Entrou em vigor no final de janeiro de 2014 a nova Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que vem sendo chamada pelas empresas de “Lei da Compliance”. Apregoa-se que ela poderá ser uma solução quase mágica para tantos e vários casos de corrupção que, se não mais frequentes, ao menos se tornaram bastante evidentes desde algum tempo.
Diferentemente de considerações elogiosas ao governo que a instituiu, de necessário combate ao mal do novo século, ou, ainda, de terror posto ao meio empresarial, talvez caibam algumas considerações de fundo quanto às razões da nova legislação, seus efeitos e seus vícios, os quais podem prejudicar a atividade empresarial. Por certo, ainda não é o momento de comentário mais aprofundado, já que ainda caberá regulamentação de muitos dos dispositivos. Mas se devem aclarar alguns pontos, empresariais, penais e administrativos.
É do dispositivo da nova norma a punição por responsabilidade objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública nacional ou estrangeira. Tais atos constituir-se-iam aqueles contra o patrimônio nacional ou estrangeiro que versem em, genericamente, prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público. Pode-se ver, pois, a enormidade de condutas alcançadas, e com vários conceitos jurídicos indeterminados, o que compromete o rigor sancionatório pretendido.
A nova lei segue uma tendência mundial, e sobre isso muito já se falou. Legislações estrangeiras recentes, pretendendo dar solução aos dramas vividos por crises e escândalos de ordem mundial, foram promulgadas mundo afora, sendo de se mencionar a FCPA estadunidense e a Bribery Act,britânica, que, com forte impulso de entidades internacionais, como a OCDE, dão o tom para um novo momento de regulação empresarial. O Estado, reconhecendo sua incapacidade, optou por buscar não mais uma regulamentação hetero-imposta, mas o que vem se chamando de uma auto-regulamentação regulada. Algumas premissas são dadas por ele, Estado, cabendo às empresas buscar códigos de conduta internos para melhor se adequarem à nova realidade.
A partir dessa premissa, reconhecem-se situações diversas. A primeira, diz respeito à projeção que o tema corrupção assume no firmamento atual. A segunda, diz respeito à privatização — tratamento dado pela realidade privada, e não mais estatal — do combate à corrupção. Outorga-se, por assim dizer, a responsabilidade inicial de combate à corrupção às próprias empresas, e não mais aos entes estatais. Isso acaba por destacar ainda mais o grande tema da moda, que é o da governança corporativa. Mas esta não se dá de forma isolada. Como se pretende uma autorregulação regulada, verifica-se que o não cumprimento dos controles internos das empresas acaba por gerar sanções por parte do Estado, em termos do que se convencionou chamar de criminal compliance.
Pois bem. De pronto verifica-se certa falácia da Lei. Muito embora ela não seja explicitamente uma norma penal, ela tem embutidas diversas lógicas penais. A primeira delas, em termos preventivos, de dizer respeito ao combate prévio (por vezes mais eficaz, é verdade) de situações de corrupção. Sendo certo que o Estado tem retumbantes fracassos no combate desse tipo de crime, parece ser, em princípio, correta a opção legislativa. Ocorre que a lógica penal vai mais longe. Menciona, inicialmente, os termos de criminal compliance ofertando, ao seu descumprimento, sanções administrativas que podem chegar na casa de R$ 60 milhões ou até mesmo ao fechamento da empresa (dissolução compulsória), através de ordem judicial.
Talvez aqui o Brasil tenha dado um passo similar à Alemanha ou à Itália, que preveem sanções unicamente administrativas às empresas. O caso Siemens, na Alemanha, com condenação na faixa de centenas de milhões de euros por atos de corrupção e alteração em toda a legislação regulamentar naqueles países, é fator emblemático disso. Quer parecer, no entanto, que o Brasil caminha mais a trilha deixada pela Espanha, que em 2003 instituiu sanções administrativas às empresas, e, em 2010, acabou por proclamar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Esse, contudo, é um vaticínio futuro e incerto.
As questões a preocupar o mundo jurídico, e mais do que tudo, o mundo empresarial, dizem respeito a pontos penais e econômicos. Por primeiro, que se diga a dificuldade em se ter a própria defesa de empresa, já que a responsabilidade é objetiva. Como não se entender aqui, se existe uma lógica penal embutida, da presença de um evidente cerceamento de defesa?
Por outro lado, que se veja que, em seu artigo 7º, faz-se a previsão de como devem ser feita a dosimetria das penas. Dentre muitos itens, tem-se a referência à existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica (VIII). Essa a explícita menção ao criminal compliance. Não se sabe ainda quais os parâmetros que o Estado virá a dar ou exigir como contrapartida da regulação, mas fundamental é a presença e acompanhamento multidisciplinar de profissionais do Direito para melhor implementação do mesmo.
Por outro lado, e aqui mais uma falácia da nova legislação, uma vez mais se verifica a questão criminal na previsão do artigo 16, ao dispor sobre o acordo de leniência. Segundo sua redação, a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte: a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.
Como consequência da leniência, menciona-se que a sua celebração isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do artigo 6o e no inciso IV do artigo 19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável (parágrafo 2º). Muito embora se possa dizer que aqui a leniêncianão tem fundo penal, é de se dizer que a proximidade com similar disposição do Cade faz dizer que a lógica penal mais uma vez é patente. E tal como no Cade a ingerência administrativa em esfera penal pode acabar por violar alguns princípios que serão, ainda, muito debatidos no Judiciário. Por todas essas razões, a Lei parece ter aura administrativa, mas, substancialmente, caráter penal, como já disse, em outro momento, a Corte de Cassazione italiana acerca de similar legislação daquele país (Sez. II, 30.1.2006, nº 3615). Mas não só.
Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao inciso que menciona como conduta irregular“dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional”. Imagine-se a aplicação desta norma com referência a exigências descabidas para as empresas. Não raro o Ministério Público intima as empresas a apresentar documentos protegidos pelo sigilo fiscal; ou mesmo o fiscal de um município acerca de dados relativos a tributos federais. Isto ocasionará uma verdadeira “porta do inferno”, para usar a expressão de um advogado criminalista, Filipe Silveira.
A questão federativa ressurge no debate quando estabelece competência à União, Estados, Distrito Federal e Municípios a possibilidade de ajuizar ações com vistas a penalizar as “pessoas jurídicas infratoras”, aplicando-lhes pena de perdimento de bens, direitos e valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos com a infração. Imagine-se como esse poder será exercido contra empresas que doem recursos a eventuais inimigos políticos (ou que não doem aos amigos...), pelos nos mais de 5 mil municípios brasileiros. Além dessa penalidade — existem outras! — cada qual desses entes públicos poderá ajuizar ações tendo como pena a perda de incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas ou instituições financeiras ligadas ou controladas pelo Poder Público, direta ou indiretamente, pelo prazo de 1 a 5 anos. Será que uma ação movida pelo município A contra uma empresa e julgada procedente a impedirá de receber empréstimos do BNDES, que é uma instituição financeira federal? Entende-se que não, sob uma ótica federativa. Por outro lado, quem pratica atos de corrupção é aético, o que é um conceito que não comporta meios-tons — ou se é ético ou não se é. Essa dúvida demonstra o quanto de problemas esta norma poderá trazer ao dia a dia empresarial.
Além disso, as empresas, que já convivem com o Cadin (vulgarmente conhecido como cadastro de inadimplentes, criado por diversos entes federativos), o Serasa, a CND, dentre várias outras, terão mais uma sigla para se preocupar, que é o CNEP — Cadastro Nacional de Empresas Punidas, justamente para dar publicidade às punições que se pretende aplicar com esta nova lei.
Enfim, os problemas que podem surgir, em face da concentração de poderes nas mãos dos entes públicos que podem vir a ser utilizados de forma abusiva tem que vir a ser acompanhados de medidas que foram esquecidas, mas que são de suma importância: a responsabilização patrimonial pessoal do servidor público (federal, estadual, distrital ou municipal) que agir com dolo ou má-fé na aplicação desta norma contra empresas que vierem a ser inocentadas da imputação que lhe tiver sido apontada. Parece jocosa a situação de que uma empresa tenha que passar pelo ordálio de todas as imputações e penalidades descritas nessa lei e, ao final, caso venha a ser considerada inocente, tenha que vir a pleitear uma indenização dos cofres públicos. O servidor que agir de má-fé deve temer a perda de seu patrimônio como punição pela má conduta, e não o esconda detrás do biombo estatal, acobertado pelo direito de regresso que raramente é perseguido. A norma do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição deve ser revista nesse sentido. Alguma forma de responsabilização patrimonial pessoal deve haver, para além da responsabilização criminal, já timidamente estabelecida no artigo 319 do Código Penal Brasileiro.
O exemplo estrangeiro deve, pois, ser tomado em conta, até para se saber a abrangência possível da lei, com controle do Estado e preservação de Direitos, sob pena de violência e atentado às empresas muito para além de um ilusório e simbólico combate à corrupção — cuja repressão deve ser perseguida através de medidas jurídicas adequadas e equilibradas, próprias de um Estado Democrático de Direito.
Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.
Renato de Mello Jorge Silveira é advogado e professor titular da Faculdade de Direito da USP.
Revista Consultor Jurídico, 5 de fevereiro de 2014
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