terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Artigo: O papel da educação em direitos humanos na prevenção das violências


1. Educação, sociedade e violência

Acaba de ser realizado um grande esforço de consolidação e definição dos lineamentos das diretrizes curriculares para os cursos de graduação em filosofia, pedagogia e ciên cias sociais, no sentido da definição dos conteúdos e práticas que deverão nortear a ação formativa para a educação em direitos humanos. Este esforço foi dado no quadro mais amplo de ações conjuntas que envolvem universidades brasileiras, em especial a UFPB, o governo, através do Ministério da Educação-SECAD e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, no sentido de colocar em prática e promover as condições para o alcance das metas contidas no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Este encontro se deu no PPG da UFPB, ao longo dos dias 04 e 05 de dezembro de 2009. Crê-se que, numa próxima etapa, outros cursos, entre eles o curso de direito, sejam contemplados com os mesmos esforços de formação para a cidadania.
Nesse sentido, cabe refletir se o ensino jurídico estará preparado para acolher estas iniciativas. E isto porque se trata de um desafio dentro da cultura de área, uma vez que a formação no direito tem priorizado esforços de reprodução de conhecimento, dentro dos estritos limites da formação para o mercado de trabalho, perdendo-se um pouco o valor da formação para a cidadania e para a participação ativa na vida democrática. Mas, pode-se perguntar: este tipo de formação colaboraria com o que, exatamente? Este tipo de iniciativa permite ao educando ser contemplado com uma visão de mundo mais crítica e reflexiva, mais operante civicamente, mas, sobretudo, é capaz de favorecer a conversão do desenvolvimento de uma cultura marcada pelas diversas formas de violência, em direção à formação de uma cultura centrada em preocupações contidas nas normas de direitos humanos. Sem dúvida, as violências (de gênero, de classe, de raça, de geração...) se disseminam por inúmeros fatores, entre os quais se encontram a ignorância, as carências, a falta de reconhecimento, as práticas sociais contra-exemplares, mas também por fatores de aceitação e assimilação inculcada de sua existência. As violências contra a mulher, contra o menor infrator, contra o preso, contra uma minoria social, em suas diversas formas, como a violência física, a psicológica, a moral, a patrimonial, se desenvolvem encontrando uma cultura de aparição que lhes seja favorável. Aí estão ações (de danificar, de provocar o mal, de realizar a dor, de sadicamente tirar proveito do outro), mas também omissões (de não prevenir, de não reparar, de não educar, de não instruir, de não obstruir o comportamento lesivo).
Assim, o combate às inúmeras formas de violência, em sua gênese, parece ser uma tarefa para a qual a educação em direitos humanos tenha muito a contribuir. Claro, nunca solitariamente. A ausência sistemática do Estado pode ser apontada como um dos grandes fatores a consentir com o estado atual da violência, mas certamente não é a causa histórica de todos esses processos de injustiça social. Desta ausência se nutre, sem dúvida alguma, uma série de atitudes de contraste, que falam a linguagem do crime organizado, da aparição de redes intra e extracarcerárias de organização criminal, apontando para a formação de lideranças que não aquelas que confirmam a autoridade do Estado de Direito. Em meio a isto tudo, aparecem os grandes problemas hodiernos, que são revelações da opressão social: sensações individuais de insatisfação não compensada; afrouxamento das estruturas sociais e crescimento da impunidade; maus-exemplos das lideranças políticas através da corrupção; injustiça e clivagens sociais; inexistência de lugar para o discurso oprimido; falta de alternativas paradigmáticas no horizonte próximo; complexidade dos fatores sociais contemporâneos.
Nesse contexto, vive-se socialmente uma sensação de recuo anticivilizatório, o que empurra toda a sociedade para dentro da latrina da pulsão de morte, convertendo-a em seu nervosismo, a civilização contra si mesma, permitindo que a violência apareça como sintoma de derrapagem da forma de normação e regulação da vida social. Por isso, nossos tempos são marcados por violência, intolerância, ataque, sabotagem, crueldade. A frustração social permanente conduz a um movimento anticivilizatório, que escancara e torna cínica a violência, na medida em que assume a regularidade do cotidiano, e não a espantosa configuração da surpresa, e em que é assumida como um fator de normalidade na composição do jogo social, mesmo do jogo social reivindicativo e emancipatório.

2. A tarefa da educação em direitos humanos

A tarefa da educação em direitos humanos é a de jogar contra a maré dos curto-circuitos sociais, permitindo a produção de energias sociais necessárias, que sempre partem de transformações reais, aliadas às de consciência, dos parceiros do jogo cidadão e social, no sentido promoção do princípio de interação e do princípio de vida. Eis a forma e o conteúdo preciso das determinações da dignidade da pessoa humana.
Por isso, promover o despertamento e a capacitação para a replicação e multiplicação de valores de não-violência, tolerância, solidariedade, igualdade cidadã, democracia plena, liberdade, entre outros, deve contribuir para este processo de consolidação da democracia brasileira, cuja tarefa se encontra em andamento.
A educação que se quer, bem como, o ensino jurídico de que se carece, deve sensibilizar, tocar, atrair, fomentar, descortinar horizontes, estimular o pensamento para estas premissas do convívio social. Educando apenas na técnica do direito, para o mercado de trabalho e suas demandas imediatas, formam-se trabalhadores bem qualificados, mas não necessariamente cidadãos dispostos a contribuir com a melhor condição do convívio social.

3. O ensino jurídico preparado para a humanização

Qual o método e qual a finalidade da educação e da pesquisa em direitos humanos? Qual seria, senão a humanização. Por isso, se torna extremamente conveniente pensar com, e através, de Heidegger, quando afirma, em sua Über den Humanismus: Brief an Jean Beaufret: “Que outra coisa significa isto, a não ser que o homem (homo) se torne humano(humanus)? Deste modo então, contudoa humanistas permanece a preocupação de um tal pensar; pois humanismo é isto: meditar, e cuidar para que o homem seja humano e não des-humano, inumano, isto é situado fora de sua essência”(1).
Uma cultura democrática é aquela que incentiva cidadãos a pensarem por si mesmos, o que não se faz sem incentivos claros à autonomia, ao desenvolvimento humano e ao esclarecimento. Pensar a si significa também tomar consciência de si, este que parece ser o primeiro passo para se responsabilizar pelo outro, na medida em que ego alter são inseparáveis na constituição dos processos sociais.
A prática da liberdade se exerce com incentivos claros ao desenvolvimento de habilidades e competências capazes de forjar a consciência crítica, participativa, tolerante, o que não se faz sem uma consciência sobre a importância das práticas comunicativas e dialogais. Nas palavras deHäberle: “a educação para o respeito da dignidade humana constitui um destacado objetivo pedagógico do Estado constitucional: dignidade humana, para cada um, bem como para o próximo, no sentido dos ‘outros’ (como tolerância, solidariedade)”(2).
Ademais, a educação para os direitos humanos depende de claros incentivos ao desenvolvimento da pesquisa. A valorização da pesquisa, com vistas ao desenvolvimento da consciência crítica e enraizadora, deve ser capaz de, acima de tudo: aprofundar a consciência sobre a importância dos direitos humanos e de sua universalização; provocar a abertura criativa de horizontes para a auto-compreensão; incentivar a reinvenção criativa permanente das próprias técnicas; habilitar à criticidade; desenvolver o reconhecimento histórico dos problemas sociais; incentivar o conhecimento multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar sobre a condição humana; habilitar a uma compreensão segundo a qual a conquista de direitos depende da luta pelos direitos; valorizar a sensibilidade em torno do que é humano ; aprofundar a conscientização sobre questões de justiça social; recuperar a memória e a consciência de si no tempo e no espaço; habilitar para a ação e para a interação conjunta e coordenada de esforços; desenvolver o indivíduo como um todo, como forma de humanização e de sensibilização; capacitar para o diálogo e a interação social construtiva, plural e democrática.
Se isto for possível, então, exibiremos melhores condições de reação ao atual quadro das violências, proporcionando condições para o enfrentamento de um tema que se tornou extremamente delicado para o Estado Democrático de Direito, em nosso contexto.

Bibliografia

ADORNO, Theodor WEducação e emancipação. 3. ed. Tradução deWolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
BARRETTO, Vicente. Educação e violência:reflexões preliminares, in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXXX, fasc. 165, p. 63-70, jan.-mar. 1992.
BITTAR, Eduardo C. BÉtica, educação, cidadania e direitos humanos. São Paulo: Manole, 2004.
________ (org.). Educação e metodologia para os direitos humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
BOUFLEUER, José PedroPedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas. 3. ed. Ijuí: Unijuí, 2001.
ENDO, Paulo CésarA violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico sobre as violências na cidade de São Paulo. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2005.
FREIRE, PauloEducação como prática da liberdade. 26. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, in Dimensões da dignidade (SARLET, Ingo Wolfgang, org.), Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet Pedro Scherer de Mello Aleixo, Porto Alegre, Livraria do Advogado, ps. 89-152, 2005.
HEIDEGGER, MartinSobre o humanismo: carta a Jena Beaufret. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
PUCCI, Bruno (org.). Teoria crítica e educação: a questão da formação cultural na Escola de Frankfurt. 3. ed. Rio de Janeiro, Vozes; São Paulo, UFSCAR, 2003.
NOTAS
(1) HeideggerSobre o humanismo: carta a Jean Beaufret, 1973, p. 350.
(2) Häberle. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, Dimensões da dignidade. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo, 2005, p. 136.


Eduardo C. B. Bittar, Livre-Docente e Doutor, professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, nos cursos de graduação e pós-graduação. Professor e pesquisador do Mestrado em Direitos Humanos do UniFIEO. Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos (www.andhep.org.br). Pesquisador-Sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Coordenador do Grupo de Pesquisa “Democracia, Justiça e Direitos Humanos: estudos de Escola de Frankfurt”, junto ao NEV-USP.

Boletim IBCCRIM nº 206 - Janeiro / 2010.

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