terça-feira, 10 de março de 2009

Artigo - Caso Eluana: eutanásia e conflito entre poderes

O governo italiano (Berlusconi), por meio de um decreto-lei, tentou impedir a morte de Eluana (via eutanásia passiva). O decreto foi aprovado no dia 6/2/09, pelo Conselho de Ministros. Mas chegou tarde. Uma equipe médica (cumprindo decisão judicial) suspendeu a sua alimentação e hidratação e ela finalmente morreu, depois de ficar em estado vegetativo 17 anos. A suspensão de medicamentos e alimentação, que conduz à morte da paciente, se chama ortotanásia (ou eutanásia passiva). Os Governos democráticos não têm poderes para bloquear o cumprimento de uma decisão judicial. Isso é típico de governos autoritários, tal como o de Berlusconi.

"Após uma longa discussão, o Conselho de Ministros aprovou o decreto-lei apesar de ter recebido uma carta do presidente Giorgio Napolitano, em que expressou sua decisão contrária à medida. O presidente da Itália queria evitar o conflito entre os poderes Judiciário e Executivo."

"O pai de Eluana disse: "Para nós, ela está morta desde 18 de janeiro de 1992". Assim o italiano Beppino Englaro, 67, expressou, em entrevista exclusiva ao UOL Notícias."

Comoção nacional: o caso de Eluana causou reações acaloradas por parte da sociedade italiana depois que seu pai, Beppino Englaro, conseguiu na Justiça provar que o estado de saúde da sua filha é irreversível e que era da vontade de Eluana morrer se estivesse em coma e, assim, recebeu uma sentença favorável em 2008.

"Por parte do Vaticano, a reação contrária à decisão foi enérgica. A Igreja Católica considera a autorização para a realização da eutanásia um ‘assassinato'. A decisão foi inédita no país. Conhecida por ser uma sociedade conservadora e intimamente ligada aos valores católicos, a Itália proíbe a eutanásia em seu território."

Em nossa opinião, dono da vida, o ser humano deve ser também, dentro de determinadas circunstâncias e segundo certos limites, o dono da sua própria morte. Não há nenhuma censura (reprovação) ética ou jurídica na chamada "morte digna", que é a morte desejada por quem já não tem mais possibilidade de vida e que, em estado terminal, está sofrendo muito. A morte nessas circunstâncias, rodeada de vários cuidados (para que não haja abuso nunca), não se apresenta como uma morte arbitrária, ou seja, não gera um resultado jurídico desvalioso, ao contrário, é uma morte "digna", constitucionalmente incensurável, penalmente impunível.

Os temas eutanásia, morte assistida e ortotanásia continuam muito nebulosos em vários ordenamentos jurídicos. Na nossa opinião, mesmo de lege data (ou seja: tendo em vista o ordenamento jurídico vigente hoje seja no Brasil ou na Itália), desde que esgotados todos os recursos terapêuticos possíveis e desde que cercada a morte de certas condições razoáveis (anuência do paciente, que está em estado terminal, sendo vítima de grande sofrimento, inviabilidade de vida futura atestada por médicos etc.), a eutanásia (morte ativa), a morte assistida (suicídio auxiliado por terceiro) e a ortotanásia (cessação do tratamento) não podem ser enfocadas como um fato materialmente típico porque não constitui um ato desvalioso, ou seja, não é um ato contra a dignidade humana, ao contrário, em favor dela (no sentido de que a ortotanásia é juridicamente irreprovável cf. Luís Roberto Barroso, Folha de S. Paulo de 4/12/06, p. C4).

A "morte digna", que respeita a razoabilidade (quando atendida uma série enorme de condições), elimina a dimensão material-normativa do tipo (ou seja: a tipicidade material) porque a morte, nesse caso, não é arbitrária, não é desarrazoada. Não há que se falar em resultado jurídico desvalioso nessa situação.

A base dessa valoração decorre de uma ponderação (em cada caso concreto) entre (de um lado) o interesse de proteção de um bem jurídico (que tende a proibir todo tipo de conduta perigosa relevante que possa ofendê-lo) e (de outro) o interesse geral de liberdade (que procura assegurar um âmbito de liberdade de ação, sem nenhuma ingerência estatal), fundado em valores constitucionais básicos como o da dignidade humana.

Todas as normas e princípios constitucionais pertinentes (artigos 1.º, IV - dignidade da pessoa humana -; 5.º: liberdade e autonomia da vontade etc.) conduzem à conclusão de que não se trata de uma morte (ou antecipação dela) desarrazoada (ou abusiva ou arbitrária).

Não há dúvida que o art. 5.º da CF assegura a inviolabilidade da vida, mas não existe direito absoluto. Feliz, portanto, a redação do art. 4.º da Convenção Americana de Direitos Humanos, que diz: ninguém pode ser privado da vida "arbitrariamente". Desde que não se trate de uma morte arbitrária, de acordo com padrões objetivos, não há como censurar a ortotanásia de Eluana. A influência religiosa perturba a isenção do debate. Mas religião é religião e Direito é Direito!


Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, professor de Direito penal na Universidade Anhangüera e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).

O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 09/03/2009.

Nenhum comentário:

Postar um comentário