiu, compreensivelmente, virar essa página vergonhosa da nossa história recente.

Discute-se, com emoção e paixão, se referida lei anistiou os torturados do regime militar.

Ao analisar a questão, é preciso fazer um retrospecto histórico.

A Lei de Anistia (Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979), em seu artigo 1º, caput, a concedeu “a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes...” O §1º considerou “conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”; e o § 2º excetuou “dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. O decreto nº 84.143, de 31 de outubro de 1979, repetiu, ipsis litteris, o art. 1º caput, e §§ 1º e 2º da Lei de Anistia.

Em outubro de 88, com o fim da ditadura militar, foi promulgada a atual Constituição da República Federativa do Brasil, uma das mais avançadas do mundo na preservação dos direitos individuais, motivo de orgulho para todos nós. Entre os “direitos e garantias fundamentais” estabeleceu a Magna Carta, em seu art. 5º, inciso XXXIX, que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”; e no inciso XL, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

Embora o atual Código Penal brasileiro, de 1940, preveja, em seu art. 121, §2º, inciso III, o homicídio qualificado cometido com emprego de meio “cruel”, apenando-o com reclusão de doze a trinta anos, e o art. 61, inciso II, d, do mesmo Código, considere circunstância agravante (a qual, todavia, não pode aumentar a pena acima do máximo legal) ter o agente praticado o crime com emprego de meio “cruel”, não havia em nosso ordenamento jurídico a tipificação do crime de tortura.

Tal abominável delito só veio a ser tipificado entre nós através da Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, publicada no dia seguinte. O art. 1º, incisos I e II, definiu o que “Constitui crime de tortura”, e seu § 4º, inciso I, previu uma causa especial de aumento de pena “se o crime é cometido por agente público”.

Verifica-se, por conseguinte, que, sendo a Lei de Tortura de 1997, antes dessa data tal conduta ignominiosa não poderia ser punida, em face dos já referidos princípios constitucionais da prévia cominação legal e da irretroatividade da lei penal mais gravosa (CF, art. 5º, incisos XXXIX e XL).

Por outro lado, qualquer homicídio qualificado pelo meio cruel, apenado com reclusão de vinte a trinta anos, cometido durante a ditadura militar, ou seja, há mais de vinte anos, prazo máximo previsto pelo art. 109, inciso I, do Código Penal, já estará irremediavelmente prescrito.

Argumentam alguns que o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, do qual o Brasil é Estado Parte, considera a tortura um crime contra a humanidade e imprescritível. Realmente o art. 7º, 1, f, do Estatuto elenca a tortura entre os crimes dessa natureza, “quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque”. Por sua vez, o art. 29, sob a rubrica “imprescritibilidade”, dispõe que “Os crimes da competência do Tribunal não prescrevem”.

Todavia, referido Estatuto só foi promulgado em nosso país aos 25.09.02, através do Decreto nº 4.388, publicado no dia seguinte.

E o art. 24 do Estatuto, sob o título “Não retroatividade ratione personae”, dispõe, em seu número 1, que “Nenhuma pessoa será considerada criminalmente responsável, de acordo com o presente Estatuto, por uma conduta anterior à entrada em vigor do presente Estatuto”.

Assim, embora os torturados e seus familiares mereçam toda solidariedade humana, do ponto de vista constitucional e penal nada há infelizmente a fazer. Como disse o eminente ex-ministro do STF Ilmar Galvão, é o preço que temos de pagar por viver em um Estado de Direito Democrático.

Todavia, no campo moral há algo que precisa ser urgentemente feito: abrir os arquivos da ditadura militar. Para isso, é necessário rever a malfadada Lei de Acesso à Informação, com amplo debate público e a indispensável transparência, o que, infelizmente, não vem sendo feito.


Roberto Delmanto, Advogado criminalista, ex-membro do Conselho de Política Criminal e Penitenciária do Estado de São Paulo e do ILANUD – Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinquente.

DELMANTO, Roberto. Tortura, anistia e arquivos secretos. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 2, fev. 2009.

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