terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Artigo: Acusações perigosas

A oportuna publicação do artigo da lavra do advogado Eduardo Mahon no último Boletim (nº 192), sob o título “Juízos Perigosos”, leva-me a traçar essas poucas linhas em que, inspirado pela simetria de idéias, defendo a tese de que também os membros do Ministério Público, nos processos criminais em que atuam, faltam, muitas vezes, com a verdade, quando afirmam que se manifestam sobre os fatos apurados e não sobre os acusados. A atuação ainda traz em si uma significativa amostra de uma herança criminológica positivista que dá sinais de grande vitalidade.

O pressuposto básico da posição aqui assumida, que me parece também adotada no referido artigo, é de que, sob o ponto de vista da efetividade do sistema penal, tão importante quanto as leis — ou até mais do que elas — a incluir as normas constitucionais e os princípios jurídicos, é o conjunto das práticas adotadas pelos operadores do Direito, na apreciação e julgamento dos casos concretos. Assim como os juízes deixam escapar em seus julgados suas opiniões pessoais, impressões, formas de vida e sentimentos, para não dizer preconceitos, direcionados aos réus e não aos fatos, os membros do Ministério Público não parecem trilhar caminhos diferentes. Nem uns nem outros, aliás, dizem isso claramente, nem tampouco admitem o papel relevantíssimo que exercem na seletividade penal, escudando-se no manto sagrado de uma “desinteressada” e “científica” aplicação das normas.

É bem verdade que os promotores de Justiça são parte ativa na quase totalidade das ações penais e, assim, não se lhes há de exigir a mesma imparcialidade que se requer dos juízes. Entretanto, também são fiscais da lei penal e processual penal e, por imperativo constitucional, cabe-lhes a defesa da ordem jurídica e até do regime democrático, razão pela qual parece justo esperar deles uma imparcialidade moral ao menos coerente com o perfil constitucional da instituição.

Exemplo típico de tal conduta profissional é a imorredoura formulação do juízo de periculosidade, tão bem retratado no artigo de Eduardo Mahon, mesmo ante seu afastamento, embora não absoluto, pela ordem jurídica brasileira, especialmente com a reforma penal de 1984 e a Constituição de 1988. Em suas manifestações processuais, muitos membros do Ministério Público não resistem a revelar as escolhas que fazem, dentre os indivíduos processados, classificando uns como perigosos, outros nem tanto. Quem são, contudo, os perigosos?

Chega-se, por exemplo, a considerar perigoso réu que simplesmente negou a autoria do crime que lhe é imputado, sendo taxado de mentiroso. Aqueles que ostentam algumas condenações por furto são classificados como criminosos natos, com a “personalidade voltada para o patrimônio” (TJ/SP Apelação nº 1146.686.3/8). O que pratica roubo não faz jus a determinados benefícios legais, em sede de execução penal, porque é “pessoa extremamente perigosa, violenta e nociva à comunidade” (TJ/SP Agravo nº 1224.374.3/2). E mais: “não há como negar que o roubador — autor de crime doloso com violência ou grave ameaça — é, presumidamente, possuidor de personalidade perigosa” (grifo meu) (TJ/SP Apelação nº 990.08.058077-9).

Ocorre que o juízo de periculosidade, assim abraçado por nós membros do Ministério Público, acaba por influenciar também os juízes e tribunais na escolha das vias e mecanismos legais que lhe são colocados à disposição pelo extenso cardápio da dogmática jurídica. Dessa escolha, travestida em individualização da pena(1), resultará a imposição de penas qualitativa e quantitativamente diferentes e regimes mais ou menos severos.

Exemplifica-se: p ara muito além dos requisitos legais estabelecidos para o reconhecimento da continuidade delitiva, é o réu qualificado perigoso (condenado por crime de roubo) que parece motivar o promotor de Justiça a bater-se contra o benefício legal, sob o argumento de que ele “concorreria indiretamente para a criminalidade. Aceitando-se, no caso sub judice, a caracterização do crime continuado, estaria o Estado-juiz incentivando criminosos como o agravante a perseverar na sua vida criminosa, fazendo do crime a sua profissão” (TJ/SP Agravo nº 1191.018.3/5). Em crimes de apropriação indébita e estelionato, por outro lado, o reconhecimento da continuidade delitiva parece não encontrar maiores problemas.

A ausência de senso crítico ao recusar-se a diferenciar, por exemplo, roubos de roubos (arroubos) ou traficantes de traficantes, costuma reproduzir disparatados aforismas do senso comum da mídia policial: “o tráfico é a constituição dos crimes. É o ápice, pois todos os demais crimes estão interligados com o entorpecente, seja o roubo praticado pelo viciado, o furto pelo usuário ou o homicídio pelo traficante” (TJ/SP Agravo nº 1224.269.3/3).

Todas essas posturas, embora produzidas em meio a dispositivos retórico-processuais em casos concretos, não se limitam a convencer o juiz da causa. Repercutem em muito na construção do verdadeiro Direito Penal, que não é o das leis penais e muito menos o das normas e princípios constitucionais, mas o das práticas judiciárias. No caso das manifestações de membros do Ministério Público, é imperioso admitir que contribuem eficazmente para a formação da jurisprudência, já que, muitas vezes, acolhidas e reproduzidas pelos juízes e tribunais, naqueles mesmos termos referidos no artigo citado. Daí é possível entender o desinteresse de Deleuze pela lei ou pelas leis, noções vazias ou complacentes, ou até pelo direito ou pelos direitos, já que a jurisprudência é que é verdadeiramente criadora de Direito(2).

Como escreveu o ex-procurador de Justiça Joachim Wolfgang Stein, “é preciso cuidado com determinados bordões, que se perpetuam e que mascaram acomodações. Expressões genéricas como ‘interesse público’, ‘interesses indisponíveis’, ‘bem comum’, a ‘eqüidade do Lord Chancellor’ no Direito Inglês, o ‘sadio sentir do povo’ no Direito nazista, a ‘legalidade socialista’ e quejandos muitas vezes não têm conteúdo e acorrem providencialmente diante de perplexidades e mesmo de iniqüidades”(3).

Notas

(1) Marta Rodriguez de Assis Machado e José Rodrigo Rodriguez. “Os juízes de Direito e os caminhos da periculosidade no Direito Penal Brasileiro”, in Decisões Judiciais nos Crimes de Roubo em São Paulo. A Lei, o Direito, a Ideologia. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 78.

(2) Conversações, trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, p. 209.

(3) “Reflexões sobre o âmbito de atuação do Ministério Público: custos legis e agente social”, in Anais do II Congresso do MP de SP. Imprensa Oficial do Estado, 1997, pp. 435-437.


Oscar Mellin Filho, Procurador de Justiça (MP-SP); professor universitário; mestre em Filosofia (PUC/CAMP) e doutor em Ciências Sociais (PUC/SP)

Boletim IBCCRIM nº 194 - Janeiro / 2009

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