sexta-feira, 20 de março de 2009

Artigo: Acesso aos inquéritos policiais: prerrogativa do advogado

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, seguindo a diretriz que até então vinha adotando com relação ao sigilo dos inquéritos policiais(1), aprovou a Súmula Vinculante 14, assegurando ao advogado a prerrogativa de “ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. Em razão dessa decisão, já surgiram as primeiras (improcedentes) objeções, no sentido de que a Suprema Corte estaria, a partir de agora, inviabilizando as investigações criminais.

Estabelece o art. 20 do CPP que a autoridade policial deverá assegurar o sigilo das investigações, exigido pelo interesse social ou quando for necessário para a elucidação da infração penal. Já o art. 7º, XIV, da Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB) assegura aos defensores o acesso aos procedimentos policiais.

Analisando esses dispositivos, Mendroni chega a sustentar que as informações contidas no inquérito policial, a critério do delegado de polícia, podem não ser fornecidas, inclusive, ao investigado ou ao seu advogado. Para o autor, por não ter o Estatuto da OAB revogado o art. 20 do CPP, deve-se fazer uma interpretação harmônica, de modo que o direito de o advogado analisar as peças do inquérito policial somente seja possível quando a autoridade policial entender que “o sigilo não seja necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”(2).

É importante que se distinga, preliminarmente, o sigilo externo, segredo aplicável a todas as pessoas que não possuem vínculo algum com as investigações em andamento, do sigilo interno, que se refere ao investigado e a seu advogado(3).

Na primeira hipótese, impõe-se o sigilo das investigações frente a terceiros que não possuem interesse jurídico nas diligências policiais, para preservação da imagem dos investigados(4). Esta espécie de sigilo também serve para proteger a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem da vítima, motivo pelo qual o art. 201, § 6º, do CPP, com a redação dada pela Lei 11.690/08, estabelece que pode o juiz determinar o segredo de justiça em relação aos dados, aos depoimentos e a outras informações constantes dos autos para evitar a exposição do ofendido na mídia. Por força do art. 3º do CPP, o delegado de polícia também pode (e, conforme o caso, deve) utilizar-se de tal expediente durante a investigação criminal.

No entanto, com relação ao sigilo interno, a interpretação deve ser outra. Como regra, o advogado do investigado tem acesso ao expediente investigatório, exceto quanto às peças cujo segredo seja imprescindível para a investigação e para a colheita de provas, conforme definiu a Suprema Corte na nova súmula vinculante.

Ainda que o segredo possa proteger direitos fundamentais do investigado e assegurar o êxito das investigações, deverá ser interpretado restritivamente frente ao direito de defesa(5), referentemente aos atos já produzidos pela polícia judiciária.

Não se pode olvidar que o Estatuto da OAB, comparando-se com o CPP, é lei posterior e especial, razão pela qual deve prevalecer(6). Dessarte, o advogado habilitado terá o direito de acessar o inquérito policial para verificar os atos que foram formalizados pela polícia judiciária, prerrogativa funcional instituída para a defesa do investigado(7).

Segundo ensina Prado, deve vigorar a pu­blicidade como regra. Contudo, “há atos de investigação que precisam permanecer sob sigilo durante algum tempo, sob pena de fracassarem os fins da própria investigação”, sendo inexigível a intimação prévia do investigado para acompanhar as atividades da polícia judiciária(8).

Na mesma esteira, afirma Lopes Júnior que a regra deve ser a publicidade da investigação para o advogado. Com relação a determinados atos de investigação, sustenta que podem ser secretos, desde que o sigilo seja “limitado no tempo e no alcance, bem como reservado para situações excepcionais”(9).

Com posição semelhante, Oliveira apregoa que o acesso aos autos deve ser a regra, devendo ocorrer, porém, restrição quando houver representação por provas de natureza cautelar no curso da investigação(10).

Portanto, se as diligências já foram realizadas pela polícia, o advogado terá o direito de obter vista dos documentos produzidos. Por outro lado, se existem atos de investigação que ainda serão desencadeados, com a finalidade de demonstrar a ocorrência de um delito e sua respectiva autoria, pode prevalecer o sigilo, inclusive para o investigado e para seu defensor(11). Nessa hipótese, em razão da natureza de certas investigações, o direito de vista aos autos do inquérito policial deverá ser realizado posteriormente.

De acordo com Coutinho, existem investigações realizadas pela polícia, como as interceptações telefônicas, por exemplo, que não podem ser controladas ex ante, motivo pelo qual deve prevalecer o sigilo no momento das diligências policiais(12). Entretanto, por força do art. 5º, LXIII, da CF, deve-se assegurar “a efetiva possibilidade de participação do advogado em qualquer ato de produção de prova no inquérito, inclusive pericial”(13).

Com isso, se os atos investigativos estão em andamento ou serão realizados brevemente, a situação exige, excepcionalmente, a manutenção do segredo para o investigado e para seu defensor, sob pena de a própria investigação criminal se tornar inviável. Não seria razoável, por exemplo, permitir-se que o investigado tome conhecimento acerca de uma interceptação telefônica em andamento. Por isso que o art. 8º da Lei 9.296/96 estabelece o sigilo das diligências, das gravações e das respectivas transcrições durante a fase preliminar(14). O mesmo raciocínio vale para instrumentos de investigação criminal destinados ao combate à criminalidade organizada, como a escuta ambiental (art. 2º, IV, da Lei 9.034/95) e a infiltração policial (art. 2º, V, da Lei 9.034/95).

Também podem ser citados como exemplos de investigações que devem ser efetivadas sem a ciência da defesa os exames em locais de crime — mesmo porque, na maioria das hipóteses, sequer se sabe quem é o autor da infração penal quando a polícia chega ao cenário do delito —, as buscas e as apreensões e o cumprimento de mandados de prisões provisórias(15), seja por razões lógicas, como o desconhecimento de quem sejam os responsáveis pelo fato, seja para não frustrar o resultado das diligências policiais com o vazamento de informações que devem permanecer, até a conclusão dos atos investigativos, sob sigilo. Nessas hipóteses, entretanto, é necessário que se possibilite ao defensor o controle diferido dos atos executados(16).

Notas

(1) Ver, entre outras, as seguintes decisões: HC 82.354/PR, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 10.08.2004, DJU 24.09.2004, p. 42; HC 87.827/RJ, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 25.04.2006, DJU 23.06.2006, p. 53; HC 88.190, rel. min. Cezar Peluso, j. 29.08.2006, DJU 03.08.2006; HC 90.232/AM, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 18.12.2006; HC 86.059/PR, rel. min. Celso de Mello, j. 24.06.2005, DJU 30.06.2005, p. 145; HC 92.331/PA, rel. min. Marco Aurélio, j. 18.03.2008, DJE nº 142.

(2) MENDRONI, Marcelo Batlouni. “O Sigilo da Fase Pré-Processual”. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, nº 83, out. 1999, p. 11. No mesmo sentido: RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 8ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 92.

(3) Com relação ao sigilo interno, será ele total quando se estender tanto ao investigado, quanto ao seu advogado. No entanto, será parcial quando aplicável somente ao investigado (LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 131).

(4) Nesse sentido: TJRS, MS 70012569083, rel. des. Nereu José Giacomolli, j. 08.08.2005, DJU 05.12.2005, p. 341. Para LOPES JÚNIOR, op. cit., p. 127, o sigilo aplicável aos estranhos serve para preservar a “intimidade, vida privada, honra e imagem do sujeito passivo”.

(5) ABADE, Denise Neves. “Direito de acesso aos autos no processo penal: breve análise crítica”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, nº 57, dez. 2005, p. 149.

(6) Nesse sentido: MALAN, Diogo; QUITO, Carina. “Resolução CJF nº 507/06 e Direitos Fundamentais do Investigado”. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, nº 165, ago. 2006, p. 18; LOPES JÚNIOR, Aury. “Direito de Defesa e Acesso do Advogado aos Autos do Inquérito Policial: uma (des)construção jurisprudencial”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, nº 43, abr.-jun. 2003, p. 393.

(7) Na linha de que o sigilo não pode ser imposto ao advogado do investigado: SILVEIRA, José Néri. “Aspectos do Inquérito Policial na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”. Revista da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, São Paulo, nº 21, set. 1996, p. 13; D’URSO, Luiz Flávio Borges. “O exame do inquérito policial pelo advogado”. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, nº 67, jun. 1998, p. 2.

(8) PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 122. No mesmo sentido: FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3ª ed., São Paulo: RT, 2002, p. 66; SAAD, Marta. O Direito de Defesa no Inquérito Policial. São Paulo: RT, 2004, pp. 334-5.

(9) LOPES JÚNIOR, “Direito de Defesa e Acesso do Advogado aos Autos ...”, p. 388 e p. 392, nota 37.

(10) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 4ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 31.

(11) LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, v. I, p. 98.

(12) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “O Sigilo do Inquérito Policial e os Advogados”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, nº 18, abr.-jun. 1997, p. 131.

(13) Idem, p. 133.

(14) Nessa esteira: D’ANGELO, Andréa Cristina; DEZEM, Guilherme Madeira. “Acesso aos autos do inquérito policial pelo não formalmente indiciado”. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, nº 162, maio 2006, p. 13; FERNANDES, op. cit., p. 66; GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 8ª ed., São Paulo: RT, 2004, p. 230.

(15) FERNANDES, op. cit., p. 66; PRADO, op. cit., p. 122.

(16) SAAD, op. cit., p. 329; FERNANDES, op. cit., p. 65.


Fábio Motta Lopes, Mestre em Direito (Ulbra); especialista em Direito Penal e Processo Penal (Ulbra); professor de Direito Penal da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos); professor da Academia de Polícia do Rio Grande do Sul (Acadepl) e delegado de Polícia/RS.

LOPES, Fábio Motta. Acesso aos inquéritos policiais: prerrogativa do advogado. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 196, p. 4-5, mar. 2009.

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