Desde que o homem passou a viver em sociedade, o crime, entendido como um fenômeno social, sempre o acompanhou. Lamentavelmente, a evolução da humanidade sempre esteve acompanhada pela prática de crimes. Porém, da mesma forma que o crime acompanha o homem desde priscas épocas, a melhor forma de combatê-lo e puni-lo também é uma questão que nos atormenta há séculos.
Logo no início da história da humanidade, vigorava o sistema da chamada “vingança privada desordenada”, no qual o particular retribuía a agressão sofrida da forma que bem entendesse e sem nenhuma preocupação com a “proporcionalidade”. Evidentemente, era uma época em que não existiam leis escritas aptas a regular a aplicação das penas, de tal forma que cada um fazia a “justiça pelas próprias mãos”.
Com o desenvolvimento das sociedades, leis absolutamente primárias foram surgindo. Um importante avanço se deu com a Lei de Talião (“olho por olho, dente por dente”), que acabou sendo adotada por diversos povos antigos. Evidentemente, a Lei de Talião não era a ideal, porém, pela primeira vez na história, as punições aplicadas passaram a ter uma (vaga) ideia de proporcionalidade entre o crime praticado e o devido revide (pena).
Aos poucos, a sanção penal, que sempre teve um viés retributivo, passou a ostentar, também, a finalidade de servir como exemplo aos demais membros da sociedade, para se evitar a prática reiterada de crimes (função preventiva).
A partir de então, penas extremamente severas passaram a ser aplicadas, justamente para incutir no corpo social o temor de ser punido. O período da “Santa Inquisição” (quando o crime se confundia com o pecado) e o dos reis absolutistas (quando as punições eram aplicadas segundo o critério subjetivo do Monarca) são bons exemplos dessa época de terror, cuja preocupação maior era, apenas, impingir o máximo de sofrimento físico e mental ao agente, sem qualquer preocupação com proporcionalidade. Até então, é bom dizer, as penas comumente aplicadas eram as de “suplícios”, “torturas”, “degredo” e, claro, morte. A segregação cautelar (prisão) não era vista como pena, mas sim, e apenas, como forma de manter segregado o criminoso até o efetivo cumprimento da sentença.
Com a Revolução Francesa, a época das atrocidades punitivas teve um fim. As leis passaram a ser escritas, reunidas em codificações “modernas”, cujos preceitos se inspiravam nos ideais iluministas (“legalidade, fraternidade, igualdade”), vale dizer, os mesmos que tinham acarretado o fim do antigo regime. E, aos poucos, as sanções penais passaram a ter uma terceira, e relevantíssima, função, qual seja, a de ressocializar o criminoso. Foi nesse momento, então, que a prisão passou a ser entendida como a principal forma de punição.
Estabeleceu-se a ideia, portanto, de que a sanção penal, além de retributiva e preventiva, também deveria servir à recuperação do agente, ou seja, o período durante o qual o agente estivesse cumprindo a sanção deveria servir para recuperá-lo, fazê-lo pensar no mal que praticou.
E, de fato, assim é que deve ser. A pena não pode ser entendida como uma forma de “tortura” imposta ao criminoso, mas sim, e principalmente, como uma punição proporcional ao mal praticado, necessária para a readequação do agente ao saudável convívio em sociedade.
Não é um exagerado rigor no cumprimento da pena que irá proporcionar uma ressocialização mais, ou menos, eficiente. Ou seja, não é preciso impor um sofrimento exagerado ao condenado para que a pena seja cumprida.
Evoluímos, ainda bem. Hoje temos um Direito Penal mais humano, justo e preocupado com a dignidade da pessoa humana.
Será mesmo?
Recentemente, seja em razão da notícia de que a cidadã Suzane von Richthofen iria progredir ao regime semiaberto, seja por conta da prisão do ex-médico Roger Abdelmassih, boa parte da nossa sociedade deu claras mostras que, além de ser vingativa, também defende, sem qualquer pudor, a ideia de que presos sejam submetidos a condições degradantes e desumanas, como forma de expiar a pena. Alguns até voltaram a bradar pela aplicação das penas perpétua e de morte.
Lamentavelmente, para muitos, o autor de crimes graves deveria pagar pelos seus delitos da pior forma possível, ou, no mínimo, com intenso “sofrimento”.
De efeito, de um lado, muitos mostraram indignação com o fato da cidadã Suzane von Richthofen ter obtido o direito de progredir ao regime semiaberto. De outro, muitos desejam que o ex-médico permaneça na cadeia, indefinidamente.
Porém, para estes mais radicais, é preciso lembrar que o nosso Direito, acertadamente, não prevê a pena de morte e nem, tampouco, a pena perpétua. O nosso sistema penal adotou, expressamente, o chamado sistema progressivo, por meio do qual o agente, a partir dos seus méritos e do seu comportamento carcerário, progride, pouco a pouco, de um regime mais duro para outro mais brando até alcançar a liberdade.
Notem bem: o modelo de cumprimento progressivo da pena está diretamente ligado à função ressocializadora da sanção penal. Paulatinamente, conforme o condenado vai dando mostras claras e evidentes de “recuperação”, ele adquire o direito de descontar a sua pena em um regime menos rigoroso, com menor vigilância do Estado. E isso vale para todo e qualquer preso, independentemente do crime que tenha cometido.
Na situação específica do ex-médico Roger Abdelmassih, seja em razão da sua idade já avançada, seja por conta da pena extremamente alta que lhe foi aplicada, é bem capaz que ele permaneça preso, em regime fechado, até o final dos seus dias (sempre lembrando que ele irá cumprir 30 anos preso, no máximo).
Já no que diz respeito ao caso específico da Suzane, é importante mencionar, desde logo, que, ao menos segundo a letra fria da lei, ela tem o direito de progredir de regime já há muito tempo. A sua manutenção no regime fechado até agora, embora justificada em laudos psicológicos eminentemente subjetivos e de técnica ultrapassada, já estava à beira do abuso e da arbitrariedade.
Queiram ou não, ela preencheu os requisitos legais e fazia por merecer, sim, a progressão ao regime semiaberto.
Nesse ponto, a forma sensacionalista com que certa parte da mídia tratou da questão foi, sem dúvida, algo desumano e altamente covarde. Ora, passados mais de 12 anos desde o fato criminoso, o que está hoje em jogo não é mais a gravidade do crime por ela cometido. Com relação aos delitos, ela já foi processada, julgada e condenada, ou seja, a Justiça já se manifestou a respeito e aplicou a lei como deveria.
A questão, agora, era bem outra.
Por qual razão ela não poderia progredir ao semiaberto? Ora, se ela cumpre com os requisitos legais, é evidente que a progressão não pode ser obstada. Dir-se-á pelas ruas que a nossa lei é fraca, já que, de uma pena superior a 30 anos, ela cumpriu apenas 12 “atrás das grades” e, doravante, estará no regime mais brando.
Mas, como já dito antes, a nossa legislação penal adotou o sistema progressivo de cumprimento de pena. Logo, não é permitido ao Estado manter, indefinidamente, um preso em regime fechado. A progressão de regimes é um direito previsto em lei e, como tal, deve ser garantido pelo Poder Judiciário. De mais a mais, engana-se quem pensa que o regime semiaberto equivale à plena liberdade. Muito pelo contrário! Tanto o regime semiaberto quanto o aberto são “etapas” do cumprimento da pena privativa de liberdade. Ou seja, tanto está preso aquele que desconta a pena em regime fechado como aquele que está no semiaberto ou aberto.
Contudo, de repente, a discussão em torno da gradativa reinclusão de Suzane ao meio social perdeu espaço, arrefeceu, minguou. E tudo porque, para surpresa e espanto geral, a própria Suzane redigiu um texto para solicitar ao Poder Judiciário a sua permanência no regime fechado; o que acabou sendo deferido pelo magistrado.
E, pasmem! A principal justificativa dada por Suzane para permanecer no regime fechado foi a manutenção da sua própria segurança, ou seja, ciente de que vivemos em uma sociedade vingativa e violenta, ela, até outro dia considerada como a mais perigosa das criminosas, preferiu justamente para se proteger de quem está do lado de fora, isto é, de nós, supostos cidadãos de bem.
Isso só vem a mostrar a total inversão de valores em que vivemos.
Essa decisão de Suzane, inédita e surpreendente, deixa claro que, como bem preceitua o ditado popular, vivemos num mundo tão louco, vingativo e desordenado a ponto de se poder afirmar que, de fato, já há “banana comendo macaco”.
Euro Bento Maciel Filho é advogado criminalista, mestre em Direto Penal pela PUC-SP e sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 1 de setembro de 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário