quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Artigo: Movimentos sociais: criminalização e estado de necessidade

A Constituição de 1988 refletiu algumas das aspirações dos grupos sociais que pressionaram pela redemocratização, o que significou o reconhecimento da sua legitimidade política(1). No entanto, subsiste uma ideologia antidemocrática que reclama não apenas contra a atuação, mas até mesmo contra a existência dos movimentos sociais que promovem a reforma agrária(2) e o direito à moradia.

De um lado, é de se lembrar que os interesses autoritários sempre se justificaram através de instrumentos jurídicos. De outro lado, o grau de legitimação que um sistema político reconhece aos grupos sociais define o grau da democracia de uma sociedade. E os movimentos sociais sempre estiveram à frente do processo histórico, pois são motivados pelas necessidades da existência. No Estado Democrático de Direito, a igualdade substancial deve condicionar a igualdade de todos perante a lei, e cumpre ao Estado tratar desigualmente os desiguais, compensando proporcionalmente as desigualdades.

Contudo, no Rio Grande do Sul, alguns juristas a serviço do Estado pretendem ver ilegalidade na simples existência de movimentos sociais, a fim de equipará-los ao crime organizado, torná-los clandestinos e agravar a punição de seus integrantes por participarem de ações coletivas, pretendendo que o art. 5º, XVII da Constituição legitime até mesmo a repressão do deslocamento dos integrantes de tais movimentos e a sua investigação, em nítida valorização de um direito penal do inimigo.

Qualquer conduta típica de membros de movimentos sociais é sujeita à persecução penal, nos limites do princípio da imputação pessoal e com todas as garantias constitucionais. Por isso, projetos de lei como o PL 264/2006 do Senado, que pretende prever o esbulho possessório com fins políticos e equipará-lo aos crimes hediondos, é um retrocesso político criminal e até mesmo inconstitucional(3). A pena prevista é de 3 a 10 anos de reclusão àquele que cometer ilícitos com suposta motivação política (enquanto o Código Penal comina pena de 4 a 12 anos à lesão corporal seguida de morte), e a justificativa do projeto é que o dolo específico do atual crime de esbulho possessório não abrange a pressão por políticas sociais.

Além de não serem antijurídicas as condutas compatíveis com a democracia(4), também se pode aplicar às ocupações de terras e de imóveis ociosos a excludente de ilicitude do estado de necessidade(5). De um lado, é indisfarçável a marginalização social em nosso País, e de outro é preciso reconhecer que há direitos que só podem efetivar-se pela restrição ao direito alheio, por terem uma dimensão jurídica material que se efetiva no espaço social.

Os direitos sociais surgiram devido aos movimentos de massa que enfrentaram a ordem estabelecida, mas isso não garantiu a sua efetivação. Por isso é que Marilena Chauí lembra que “declarado o direito à igualdade, a sociedade pode instituir formas de reivindicação para criá-lo como direito real”(6). Mas ao questionarem o pacto individualista da igualdade formal e da democracia representativa, os sujeitos coletivos passam a ser criminalizados como grupos dis­funcionais(7), e o limite do seu espaço social passa a ser sinalizado pelo rigor punitivo-repressivo, que gera o conformismo(8).

De fato, as instituições jurídicas definem historicamente o que é lícito aos cidadãos, e a definição jurídica de direitos alheios inclui os direitos patrimoniais. Ou seja, a regulação jurídica da convivência social sempre esteve baseada na proteção à propriedade privada. No Brasil, o anacronismo da efetivação de direitos deve-se à cultura patrimonialista, provando que o direito é modelado pelo poder econômico, até mesmo em se tratando do poder punitivo, que se aplica sobre o direito à liberdade(9).

A proteção penal à propriedade privada constitui o limite às ações lesivas à chamada “paz social”, que nada mais é do que a manutenção das condições da desigualidade social(10), ou seja, da concentração de renda e dos meios de produção, através da especulação imobiliária e da concentração de terras. Porém, não existe uma “paz social”, desde que se entenda a sociedade perpassada por conflitos de interesses. E a democracia reconhece essa pluralidade, regulando a coexistência de grupos com interesses conflitantes.

No entanto, não haveria pluralidade, mas antinomia, se as contradições jurídicas não fossem passíveis de resolução prática. O direito à moradia, por exemplo, está na base da proteção à dignidade humana, mas convive na Constituição com a proteção à propriedade privada. Na interpretação da contradição entre normas, deve-se colocar na balança os direitos envolvidos e relativizar um deles, para que o sistema jurídico seja minimamente desrespeitado (princípio da máxima efetividade). Ora, sem a limitação ao direito à propriedade não há condições para a concretização dos direitos fundamentais previstos pela Constituição, enquanto a limitação da reforma agrária e do direito à moradia permite apenas a proteção ao direito à propriedade pelo seu valor intrínseco, ou seja, pelo que vale por si só, o que contraria a Função Social da Propriedade, princípio que reflete o ideal democrático através da prevalência reconhecida às políticas sociais que possam beneficiar o maior número de destinatários.

A democracia real só pode existir através da igualdade, garantia do primado do valor da pessoa sobre qualquer outro, o que implica que as propriedades improdutivas ou subutilizadas(11) sejam destinadas a um fim social(12). E enquanto a democracia for apenas formal, os movimentos sociais mobilizam a principal força democrática, e não se deve considerar crime os atos de seus integrantes, devido ao estado de necessidade ou da necessidade exculpante por inexigibilidade de conduta diversa(13), sempre que estejam de acordo com qualquer direito constitucional, o que materializa o princípio da adequação social(14).

De fato, dentre os fins políticos do Estado Brasileiro está a igualdade, e para a sua efetivação qualquer contradição deve se resolver em seu favor, pois é o princípio mais afim à democracia. Só a igualdade cria condições para a valorização plena da pessoa em uma sociedade, e aplicada à propriedade privada redefine-a como direito social — e não individual — que deve determinar “as relações dos vários grupos de proprietários e não-proprietários com o sistema de produção”(15), a fim de realizar socialmente o valor da pessoa, o que só pode ocorrer através de um modelo de Estado liberal mínimo e Estado social máximo(16). Então, a realidade social terá superado a pauperização criada pela oposição do direito material de uma pessoa a todas as outras; até então, não deve ser considerado crime lutar pela sobrevivência, pela realização humana e pela humanização social.

Notas

(1) A legitimidade política é entendida aqui como a idoneidade para intervir diretamente no processo político-democrático, de forma organizada e permanente. O STJ já entendeu que a previsão da reforma agrária pela Constituição (art. 184), implica o reconhecimento de um destinatário desse direito, donde a licitude da ocupação de terras com o fim de pressionar por políticas sociais (STJ, 6ª T., HC 4399-SP – j. 12.3.96).

(2) Bernardo Mançano Fernandes registra que “a ocupação é uma forma de pressionar o Estado e tem sido bastante eficiente. No Estado de São Paulo, 90% dos assentamentos conquistados resultam de ocupações” (“O papel do MST na construção da democracia”. In Introdução Crítica ao Direito Agrário. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, p. 346).

(3) A liberdade de convicção política (art. 5º, VIII, da CF) faz com que a motivação política de um ato não possa embasar a criação de um tipo penal mais rigoroso. A valoração das ocupações é bem traçada nos seguintes julgados: Ap. 2725503000-Andradina, TJSP, 5ª C. – j. 26.10.2000; e HC 9.896-PR, da 6ª Turma do STJ – j. 21.10.1999.

(4) Na definição de Luigi Ferrajoli, democracia é o regime político que consente o conflito controlado, e legitima a transformação social por meio do dissenso (Direito e Razão. São Paulo: RT, 2006, p. 871). Segundo René Ariel Dotti, “(...) o conflito é uma forma de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades que implica em choques para o acesso e a distribuição de recursos escassos” (Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 428).

(5) Segundo Rogério Greco “(...) entre a subsistência dos Sem-Terra e a exploração econômica da terra, aquela deve prevalecer em detrimento desta, podendo-se visualizar, com tranqüilidade, a situação característica do estado de necessidade” (Curso de Direito Penal, vol. III, Ed. Impetus, 3ª ed., 2007, p. 155). E Juarez Cirino dos Santos afirma que “situações de conflito de deveres ainda mais relevantes são comuns no contexto de condições sociais adversas — a máxima negação da normalidade da situação de fato pressuposta no juízo de exigibilidade” (Direito Penal - Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 341).

(6) “A sociedade democrática”. In Introdução Crítica ao Direito Agrário. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002, p. 335.

(7) Faria, José Eduardo. “Estado, sociedade e direito”. In Qual o Futuro dos Direitos? São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 117. A evidência da criminalização é a distorção do crime de quadrilha ou bando, pois os movimentos sociais não objetivam o cometimento de crimes, o que se opõe à sua finalidade política.

(8) Franco, Alberto Silva. “Os figurantes no sistema prisional”. In Revista do Ilanud, nº 17. São Paulo: Imprensa Oficial, 2001, p. 11.

(9) “(...) A estrutura dos crimes patrimoniais, nos idos de 40, atendia, em suas valorações, à preservação dos direitos patrimoniais dos grupos dominantes em relação aos ataques que se encontravam nos limites ou fora do sistema social” (Franco, Alberto Silva. “Breves anotações sobre os crimes patrimoniais”. In Estudos Criminais em Homenagem a Evandro Lins e Silva. São Paulo: Método, 2001, p. 57).

(10) “(...) o processo de criminalização é o mais poderoso mecanismo de reprodução das relações de desigualdade (...)” (Santos, Juarez Cirino. “Prefácio”. In Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 18).

(11) Lins e Silva, Evandro. “Prefácio”. In As Ações Políticas do MST. São Paulo: Expressão Popular, 2000, p.18.

(12) “(...) toda apreciação jurídico-penal das ocupações de terra precisa inicialmente perguntar à Constituição o que é o bem jurídico propriedade. (...) a propriedade erigida à condição de direito público subjetivo deveria extrair, como primeira conclusão, que todos os brasileiros têm direito à propriedade” (Batista, Nilo. “Ocupações do MST e propriedade”. Boletim IBCCRIM nº 95. São Paulo, out. 2000).

(13) Até mesmo a omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias por empresas, devido às dificuldades financeiras, tem sido julgada com fundamento no estado de necessidade e na inexigibilidade de conduta diversa. Nesse sentido: TRF2, 3ª T., Ap. 9802189588/ES – j. 22.06.1999; TRF4, Ap. 2002.04.01.052322-1/PR – j. 22.10.2003.

(14) “A situação de exculpação definida como desobediência civil tem por objeto ações ou demonstrações públicas de bloqueios, ocupações etc., realizadas em defesa do bem comum, ou de questões vitais da população (...) se baseia na existência objetiva de injusto mínimo, e na existência subjetiva de motivação pública ou coletiva relevante, ou, alternativamente, na desnecessidade de punição, porque os autores não são criminosos — portanto, a pena não pode ser retributiva e, além disso, a solução dos conflitos sociais não pode ser obtida pelas funções de prevenção especial e geral atribuídas à pena criminal” (Santos, Juarez Cirino dos. Direito Penal - Parte Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 339).

(15) Bottomore, Tom. “Propriedade”. In Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p. 618.

(16) “(...) se um Estado Social pretende ser também um Estado de Direito terá de outorgar proteção penal à ordem de valores constitucionalmente assegurados, rechaçando os postulados funcionalistas protetores de um determinado status quo” (Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 262).


Irineu João Simonetti Filho, Advogado em São Paulo.

SIMONETTI FILHO, Irineu João Saldanha. Movimentações sociais: criminalidade e estado de necessidade. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 194, p. 6, jan. 2009.

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