1. Introdução
Nos arts. 129,X do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), e 1.638 do Código Civil, é-nos apresentado um dos Institutos jurídicos mais polêmicos já criados: a Destituição do Poder Familiar.
Trata-se de medida que deve ser aplicada de acordo com as regras dispostas nos artigos 22 a 24 e 155 a 163 do E.C.A, combinados com o art. 1.638 do Código Civil.
A Destituição do Poder Familiar incide nos casos em que os pais ou responsáveis (1) 1) abusam de sua autoridade e faltam aos deveres (2) a eles inerentes, reiteradamente; 2) castigam imoderadamente o filho; 3) deixam o filho em abandono e 4 )praticam atos contrários à moral e aos bons costumes.
Neste sentido, importante, fazermos uma breve leitura dos arts. 22 e 23 do Estatuto menorista, in verbis,
Art.22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores , cabendo-lhes, ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.(grifo nosso)
Art. 23. A falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder.
A expressão “reiteradamente”, no item 1, deve ser frisada porque por tratar-se de medida excepcional, a Destituição do Poder Familiar, quando aplicada em razão do descaso, por parte dos pais ou responsáveis, quanto aos deveres de sustento, guarda e educação, somente deve ocorrer após a inclusão dos pais e do(s) filho(s) menor(es) em programas de aconselhamento e de auxílio, bem como de um acompanhamento contínuo por parte do Conselho Tutelar responsável, ao qual cabe avaliar o progresso do auxílio estatal(art.23, parágrafo único do ECA).
Os pais são as pessoas a quem primeiro compete o dever de oferecer aos filhos menores condições dignas para o pleno desenvolvimento e formação integral. A violação de tais deveres, contudo, poderá acarretar-lhes a perda do poder familiar. Entretanto, considerando-se os efeitos nocivos decorrentes da destituição do poder familiar, a sua decretação somente deverá ocorrer quando restar caracterizada, de forma inequívoca, prejuízo à proteção integral da criança, violando, assim o melhor interesse do menor. Neste caso, o menor será encaminhado a um abrigo de proteção. Tal medida, de acordo com o ECA, é “provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade” (artigo 101, parágrafo único). A responsabilidade dessas instituições é de cuidar de crianças e adolescentes que necessitam de proteção especial por estarem em situação de risco pessoal e social, e cujos direitos foram desatendidos ou violados.
O Melhor interesse do menor, doutrinariamente denominado como Princípio do melhor interesse da criança tem em sua origem o instituto do parens patriae, utilizado na Inglaterra como uma prerrogativa do Rei e da Coroa a fim de proteger aqueles que não podiam fazê-lo por conta própria(3) e, modernamente, foi introduzido na legislação brasileira pelo Decreto 99.710/90 que ratificou a Convenção Internacional dos Direitos da Criança; que deu origem, por conseguinte, a Doutrina da proteção integral.
A destituição do poder familiar tem por escopo principal a proteção dos filhos e não a punição dos pais. A partir, então, desta afirmativa, discorreremos neste artigo, sobre quais os resultados práticos, na atualidade, da aplicabilidade deste Instituto jurídico tão polêmico.
2. Princípio do melhor interesse da criança e a Doutrina da proteção integral.
2.1. Revisão Histórica e Conceituação.
A Convenção Internacional dos Direitos da Criança,foi aprovada, por unanimidade, na sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas de 20 de novembro de 1989.
Ratificada pelo Brasil através do Decreto n° 99.710/90, dispõe no art. 3.1, in verbis,
“todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o maior interesse da criança”(grifo nosso)
Apesar de o texto original utilizar-se da expressão “maior interesse”, o Brasil incorporou, em caráter definitivo, o princípio do “melhor interesse da criança” em seu sistema jurídico. Optamos, portanto, pelo conceito qualitativo.
O Princípio do melhor interesse da criança deu origem à doutrina da Proteção Integral que, nas palavras de Antônio Carlos Gomes da Costa, assim pode ser conceituada,
“(...)afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade de seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atual através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos.(...)”(grifo nosso)(4)
O “caput” do artigo 227 da Carta Magna descreve de maneira mais completa os direitos a serem protegidos face a aplicabilidade do Princípio do melhor interesse da criança e da Doutrina da proteção integral, abarcando os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Devendo os menores ficarem a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Reafirma, portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento basilar do Estado democrático de direito e que não se realizará se não for garantido, com primazia, à criança e ao adolescente.
Neste sentido, preconiza Rodrigo da Cunha Pereira,
“(...)O que se pode predeterminar em relação a este princípio é sua estreita relação com os direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente. Estes, além de detentores dos direitos fundamentais 'gerais' - isto é, os mesmos a que os adultos fazem jus-,têm direitos fundamentais especiais, os quais lhe são especialmente dirigidos. Garantir tais direitos significa atender aos interesses dos menores(...)”(5)
Todas as medidas concernentes às crianças, tomadas pelas instituições públicas ou privadas de bem-estar social, pelos tribunais e pelas autoridades administrativas, devem estar voltadas à manutenção dos direitos fundamentais do menor. Qualquer descumprimento desses direitos, omissão ou falhas, revela o não cumprimento da razão de ser do Estado democrático de direito, qual seja: a promoção da dignidade da pessoa humana. Este constitui-se como a base fundamental do Princípio do Melhor interesse da criança que, logo em seguida, será analisado sob a ótica do Poder Familiar.
2.2. Inter-relações com o Poder Familiar. Subsunção deste aos direitos fundamentais do menor
As atribulações por que passou a família, no mundo ocidental, repercutiram no conteúdo do poder familiar. Houve uma gradativa redução do “quantum” despótico, até que, em 5 de outubro de 1988, com a promulgação da nossa Carta Magna, consumou-se a igualdade de direitos e deveres na família, pondo fim, em definitivo, ao antigo pátrio poder e ao poder marital, ao menos teoricamente, em nosso país.
A evolução deu-se no sentido da transformação de um poder, da figura do pai provedor, sobre os demais, em um múnus com relação aos filhos. Concebido como um ônus atribuído aos pais, em decorrência da parentalidade (6), objetivando-se o melhor interesse do menor e da convivência familiar.
Saímos do opressor Direito patriarcal; onde a figura do homem era o centro do núcleo familiar, exercendo de forma despótica seu poder sobre a mulher, seus filhos e seu patrimônio; seguindo o raciocínio dos Direitos Humanos, criando uma nova ordem jurídica, mais humana, menos materialista, mais civilizada e, quiçá, menos brutal.
O artigo 227 da Constituição Federal, que estabelece o conjunto mínimo de deveres cometidos à família, a fortiori, ao poder familiar, em benefício do filho, enquanto criança e adolescente, deve ser entendido de conformidade com o que estabelecem os arts. 226, §5º e 229, ambos pertencentes Carta de 1988. Assim compreende-se que, aos pais; detentores do poder familiar,em igualdade de direitos e obrigações, referentes a constituição da sociedade conjugal ou mesmo apenas em decorrência da parentalidade (mesmo que não estejam casados ou sob o regime de união estável); bem como à toda a família(irmãos, tios, avós,etc.), de um modo geral, cabe o dever de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, a manutenção dos direitos fundamentais para sua existência e desenvolvimento saudável dentro da sociedade.
Após, discorreremos, mesmo que brevemente, sobre a titularidade do Poder Familiar, a quem pertence esse “poder-dever”, cuja existência vincula-se, necessariamente, ao completo bem-estar do menor.
2.3. Titularidade do Poder Familiar
As famílias naturais ou de fato passaram a receber cuidados estatais com a Carta de 1988. Hoje, com a matéria disposta em sede constitucional, não se pode mais declarar que as chamadas uniões livres, ficam a margem da lei. Desse modo, diante do tratamento constitucional, seus participantes devem-se mutuamente: respeito e fidelidade, assistência moral e material, competindo a ambos a guarda e o sustento dos filhos comuns.
O Direito de Família, ao receber o influxo do Direito Constitucional, foi alvo de uma profunda transformação. Podendo-se falar numa constitucionalização do Direito de Família. Neste sentido, buscando-se uma melhor compreensão dos reflexos constitucionais, obrigatória a leitura dos arts. 229 e 226 da Carta Magna de 1988.
A redação do art. 229 denota uma reciprocidade de direitos e deveres entre pais e filhos. Ambos são titulares do Poder Familiar. Enquanto os filhos são menores, cabe aos pais o dever, ao qual, imediatamente, corresponde a um direito do filho, de assisti-lo, criá-lo e educá-lo. Quando já forem maiores, cabe aos filhos o dever; que apresenta, também, imediata correlação com um direito pertence, neste caso, aos pais; de ajudá-los e ampará-los na velhice. Portanto, o poder familiar é integrado por titulares recíprocos de direitos.
O art. 226 da CF/88 trouxe o reconhecimento de entidades familiares não instituídas pelo matrimônio, a saber: a União Estável (§3º) e a família monoparental (§4º). Houve, portanto, uma grande evolução no direito de família.
O triângulo: pai-mãe-filhos, muda de conformação. Não beneficiam-se, entretanto, as uniões clandestinas; neste sentido, aplica-se mais a estabilidade do que o lapso temporal, como requisito subjetivo quando da análise da qualidade da união.
Nas palavras de Paulo Luiz Neto Lôbo,
“(...)A convivência dos pais, entre si, não é requisito para a titularidade do poder familiar, que apenas se suspende ou se perde, por decisão judicial, nos casos previstos em lei. Do mesmo modo, a convivência dos pais com os filhos. Pode ocorrer variação de grau do poder familiar, máxime quanto ao que cumpre o dever de guarda, mas isso diz respeito apenas ao seu exercício e não à titularidade.(...)”(grifo nosso)(7)
Importante a observação feita ao final da citação, uma vez que titulares do Poder Familiar são pais e filhos, independentemente dos pais estarem casados, sob o regime da União Estável ou não mais conviverem; entretanto, no quis diz respeito ao exercício do Poder Familiar, este pode ser realizado por irmãos, tios ou avós que têm a tutela ou guarda do menor, em casos de ausência, morte dos pais, ou mesmo por decisão judicial.
3. Destituição do Poder Familiar
3.1. Disposições Legais
A Destituição do Poder Familiar, como já dito anteriormente, deve ser aplicada de conformidade com as regras dispostas nos artigos 22 a 24 e 155 a 163 do E.C.A, combinados com o art. 1.638 do Código Civil; entretanto, para que a sua decretação tenha o caráter da legalidade e legitimidade, não sendo atacada por sua inconstitucionalidade; no caso concreto sob análise, deve aplicar-se o Princípio do melhor interesse da criança, estudado acima, que é abordado pelos arts. 227 e 229 da Carta Magna de 1988.
3.2. Objetivo
A adoção da doutrina da proteção integral, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 1º da Lei nº 8.069/90) fortaleceu o princípio do melhor interesse da criança, que deve ser observado em quaisquer circunstâncias, inclusive nas relações familiares e nos casos relativos à filiação.
A menção na Constituição Federal das três principais esferas políticas, a saber: Estado, família e sociedade, reclama uma ação concomitante destas. O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, a serem protegidos e garantidos por estes três agentes, com prioridade absoluta, como requer o art. 227 da Carta Constitucional, implica não apenas a sua consagração como direitos fundamentais, mas a primazia de sua garantia.
A partir do que já foi estudado nos itens anteriores, bem como somando-se às observações ora realizadas, pode-se, concluir que o objetivo maior quando da decretação da perda do poder familiar encontra-se na manutenção e garantia dos direitos fundamentais do menor, violado pelos pais, aplicando-se o princípio do melhor interesse da criança e a doutrina da proteção integral.
Tomando-se como referência essa constatação, faz-se a seguinte pergunta: considerando-se a realidade sócio-política na qual vivemos atualmente, a decretação da destituição do poder familiar é medida garantidora dos direitos fundamentais do menor ou acaba por dar continuidade a infringência e violação do princípio do melhor interesse da criança?
3.3. Perda do poder familiar e os abrigos. Violação dos direitos infanto-juvenis
Inicia-se esta seção, buscando-se uma resposta para a pergunta feita anteriormente. Traçaremos, com esta finalidade, uma rota perseguida por grande parte dos menores que foram separados de suas famílias, por terem seus pais sido destituídos de seu poder familiar.
O Estatuto Menorista, quando promulgado, constituiu um marco importante para os entendimentos da adolescência uma vez que ele amplia os grupos sociais considerados objetos de atenção governamental e de políticas públicas, estendendo a todas as crianças e os adolescentes a condição de sujeitos de direitos. Rompe-se com a distinção crianças de família / crianças sem família e propõe-se a superação do processo de estigmatização de crianças e de famílias que vivem em situação de pobreza ou miséria. Entretanto, de acordo com Bazon, no que se refere especificamente ao universo da infância e juventude assistidas, ou seja, àquelas que efetivamente precisam de ajuda por se encontrarem em situação particularmente difícil, pode-se afirmar que a promulgação do ECA não foi suficiente para apaziguar a tensão entre os fatos e a nova norma.(8)
Especificamente quanto ao Poder familiar, tem-se que antes mesmo de ser decretado pela autoridade judiciária competente, as crianças já são, em muitos casos, imediatamente encaminhados a abrigos.
Cabe ao Conselho Tutelar, entretanto, antes da tomada desta providência, orientar suas ações no sentido de reestruturar econômica e socialmente a família de origem do menor (art.23, “caput” e parágrafo único do ECA).
A própria criança ou adolescente acaba sendo o alvo de intervenção, esquecendo-se ,ou deixando-se de priorizar como deveria, a família.
Após decretada a perda do poder familiar por quaisquer das razões dispostas nos dispositivos do ECA e do Código Civil já citados, o menor é novamente direcionado a um abrigo, onde deverá ficar temporariamente até que seja encaminhado a uma família substituta (art.101,parágrafo único,E.C.A).
Conforme dispõem os arts. 92 e 94 do Estatuto Menorista, os quais enumeram os princípios e obrigações aos quais estão submetidas as entidades que desenvolvem programas de abrigo, as estratégias de atendimento dessas instituições deverão esgotar as possibilidades de preservação dos vínculos familiares, que restaram enfraquecidos, aliando o apoio socioeconômico à elaboração de novas formas de interação, referências morais e afetivas no grupo familiar.
Diversas pesquisas realizadas com o objetivo de repensar a realidade dessas casas de abrigo por todo o país(9) demonstraram que os jovens que lá encontram-se, têm o conhecimento de que aquele é um ambiente apenas provisório, que lhes tira da violência das ruas -ou até mesmo de suas casas-, oferecendo-lhes apoio e alimento. Mesmo que essas instituições sejam exemplos seguidores de todos os princípios e obrigações aos quais estão vinculados, os danos psicológicos causados a criança e ao adolescente que se vêem destituídos de um lar repleto de problemas e são inseridos, temporariamente, em outro, são enormes.
“(...)O caráter transitório dessas instituições faz com que o interesse e o vínculo aí estabelecidos sejam breves e superficiais, quando o que os adolescentes precisam é justamente construir vínculos mais duradouros que lhes permitam elaborar sua história; eles precisam de espaço para explicitarem suas dores, sofrimentos, incertezas de modo a não os encobrir em, sobretudo porque eles já estiveram encobertos por muito tempo até o momento em que os adolescentes procurassem ajuda(...)”(10)
Façamos a seguinte análise: os motivos que levaram a decretação da destituição do poder familiar são graves, evidenciando um amplo leque de situações de negligência e abandono por parte dos pais e/ou responsáveis (negligência física e/ou psicológica, abandono, maus-tratos, violência física, sexual, abuso, morte dos pais, abandono, etc.); portanto, os menores que chegam aos abrigos encontram-se, geralmente, desnutridos, doentes, com marcas físicas e emocionais dos maus-tratos sofridos na família e nas ruas. Sabem, contudo, que o abrigo que lhes é oferecido é provisório; que, ao final, se não forem entregues a uma família substituta, acabarão de volta às ruas, assim sendo, não criarão vínculos que lhes permitam ter uma base sólida de confiança com os conselheiros e orientadores do abrigo, dificultando ou impedindo, desse modo, a sua reinserção salutar na sociedade.
O estudo de Yunes, Miranda, Cuello e Adorno sobre esse tipo de instituição apontou a predominância da função assistencialista nos mesmos, fundada na perspectiva tão somente de ajudar as crianças abandonadas, havendo um frágil compromisso com as questões do desenvolvimento da infância e da adolescência. São observados, ainda, problemas funcionais, como, por exemplo, o número inadequado de funcionários, ocasionando dificuldade no cumprimento das funções, sobrecarga das tarefas e um atendimento pouco eficaz; acrescente-se a precariedade na comunicação dentro da instituição e, sobretudo, entre o abrigo e outros órgãos da rede de apoio social (escola, Conselho Tutelar, outra instituição que a criança ou adolescente freqüenta, etc.), refletindo dificuldades de articulação nessa rede.(11)
Brazelton e Greenspan consideram que a infância representa um período especialmente favorável ao desenvolvimento de certas propriedades humanas. Para eles, quando a criança é submetida a situações de privação material e emocional severas, geradas ou não pela pobreza, esse potencial de amadurecimento pode não se realizar de maneira saudável e adequada, o que implica em riscos ao processo de estruturação da personalidade, à construção da sociabilidade e a maturação psicológica.(12)
Além dos elementos negativos acima abordados, não podemos olvidar que a maior parte dos jovens que estabeleciam-se nos abrigos não são direcionados a uma família substituta. Procura-se, inicialmente, se há parentes, que possam responsabilizar-se pela guarda do menor. Dificilmente aqueles que encontravam-se aquém da vida da criança irão demonstrar qualquer interesse em tê-la sob seus cuidados, especialmente nos casos de famílias carentes e estes constituem a maior parcela daqueles que chegam ao conhecimento do Poder Judiciário.
As crianças e adolescentes que não são direcionados a uma família substituta acabam, ao final, constituindo duas realidades, que podem ser vistas distintamente, uma da outra, ou a segunda como mera continuação da primeira, a saber: 1) os menores residem nos abrigos até completarem a maioridade ou 2) fogem dos abrigos e acabam nas ruas. Apesar do grande avanço representado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, as ações e condutas dos nossos representantes no Poder Público, sejam eles o Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário, ainda são pautadas por uma visão de família ideal e nuclear – família esta longe de ser hegemônica na realidade brasileira.
A partir da aplicabilidade de um instituto, criado com o objetivo de preservação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, aliado a uma concepção utópica de família perfeita, disposta no ECA, bem como à desorganização estrutural dos abrigos e desinteresse social e político quanto ao tema, todos os direitos elencados pelo art. 227 da Constituição Federal de 1988, que originaram o discurso da Doutrina da proteção integral, são, violados não apenas pelos pais do menor que foram destituídos de seu poder familiar, mas pelo restante da família do menor, por toda sociedade e pelo Estado. Os três entes que, conforme dispõe o mesmo art.227, são responsáveis por assegurar à criança e ao adolescente os direitos que eles mesmos acabaram por violar.
4. Conclusão
O discurso de uma “incapacidade” da família foi assumido pelo Poder Público, que passou a desenvolver políticas paternalistas voltadas para o controle e a contenção social, principalmente para a população mais pobre. Essa desqualificação das famílias pobres, tratadas como incapazes, deu sustentação ideológica à prática recorrente da suspensão provisória do poder familiar ou da destituição dos pais e de seus deveres em relação aos filhos.(13)
Essa prática, infelizmente, apesar de ter sofrido transformações, em especial a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, face a instituição da Doutrina da proteção integral, deixou marcas nas condutas dos agentes públicos que, por não poderem retirar, de imediato, o poder familiar dos pais, entregam o menor a uma realidade funesta, inserindo-o num círculo no qual figuram como elementos-chave os abrigos e as ruas como fins quase certos.
Neste sentido,
“(...)toda medida de proteção que indique o afastamento da criança e do adolescente de seu contexto familiar, podendo ocasionar suspensão temporária ou ruptura dos vínculos atuais, deve ser uma medida rara, excepcional. A decisão sobre a separação é uma grande responsabilidade por parte dos agentes sociais, e deve estar baseada em fundamentação teórica sobre o desenvolvimento infantil, as etapas do ciclo de vida individual e familiar e a teoria dos vínculos; e deve ter como prioridades a comunicação na família e o investimento na reorganização dos laços familiares(...)”(14)
Diante de todo o exposto, observou-se que a destituição do poder familiar não deve ser utilizada apenas em caráter excepcional, mas ela demonstra ser uma medida falha e que não coaduna-se com seu objetivo primordial, qual seja, a proteção dos direitos fundamentais do menor, quando aplicada isoladamente. Retirar o poder familiar dos pais e entregar a criança ou o adolescente a um abrigo que lhe oferecerá guarida apenas provisoriamente, já demonstrou, não solucionar os problemas que o menor vinha enfrentando em seu lar, ao contrário, insere-o num círculo que o acabará transformando em mais um paria da sociedade.
5. Notas e Referências Bibliográficas
1.O ECA estabelece que “...o poder familiar será exercido pelo pai e pela mãe...na forma do que dispuser a legislação civil..."(art.21), enquanto o Código refere-se apenas à titularidade dos pais, durante o casamento ou a união estável, nada mencionando quanto às demais entidades familiares tuteladas explícita ou implicitamente pela Constituição. Entretanto, a norma deve ser entendida como abrangente de todas as entidades familiares, onde houver quem exerça o múnus, de fato ou de direito, como se dá com o irmão mais velho que sustenta os demais irmãos, na ausência de pais, ou de tios, em relação a sobrinhos que com ele vivem;
2.O Código Civil enumera no art. 1.634 uma série de deveres aos quais estão subordinados os pais, enquanto titulares do poder familiar, em relação à seus filhos menores; entretanto, preferimos, neste artigo, em razão de sua maior objetividade, adotar o disposto no art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não devemos nos esquecer, contudo, que ambos os dispositivos guardam relação com o art. 227 da Constituição Federal de 1988, que também consigna uma série de deveres atribuídos a família em benefício dos filhos menores;
3.Griffth,Daniel B. The best interests standards: a comparison of the state’s parens patriae and judicial oversight in the best interests determinations for children and incompetent patients. In: Issues In Law & Medicine, 1991.
4.COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Natureza e implantação do novo Direito da Criança e do Adolescente. In: PEREIRA, Tänia da Silva (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90: estudos sócio-jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p.19;
5.PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 129;
6.GOMES, Orlando. Direito de Família. 10ª ed., revista e atualizada, Rio de Janeiro: Forense, 1998.
7.LÔBO, Paulo Luiz Netto. Do poder familiar . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1057, 24 maio 2006. Disponível em:
8.Seda, “apud” BAZON, M. Psicoeducação –Teoria e Prática para a Intervenção junto a Crianças e Adolescentes em Situação de Risco Psicossocial. Ribeirão Preto: Holos, 2002, p.22.
9.Dentre elas podemos citar: Repensando a Perspectiva Institucional e a Intervenção em Abrigos para Crianças e Adolescentes, de autoria da Dra. Dorian Mônica Alpini. Disponível em: < http://pepsic.bvs-psi.org.br/pdf/pcp/v23n1/v23n1a10.pdf>; Crianças em situação de Abrigo – Casas Lares: o vínculo e a composição do espaço sob o olhar das crianças, de autoria de Joana Fontes Patiño, Rosângela Francischini, Emmanuelle de Oliveira Ferreira. Disponível em: < http://www.consec.rn.gov.br/downloads/Crian%C3%A7as%20em%20situa%C3%A7%C3%A3o%20de%20Abrigo.pdf>; Instituições de atendimento sócio-educativo à adolescentes em situação de risco do Distrito Federal: panoramas e perspectivas, de autoria de Paola Biasoli Alves, Deise Matos Amparo, Carmen Jansen de Cardenas, Bruno V. Moreira Chaves, Cynthia Bisonoto de Oliveira. Disponível em:
10.ALPINI, Mônica Dorian. Revista Psicologia, Ciência e Profissão. Artigo: Repensando a Perspectiva Institucional e a Intervenção em Abrigos para Crianças e Adolescentes. (Pgs. 70-75). Rio Grande do Sul:2003,p.04-05. Disponível em:
11.Yunes, M.A., Miranda, A.T., Cuello, S.S. & Adorno, R.S. A história das instituições de abrigo às crianças e concepções de desenvolvimento infantil [Resumo]. In: Sociedade Brasileira de Psicologia (Ed.), Resumos de comunicações científicas, XXXII Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, 213-214. Florianópolis: SBP, 2000;
12.Brazelton TB & Greenspan SI. As necessidades essenciais das crianças. O que toda criança precisa para crescer, aprender e se desenvolver. Porto Alegre: Artmed, 2002;
13.Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA); Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). Plano Nacional de Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. (Versão Preliminar). Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos – SEDH, 2006.
14.Plano Nacional de Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, 2006.
Por Paola Frassinetti Alves de Miranda, Acadêmica de direito/PB, Bacharela em Ciências Jurídicas pela Universidade Estadual da Paraíba, em Julho de 2007.
Autora de diversos artigos jurídicos, especificadamente nas áreas de Direitos Humanos e Direito Econômico.
MIRANDA, Paola Frassinetti Alves de. Família, sociedade e Estado - juntos pela violação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente: o instituto da destituição do poder familiar e os abrigos para menores. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 29.07.2008.
Boa tarde Prudente, gostária de sua opinião num artigo do meu blog, feito por um colega do curso de Direito, um grande abraço.
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