Personagem é 'chefe do FBI' de Javé em livros do Antigo Testamento.
Para estudioso americano, papel continua valendo na Bíblia cristã.
Qualquer cristão com um mínimo de formação religiosa é capaz de fazer um breve resumo da carreira do Diabo: originalmente um anjo poderoso, ele teria se rebelado contra Deus no princípio dos tempos, induzido Adão e Eva a cometer o chamado pecado original e, ainda hoje, estaria pronto a induzir a humanidade a fazer o mal, manipulando tudo e todos nos bastidores. O problema, afirma um livro que acaba de chegar ao Brasil, é que essa trama básica não estaria em lugar nenhum da Bíblia, mas teria sido montada por teólogos cristãos dos séculos 3 e 4, responsáveis por uma leitura um bocado criativa das Escrituras. Segundo essa visão, o Satanás bíblico não seria um rebelde contra Deus, mas uma espécie de "agente secreto" ou "chefe do FBI" divino, responsável por testar a lealdade dos seres humanos.
A tese polêmica está em "Satã - uma biografia" (Editora Globo), escrito por Henry Ansgar Kelly, professor emérito da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autor de outros livros sobre a figura literária do Demônio. Kelly vai além da maioria dos outros estudiosos modernos da Bíblia, os quais, como ele, afirmam que as poucas aparições de Satanás no Antigo Testamento se referem a uma figura que é subordinada a Deus, e não inimiga do Criador. Para Kelly, no entanto, a situação não muda substancialmente nas menções ao Maligno no Novo Testamento.
"O Satã no Novo Testamento deve ser percebido como tendo uma posição equivalente a um Primeiro-Ministro, ou um Procurador-Geral da República, ou diretor do FBI, e não mais diabólico do que muitos dos mais zelosos representantes dessas posições aqui na Terra", escreve o pesquisador. A visão geral expressa nos Evangelhos e nos outros livros bíblicos do começo do cristianismo, segundo o autor, é que Satanás simplesmente toma gosto excessivo por suas funções de testador da humanidade, e por isso perde as boas graças de Deus, sendo expulso do Céu.
Problemas de nomenclatura
Antes de chegar a esse ponto, porém, Kelly tenta entender as primeiras aparições do personagem no Antigo Testamento, as quais são um bocado complicadas por problemas de nomenclatura. É que a palavra hebraica satan e seu equivalente aramaico satanah (o aramaico, é bom lembrar, era a língua provavelmente usada por Jesus no dia-a-dia) podem simplesmente funcionar como um substantivo comum, que significa algo como "adversário".
"Adversário" de quem, a propósito? Um dos poucos exemplos em que "o satã" (e não Satã/Satanás, como nome próprio) aparece na Bíblia hebraica é o livro de Jó. Nesse livro bíblico, um humano de altas qualidades morais e comportamento correto, o Jó do título, perde sua família, seus bens e sua saúde por instigação "do satã", que sugere a Deus um teste para a fé de Jó.
"No livro de Jó, 'o satã' é simplesmente um membro do Conselho Divino, um dos servos de Deus cuja função é investigar os acontecimentos na Terra e agir como uma espécie de promotor, trazendo os malfeitores à justiça", explica Christine Hayes, professora de estudos clássicos judaicos da Universidade Yale (EUA). "Quando Javé se gaba de seu piedoso servo Jó, o anjo-promotor simplesmente pergunta, seguindo sua função, se a fé de Jó é sincera", diz ela. Em algumas traduções da Bíblia, em vez de ser designado como "Satã", esse personagem é simplesmente chamado de "o Adversário". Aparentemente, ele é visto pelo autor anônimo do livro de Jó como um dos "filhos de Deus" -- expressão que se refere aos anjos que formam a corte divina.
No livro do profeta Zacarias, também no Antigo Testamento, a figura de Satã (que também pode ser traduzido como "o Acusador") reaparece, desta vez questionando diante de Deus a boa-fé o sumo sacerdote judeu Josué. Enquanto Satã funciona como promotor público, um outro anjo é o advogado de defesa, que consegue a absolvição do sumo sacerdote. As aparições satânicas na Bíblia hebraica se restringem a essas passagens -- a serpente que induz Eva e Adão a comerem o fruto proibido no livro do Gênesis nunca é explicitamente identificada com Satã.
Licença para tentar
A situação e a personalidade do Diabo (palavra de origem grega cuja etimologia é a mesma do hebraico satan) mudam no Novo Testamento? A interpretação tradicional é que sim, mas Kelly tenta demonstrar que esse dado não é tão seguro quanto parece.
Primeiro, os Evangelhos e outros livros da parte cristã da Bíblia mostrariam que Deus delegou a Satanás a missão de testar a lealdade e a fé dos seres humanos, permitindo que ele tentasse Jesus no deserto ou levasse os apóstolos a fraquejar em seu apoio ao Messias. Isso também explicaria o costume de chamar o Maligno de "Príncipe deste mundo" -- um poder delegado por Deus ao Tentador enquanto o plano divino não chegasse ao fim. Também não é traçada relação direta entre a serpente do Paraíso e Satanás pelos autores bíblicos cristãos, nem mesmo por São Paulo, que traça um elo entre o pecado de Adão e a salvação trazida por Jesus.
Em sua análise do livro do Apocalipse, Kelly afirma que a última parte dessa drama cósmico é a "demissão" de Satanás de seu papel de acusador na corte de justiça divina. No capítulo 12 do livro, lê-se: "Foi precipitado o acusador de nossos irmãos, que os acusava, dia e noite, diante de nosso Deus". Essa visão é apresentada como uma profecia para o futuro, de forma que a chamada queda de Satanás e dos anjos que o seguem não poderia ter acontecido antes da criação do mundo.
"Os fatos são incontornáveis: Satã permaneceu em sua posição como o Acusador Celestial dos humanos desde os tempos da visão de Jó e Zacarias. Ele tem continuado a exercer essa função desde o presente e continuará no futuro, adicionando cristãos à sua lista de acusados. Mas ele se excede em suas acusações, com o resultado previsto de que não haverá mais lugar para ele nos Céus", escreve Kelly.
Nasce Lúcifer
Se essa é a interpretação correta dos dados sobre Satanás na Bíblia, de onde veio a história sobre a rebelião do anjo Lúcifer? Muito provavelmente da leitura que mestres dos primeiros séculos do cristianismo, como Orígenes de Alexandria (que viveu entre os anos 185 e 254 d.C.), fizeram da Bíblia, afirma Kelly.
O nome Lúcifer, ou "Portador da Luz", é só uma adaptação para o latim de Helel ben Shahar, ou "o Brilhante, filho da Aurora", termo poético usado pelo profeta Isaías no Antigo Testamento para se referir ao rei da Babilônia. Orígenes e outros pensadores cristãos, no entanto, interpretaram a passagem como uma referência à rebelião e à queda de um anjo poderoso, que teria se revoltado contra Deus por orgulho e, como vingança, levado Adão e Eva a pecar.
G1.
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