quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Artigo: Qual o alcance da palavra "crime" no art. 91, II, "a", do CP

Reza o Código Penal pátrio: "Art. 91. São efeitos da condenação: II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou terceiro de boa-fé; a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito;…" (os grifos não fazem parte do texto legal).

A interpretação jurisprudencial em se tratando do artigo acima (parcialmente) descrito quanto à sua aplicação, nos casos de infrigência ao disposto no art. 19 do Decreto-lei nº 3.688/41, porte de arma – erroneamente divulgado pelos meios de comunicação como porte ilegal de arma –, é contravertida, inexistindo, atualmente, pacificação desta matéria.

A criminalidade incessante, os altos índices de homicídios, latrocínios, roubos…, a violência urbana em síntese, está levando os operadores do Direito a repensar qual o alcance do art. 91, II, "a", ou ainda, se seria melhor alongar a extensão do art. 19 da LCP, transformando-o em crime. Há ainda, posições no sentido da não produção de alterações legislativas, competindo ao magistrado a análise de cada caso concreto colocado sob sua ótica, aplicando, vez por outra, um limite extensivo no art. 91 e noutro um limite restritivo.

Nos dizeres do compêndio "Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial", (Sebastião Oscar Feltrin et alli), descreve-se que nem todos os objetos do crime, podem ser confiscados: "…O Código só autoriza a perda dos bens cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua em si fato ilícito, como por exemplos os petrechos para moeda falsa, armas de uso privativo das forças armadas, gazuas, documentos falsos, armas não registradas e de pessoas sem direito de porte" (p. 1.075, nº 102, "a", grifamos).

A questão só se encontra pacificada nos seguintes casos: 1) uma vez comprovado o registro da arma e obtida licença da autoridade para portá-la, será inadmissível o confisco, já que a conduta não é atingida pelo alcance extensivo do art. 91, II, "a", do CP, mesmo que tenha existido condenação pelo art. 19 da LCP (vencida a autorização para o porte); 2) entende-se a expressão "crime" em sentido lato, de infração penal, efetivando-se o confisco da arma de fogo quando apreendida em poder de pessoa que não possui licença para portá-la, sendo esta medida adequada à realidade social.

Fora dessas situações é difícil encontrar uma solução que traduza entendimento majoritário, apresentam-se inúmeros julgados com decisões distintas e não unânimes, atribuindo valores diferenciados à expressão crime, ora recebendo caráter estritamente formal, não havendo extensão ao seu significado, ora descrita como infração penal, abarcando assim, as contravenções penais e outras condutas similares elencadas legalmente.

Todos sabemos que a interpretação da norma penal, diante de uma lacuna ou obscuridade, nunca deve ser extensiva, funcionando esta reserva como garantia da segurança jurídica e do próprio cidadão. O confisco de armas, contudo, diante da gravidade atual do problema não seria violador deste caráter restritivo da segurança jurídica, pois é sereno o entendimento do controle das liberdades individuais em face da segurança de toda coletividade – exemplo disto, é a limitação quanto ao uso nocivo da propriedade. Acreditamos que as armas de fogo poderiam ser comparadas a esta restrição, não havendo qualquer "plus" nas condenações que abarcassem o confisco.

É importante, neste momento, uma indagação: teria o Estado direito para delegar a uma autoridade administrativa poder para expedir licença autorizando o uso de armas de fogo?

A resposta nos parece negativa, não obstante, justificativas para autodefesa e outra inúmeras respostas, geralmente tutelando direitos de ordem patrimonial. Insistimos: não.

Ora, ao Estado não cabe outorgar aos seus agentes poderes, para que sua conduta final delibere sobre a vida e a morte de todos os entes que o compõem. Seu papel de solucionador dos conflitos, garantidor da observância dos preceitos legais e regulador das relações individuais, norteia para algo muito maior, que é a segurança individual e coletiva da comunidade. Resulta daí, na indelegabilidade de tal função, que é totalmente discricionária e em grande parte responsável mediata por inúmeros crimes (emprego desnecessário ou impulsivo das armas de fogo), cuja existência sequer seria constatada, caso a licença não fosse autorizada.

Inúmeros processos judiciais não seriam iniciados, se este tipo de licença deixasse de ser concedida, pois, está provado que o grande universo de incidentes fatais, não só no trânsito, como em discussões nas mais diversas órbitas, foram constatados após conseguida a tão malfadada licença.

Não estamos pleiteando o fim desta autorização, nem seria possível ao Estado tutelar a todo tempo as relações pessoais em termos de segurança pública. Chega de utopia. É possível, todavia, minimizar totalmente as formas de adquirir a concessão pública, limitando-se, assim, o uso indiscriminado de armas de fogo no meio livre e comum, restando às armas registradas, o consolo da permanência nos lares para a efetiva "guarda do patrimônio", motivo norteador de quase todos os pedidos autorizadores.

A criteriosa análise da expedição autorizadora é a chave de tudo. Atualmente basta a juntada de documentos e o preenchimento de formulários para consegui-la, mas, este critério é insuficiente. Deveria haver um rigor um pouco maior, como o que vem sendo tomado quando da expedição da Carteira Nacional de Habilitação, qual seja, inúmeras datas para exames de avaliação cultural e pessoal, mínimos que são, funcionam mais, realmente selecionando do que segregando, pois é possível aos reprovados novo exame.

Para os que desejam andar armados, exames similares deveriam ser realizados. Além de minucioso exame psicológico, que seria fundamental, já que, será outorgado poder capaz não só de defender, mas, também, de atacar e até matar. Prova do sucesso deste exame psicológico é o resultado obtido na Polícia Militar do Estado, afastando os militares envolvidos em ocorrências de alto risco, conforme ilustrou Cristiano Avila Maronna em "Proar: uma nova mentalidade na PM" (Boletim IBCCRIM nº 43, p. 5).

Solução, todavia, totalmente absurda é o enquadramento do porte de arma como crime, conforme suscitam os rumores nos bastidores jurídicos, políticos e administrativos da Nação. Já está provado que medida desta monta não servirá para nada, exceto para promoções de ordem pessoal, usando-se do sistema básico legal como trampolim para um alcance na mídia

Não é penalizando exageradamente o porte de arma que se chegará à solução do problema primordial, que é a falta de cultura refletidade na criminalidade.

Novamente, como foi o caso da Lei 8.072/90, Lei dos Crimes Hediondos, não será possível conseguir resultado algum de forma prática. Os desfavorecidos serão alcançados e tão somente estes irão parar nas dependências carcerárias das diversas unidades prisionais.

É patente que a prisão dos que eventualmente andem armados servirá para piorar a vida em sociedade, já que o coeficiente ressocializador das prisões é igual a zero. Sendo assim, o detido, por este crime de porte de arma, será mais um marcado para sempre em toda a sua existência, pois, sua conduta – portar arma –, apenas potencial para causar um dano, restou-lhe efetivamente um grande prejuízo, concretizando na coerção desmedida entre ação e resultado, incompatíveis com um Estado Democrático de Direito.

Forçoso é reconhecer que as medidas estão buscando solucionar os extremados casos de violência galopante que a cada dia estão mais presentes em nossa sociedade, contudo, estas reformas pontuais estão completamente fora da realidade e sua autenticidade é contestável, parecendo estar sempre direcionadas a suprir determinados (sempre os mesmos) interesses.

Colocar na cadeia quem anda armado, jamais será uma solução plausível, e certamente fruto da total incoerência entre os fins e os meios de correção. O sistema prisional está falido, conforme aponta Cezar Roberto Bittencourt, em "A Falência da Pena de Prisão" (editora Revista dos Tribunais, 1993), e a solução alvitrada certamente colaborará um pouco mais para isto.

Ao Estado cumpre realizar uma política fiscalizadora efetiva, restringindo ao máximo a expedição deste tipo de licença. Compete aos seus agentes ir a campo buscar os focos onde as armas encontram-se irregularmente guardadas e finalmente enfrentar o contrabando de armas como vem combatendo o tráfico ilícito de entorpecentes.

Atuando desta forma, com certeza o legislador poderá ocupar-se com outra matéria, já que o problema relacionado ao alcance do crime porte de arma, será – certamente –, minorado, competindo então o acompanhamento da atual problemática ao segundo escalão…


Helio Narvaez, Diretor adjunto da RBCCrim e delegado de polícia da corregedoria em SP.

NARVAEZ, Helio. Qual o alcance da palavra crime no art. 91, II, a, do CP. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.46, p. 07, set. 1996.

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