segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Tribunais de exceção da Copa só interessam à Fifa


Por 

A Copa do Mundo se aproxima. Não se pretende aqui fazer crítica aos gastos absurdos. A questão é exclusivamente o processo penal express que a Fifa pretende impor ao Brasil na tutela dos seus interesses patrimoniais. Por isso vale a pena recordar o padrão Fifa dos Juizados da Copa da África do Sul.[1].
Antes, porém, o professor Francisco Martins[2], da UnB, aponta que no amor pelo futebol repetimos a posição de quem ama: a realidade psíquica acaba dominada pelo desejo e a fascinação, em puro devaneio pulsional. Daí que devolve a possibilidade de Juvenal, ou seja, pão e circo, supletivamente para saciar fome (d)e amor. Se o futebol pode ser entendido como desejo, o momento do gol é o da descarga pulsional. Explode, extravasa e não acaba. Sempre mais. É inesgotável. Logo, seu efeito cativante. Não há como ir mais longe na leitura via psicanálise. O que se pode antecipar, de qualquer forma, é que o futebol ocupa um lugar de extravasamento da agressividade. Basta ver o público no exato momento em que a bola entra no gol.
Por sua vez, a Lei Geral da Copa (Lei 12.663/2012) garante os direitos patrimoniais da Fifa de maneira obscena. A simples leitura dos tipos penais assusta. Será proibido reproduzir-se quaisquer símbolos oficias, ou seja, pirataria (não se está defendendo a pirataria, mas a criminalização desse modo é condenável), devendo-se pagar os preços estabelecidos pela Fifa. Também é proibido o denominado marketing de emboscada ou por associação e também intrusão, vedando a utilização de publicidade indireta e também de uniformes de empresas ou marcas na arquibancada[3].
Talvez ninguém tenha dúvida sobre a importância de um novo Código de Processo Penal. O CPP de 1941 está ultrapassado em diversos institutos e mesmo com as reformas parciais, ainda que o tenham melhorado em alguma medida, não atendem aos anseios de sistematicidade, apontam, dentre outros, os membros da comissão, professores Jacinto Coutinho e Eugênio Pacelli. Precisa-se, assim, substitui-lo na totalidade! As contingências ideológicas e políticas nas diversas iniciativas históricas para tanto geraram, ao final, o Projeto de Lei 156, do Senado Federal, atualmente esperando relator na Câmara dos Deputados, com forte pressão da bancada de deputados delegados de Polícia, policiais militares e membros do Ministério Público, os quais, por se acharem especialistas, arvoram-se na condição de “relatores natos”. Devem participar das discussões parlamentares, claro. Todavia, para condição de relator é necessário jurista que não irá defender interesses corporativos. Paralelamente a essa discussão importante, sem muito alarde, como aliás se deu com a aprovação recente da lei “flex” das Licitações para Copa do Mundo, articula-se o movimento de Lei de Exceção, ou seja, os já batizados “Tribunais da Copa”, impostos na África do Sul e que se avizinham por aqui.
Na África do Sul, em 2010, a Fifa exigiu a aprovação de leis especiais, com validade expressamente vinculada à Copa do Mundo, pelas quais foram estabelecidos: a) novos tipos penais mais severos, e, b) processo penal express, com acusação, instrução e sentença em poucas horas. O fundamento seria a eficiência da segurança pública, uma vez que as vítimas e autores seriam turistas.
Traduzindo em números, com a ajuda de Ana Carolina Ceriotti: ocorriam, em média, 50 homicídios por dia na África do Sul, cerca de 18 mil casas eram assaltadas por ano e 15 mil carros roubados. Para colocar em prática as exigências da Fifa e instituir os tribunais “especiais”, que trabalhavam 15 horas por dia, o país gastou em torno de US$ 10 milhões. Estima-se que o custo de cada processo tenha sido de US$ 100 mil. Lembre-se que o país é pobre e não megalomaníaco como o nosso! Tal como no Brasil, a maior parte da população carcerária é pobre e aguarda, sem condenação, o devido processo legal, preso cautelarmente. Durante a Copa foram julgados mais de 75 casos e proferidas mais de 30 sentenças. E o que julgaram? Na maioria dos casos, as violações eram de revenda de ingressos, brigas entre torcedores e, principalmente, infrações referentes a promoções e propagandas de marcas não patrocinadoras e não autorizadas pela Fifa. Daí a importância comercial de uma Justiça Penal a serviço da entidade.
Dentre os casos mais absurdos, cabe destacar o do nigeriano que foi condenado a três anos de prisão por portar cerca de 30 ingressos para revenda. Também houve a detenção das holandesas que usavam vestidos laranja durante o jogo da Holanda. Segundo a Fifa, elas foram conduzidas por estarem fazendo propaganda de uma marca de cerveja (clique aqui para ler), o que infringiria, no Brasil, o artigo 22 da Lei Geral da Copa. As holandesas somente foram liberadas após a Fifa e a cervejaria chegarem a um acordo, mas poderiam ter permanecido detidas com base na legislação do rendatário do país. Além de abusivas, essas normas cumprem uma função clara: proteger os interesses econômicos da Fifa, em cujo poder está o monopólio do comércio das marcas que patrocinam o evento.
Importante atentar ao fato de que tais julgamentos ocorreram, no mais tardar, da noite para o dia. Isto é, podem-se citar outros casos que também tiveram certa repercussão e circularam pela internet e que evidenciam a “eficiência” dos tribunais da Copa, como, por exemplo: “Uma mulher roubava a carteira de uma turista japonesa na Cidade do Cabo, por exemplo. No dia seguinte, o caso era ouvido e a acusada, sentenciada. Dois homens armados assaltavam um grupo de jornalistas na quarta-feira, a polícia os prendia na quinta e, na sexta à noite, eles já haviam sido julgados e começavam a cumprir penas de 15 anos de prisão.” (clique aqui para ler)
Com isso, é fácil perceber como o sistema de julgamento dos crimes praticados durante a Copa, bem como os próprios tribunais de exceção criados constituem uma séria e grave afronta aos princípios do processo penal, principalmente ao contraditório, devido processo legal substancial, bem como do próprio Estado Democrático de Direito.
O que pode acontecer, tal como se deu por lá, é a sedução pelo discurso da eficiência e da velocidade, sem garantias mínimas. A juíza Cherril Loots, por exemplo, responsável por um dos tribunais especiais da Copa, não só aprovou medida, como afirmou que a mesma deveria continuar, não devendo se limitar apenas ao período dos jogos. Para ela, os tribunais da Copa resolvem o problema da Justiça da África do Sul que, segundo declara, são muito morosos (clique aqui para ler). O professor de Direito (constitucional, frise-se) Pierre de Vos, da Universidade da Cidade do Cabo, em entrevista, disse estar surpreso com a eficácia dos tribunais implementados durante o campeonato e, assim como a juíza, elogiou a medida. Para a juíza, o professor, e para muitos outros, os tribunais da Copa são bons porque são eficientes, pouco importando os direitos e garantias que eles claramente violam e sem considerar o fato de serem de exceção. Muitos estudiosos em segurança sul-africanos também defenderam que esses tribunais deveriam ser habilitados para decidir crimes comuns mesmo após a Copa, como, por exemplo, assaltos e invasões de domicílio.
No Brasil, com base no Estatuto do Torcedor e de experiências equivocadas de se levar o Poder Judiciário para dentro dos estádios, pretende-se criar Tribunais da Copa — no fundo, tribunais da Fifa — nos quais os direitos patrimoniais restarão tutelados, sob a bandeira cínica do coletivo.
Esse discurso, portanto, faz com que, perante parte considerável da população, seja aceita a intrusão de regulamento imposto por associação internacional, de duvidosa reputação, capaz de penetrar no ordenamento do Estado anfitrião dos jogos mundiais modificando sua própria Constituição e suprimindo os direitos e garantias que foram arduamente conquistados na história de um processo penal, francamente autoritário. Daí se extrai como um modelo de Processo Penal democraticamente inconcebível ganha adeptos e encontra perigosa sustentação em um número considerável de sujeitos, entre eles grandes estudiosos do Direito, jogados na inautenticidade democrática e seduzidos pelo discurso da “necessidade”, a qual não encontra limites.
Se a inconstitucionalidade desses tribunais e regulamentos é tão evidente, o que, então, os legitima a ponto de até mesmo estudiosos — inclusive da área de direito constitucional — os defenderem de tal modo a sugerir sua perpetuação? Acredita-se, nesse aspecto, que o discurso da eficiência entra de modo incisivo no senso comum teórico (Warat), fazendo com que sejam deixadas de lado as garantias mais ínfimas do acusado em prol de uma sentença proferida em 24 horas, sintoma da chamada McDonaldização do processo penal. Resta saber se no caso do Brasil o Supremo Tribunal Federal terá tempo para uma partida de “inconstitucionalidade” ou mesmo se o STF terá coragem de fazer o gol — que não seja contra, claro!
A criação de Tribunais da Copa, em franca violação da soberania brasileira e da tradição democrática, ainda em construção no período posterior à Constituição de 1988, não é uma projeção futura ou simplesmente um fato isolado que aconteceu em um país longínquo, mas sim já vem se tornando realidade na rotina dos brasileiros.
Nesse contexto pode-se facilmente notar que a tendência dos Tribunais de Exceção da Copa do Mundo, travestidos de eficientes, é se perpetuarem, escondendo e mascarando seu caráter ofensivo aos direitos essenciais do acusado, previstos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto de San José da Costa Rica e em vários outros ordenamentos internacionais inquestionavelmente superiores do que qualquer regulamento imposto pela Fifa em prol de seus próprios interesses (econômicos) que vise restringir essas garantias.
Uma partida de futebol possui 45 minutos para cada lado, ou seja, 90 minutos ao total. Imagine-se um jogo entre Brasil e Lituânia, em que ao final do primeiro tempo o placar apresente-se como 5 x 0 em favor do Brasil. As possibilidades de a Lituânia (com todo o respeito) reverter o placar são quase nulas. Assim, o árbitro decide acabar o jogo, decretando seu final. A sua lógica não seria tolerada por qualquer das partes justamente porque sua função é garantir as regras do jogo e não poderá legitimamente assim agir. Aplicada aos Tribunais da Copa, a evidência ganha o espaço do fair playe se antecipa o resultado, condenando-se sem o tempo regulamentar da partida/processo. E isso é mais econômico, além de prender somente os selecionados pelo sistema de controle, bem sabe a Criminologia Crítica (Vera Regina Pereira Andrade).
Por fim, cumpre ressaltar que o panis et circensis que impera no Brasil durante o período da Copa do Mundo constitui o cenário perfeito para a instauração de ordem jurídica externa e totalitária, capaz de cometer as mais graves violações aos direitos dos sujeitos, não apenas brasileiros, mas também estrangeiros. Além disso, não será surpresa se o fato de milhares de pessoas terem suas liberdades arbitrariamente restringidas por força de uma organização internacional com fins eminentemente lucrativos seja minimizado (pode-se dizer até ocultado) diante de uma gloriosa vitória do Brasil sobre os hermanos ou, ainda, a conquista do tão sonhado hexa!
É a paixão nacional, o país inteiro para. E, depois de um mês, os seduzidos voltam à sua rotina e nada mais se comenta pelos próximos quatro anos, exceto por aqueles que pelas próximas Copas continuarão sentindo na pele as consequências de uma propaganda feita no lugar e hora errados ou de alguns ingressos vendidos informalmente, embora nunca se saiba quanto poderão ser pegos... todo cuidado, pois, é pouco. As perguntas que ficam são: a) teremos juízes no Brasil ou apenas árbitros da Fifa? b) O Tribunal da Copa virará o Tribunal do País da Copa de efeitos permanentes? O que você acha? Isso será debatido no 1º Congresso de Direito Desportivo da UFSC, organizado pelo Prof. Leonardo Schmitt de Bem, na UFSC.
Talvez a profecia de Raul Seixas tenha se realizado: “A solução pro nosso povo/ Eu vou dá / Negócio bom assim / Ninguém nunca viu / Tá tudo pronto aqui / É só vir pegar / A solução é alugar o Brasil / Nós não vamo paga nada/ Nós não vamos paga nada/ É tudo free! Tá na hora agora é free/ Vamo embora / Dá lugar pros gringo entrar / Esse imóvel tá prá alugar!!!”

[1] O tema foi objeto de um artigo publicado anteriormente em conjunto com Ana Carolina Ceriotti: Conferir: MORAIS DA ROSA, Alexandre; CERIOTTI, Ana Carolina. Será que o novo CPP somente virá em 2014? Os perigos dos Tribunais da Copa do Mundo. In: MALAN, Diogo; MIRZA, Flávio. 70 anos do CPP brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 13-22.
[2] MARTINS, Francisco. Footanálise: porque o futebol nos é tão vital? Brasília: Universa, 2010.
[3] a) art. 30: “Reproduzir, imitar, falsificar ou modificar indevidamente quaisquer Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA”, punindo-se com pena de detenção (3 meses a 3 ano ou multa); b) art. 31: “Importar, exportar, vender, distribuir, oferecer ou expor à venda, ocultar ou manter em estoque Símbolos Oficiais ou produtos resultantes da reprodução, imitação, falsificação ou modificação não autorizadas de Símbolos Oficiais para fins comerciais ou de publicidade”, com pena de detenção (1 a 3 meses ou multa); c) art. 32 o Marketing de Emboscada por Associação, ou seja, “Divulgar marcas, produtos ou serviços, com o fim de alcançar vantagem econômica ou publicitária, por meio de associação direta ou indireta com os Eventos ou Símbolos Oficiais, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, induzindo terceiros a acreditar que tais marcas, produtos ou serviços são aprovados, autorizados ou endossados pela FIFA”, com punição de detenção (3 meses a 1 ano ou multa). “Na mesma pena incorre quem, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, vincular o uso de Ingressos, convites ou qualquer espécie de autorização de acesso aos Eventos a ações de publicidade ou atividade comerciais, com o intuito de obter vantagem econômica.”; d) art. 33 prevê o marketing de emboscada por intrusão: “Expor marcas, negócios, estabelecimentos, produtos, serviços ou praticar atividade promocional, não autorizados pela FIFA ou por pessoa por ela indicada, atraindo de qualquer forma a atenção pública nos locais da ocorrência dos Eventos, com o fim de obter vantagem econômica ou publicitária”, com pena de detenção (3 meses a 1 ano e multa). Em face de interesses patrimoniais, contudo, a ação penal é pública condicionada a representação. (art. 34), podendo aplicar-se o regime do Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003), majorando-se, também, o valor da multa em até 10 vezes (art. 35 da LGC). Trata-se de Lei Temporária (art. 36), cujos crimes praticados no seu espaço temporal, prevalecem (Código Penal, art. 3º - conferir aqui)

Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Revista Consultor Jurídico, 9 de novembro de 2013

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog