quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Artigo: A natureza jurídica da transação penal

Estabelece o art. 76 da Lei n° 9.099 de 26 de setembro de 1995 que havendo representação por parte do ofendido, nos crimes de ação pública condicionada, ou tratando-se de crime de ação pública incondicionada, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na proposta.

O § 4° do citado artigo dispõe que acolhendo a proposta do Ministério Público, aceita pelo autor da infração, o juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.

Frente ao novo instituto na nossa sistemática processual e penal, colocam-se duas principais questões: qual a natureza jurídica da pena imposta ao autor do fato, por força da proposta aceita por este e acolhida pelo Juízo, e qual a natureza desta decisão judicial.

Grinover et alli, em seus comentários à nova Lei dos Juizados Especiais Criminais, entendem que: "A pena não privativa de liberdade imposta pelo juiz, por consentimento dos partícipes, tem natureza jurídica de sanção penal, mas nem por isso apresente qualquer incostitucionalidade" (Juizados Especiais Criminais, p. 134, Ed. Revista dos Tribunais). Tratar-se-ia de sanção consentida, para cuja aplicação não se cogitaria de um juízo de culpabilidade do autor do fato.

Quanto à natureza desta decisão, afirmam tratar-se de sentença nem condenatória nem absolutória, mas meramente homologatória, com eficácia de título executivo.

No mesmo sentido posicionou-se, logo após a entrada em vigor da lei n° 9.099/95, Cláudio Antônio Soares Levadas, para quem a pena de multa e restritiva de direitos aplicada por força da transação penal constitui "apenas uma sanção consentida, por um critério de conveniência e oportunidade" (Notícias Forenses, Novembro/95, p. 42).

Em recentes artigos publicados pelo Boletim IBCCRIM, duas outras posições foram ainda sustendadas: Demercian e Mauluy (Boletim n° 35, pp. 12/13) defendem que a multa e a restrição de direitos do art. 76 da Lei n° 9.099/95 constituem sanções penais impróprias, e que a sua finalidade é apenas a exclusão do processo. Realizada a transação e não cumprido o acordo, poderia o Ministério Público oferecer a denúncia contra o autor do fato. A transação penal, portanto, constituiria forma condicional de exclusão do processo.

Tese em sentido completamente inverso foi sustentada por Lycurgo de Castro Santos (Boletim n° 36), para quem a proposta ministerial aceita pelo autor do fato importa em reconhecimento de culpa, havendo na sentença de homologação do acordo um juízo positivo de culpabilidade. Logo, tal sentença possui natureza não apenas declaratória, mas essencialmente condenatória.

Em que pese o respeito que merecem todos os autores acima citados, não podemos concordar com as conclusões de seus trabalhos a respeito da transação penal.

Afirmar-se que na homologação da transação penal profere-se, por sentença, um juízo positivo de culpabilidade, e que este juízo de valor jurídico-penal não importa em violação de garantia do devido processo legal, pois este encontrar-se-ia representado pelas provas informais colhidas através do termo circunstanciado, constitui posição equivocada.

Isto porque o devido processo legal noa revela garantia meramente formal, mas sim essencialmente material (substantive due process of law), com a observância de contraditório e da ampla defesa. O devido processo legal não é obedecido com a existência de um mero procedimento prévio previsto em lei, estando atrelado "ao vigoroso e incindível relacionamento entre as preceituações constitucionais e normas penais, quer de natureza substancial, quer de caráter instrumental, e de sorte a tornar efetiva a atuação da Justiça Criminal" (Rogério Lauria Tucci, Devido Processo Legal e Tutela Jurisdicional, p. 19 Editora Revista dos Tribunais).

Na fazer preliminar no JECrim, não há que se cogitar em culpabilidade do autor do fato, na medida em que inexiste processo, acusação formal ou provas, pois os elementos de informação colhidos perante a autoridade policial não estão respaldados pelo crivo do contraditório.

O juízo que se faz a partir dos indícios constantes do termo circunstanciado refere-se apenas à admissibilidade da denúncia, e por conseqüência da transação penal, não se cogitando a respeito de certeza sobre a autoria e culpabilidade do autor do fato.

Assim, a sentença que colhe a transação entre o Ministério Público e o autor do fato não tem natureza condenatória ou absolutória, não cogita da culpabilidade ou inocência do averiguado; não se baseia em confissão ou assunção de culpa.

Mas se não há o reconhecimento de culpabilidade na sentença que acolhe o acordo firmado entre a promotoria de Justiça e o autor do fato, não se pode admitir, sob pena de violação do princípio da culpabilidade, fundamento do direito penal moderno, que a multa e a restrição de direitos do art. 76 da Lei n° 9.099/95, tenham natureza jurídica de sanção penal.

A sanção, como bem ressaltaram Demerciam e Maluly (ob.cit.), traz o caráter de obrigatoriedade, de restrição, pelo Estado, de determinados bens jurídicos do indivíduo. Esta restrição, entretanto, somente pode ocorrer na hipótese de haver reconhecimento, pelo Poder Judiciário, da prática de um comportamento ilícito típico, bem como da culpabilidade do sujeito ao assim agir. Ausentes a ilicitude típica da conduta ou a culpabilidade do juiz, sob pena de violação dos princípios do devido processo legal e da legalidade, impor ao sujeito uma sanção penal.

Ora, afirmar-se que a transação importa em aplicação de sanção penal ao autor do fato equivale a dizer que, nos delitos de menor periculosidade, é possível a aplicação de pena sem que haja prova do crime ou da culpabilidade, posição que se choca com todas as garantias e princípios constitucionais do processo e direito penal.

Deve-se ressaltar também, nessa matéria, que um dos princípios objetivos da Lei n° 9.099/95 foi provocar a despenalização, atendendo aos ditames de uma moderna política criminal.

Neste contexto, não seria lógico que tendo por finalidade a lei a exclusão de penas, estabelecesse o legislador, independentemente de processo ou acusação formal, a imposição de uma pena ao suspeito, mediante mera aceitação deste.

Esta não foi realmente a intenção do legislador ordinário, e nem poderia ser, em que pese a má redação do art. 76 e parágrafos da Lei n° 9.099/95.

Ao meu ver, o objeto do acordo firmado por meio de transação penal não se constitui de pena criminal, mas sim de obrigação civil, assumida pelo autor do fato mediante proposta do Ministério Público (representante da sociedade), e homologada pelo Juízo.

As penas de multa e restritivas de direitos são simplesmente utilizadas como critérios para a formulação da proposta pelo Ministério Público e realização do acordo, a fim de se evitar a elaboração de transação inexequível ou contrária à dignidade do indivíduo.

Assim, ao transacionarem, por exemplo, no pagamento de uma multa, em verdade a Promotoria de Justiça e o autor do fato estão formando uma obrigação, ao segundo, de prestar quantia certa, em determinado prazo.

Também quando firmado acordo para a restrição de direitos do autor do fato, forma-se, para este, obrigação de fazer ou não fazer.

O que ocorre na transação penal, portanto, nada mais é do que a realização de negócio jurídico civil entre o Ministério Público, como representante da sociedade, e o autor do fato, o que, após homologado por sentença, torna-se título executivo judicial, nos termos do art. 584, inciso III do Código de Processo Civil.

Homologado o negócio jurídico por sentença, decisão jurisdicional definitiva que põe termo ao procedimento, não mais se discutirá a respeito da autoria do fato ou culpabilidade do autor, sendo vedada, ainda, a retomada da persecução criminal, mesmo na hipótese de não cumprimento da obrigação assumida pelo autor do fato. E isso porque por sua própria natureza, a sentença homologatória põe termo ao procedimento, e não o suspende.

O acordo entre as partes, portanto, por ser realizado em fase preliminar, assemelha-se, em sua natureza jurídica, à remissão concedida aos adolescentes pelo membro do Ministério Público diante da prática de atos infracionais (art. 126 do Estatuto da Criança e do Adolescente). Tal acordo, homologado pelo Juízo, tem por efeito a exclusão do processo e, em conseqüência, a declaração da extinção da punibilidade do suspeito.

Observando o membro do Ministério Público a presença dos requisitos legais, propõe ao autor do fato, usando da disponibilidade da ação penal que lhe foi conferida pela nova lei (também chamada de oportunidade regrada), a transação, e, sendo aceito o acordo pelo suspeito, opera-se a renúncia ao direito de proceder à persecução criminal, extinguindo-se a punibilidade pela decadência (art. 107, inciso IV do Código Penal).

Constituindo a transação penal negócio jurídico civil, a execução, em hipótese de inadimplemento do devedor, não seguirá a lei de execução penal ou os arts. 84 e ss. Da Lei n° 9.099/95, mas sim o art. 646 e ss. Do CPC, tratando-se de execução por quantia certa (multa), ou art. 632 e ss. Do CPC, quando o acordo tiver por objeto obrigação de fazer ou não fazer (restritiva de direitos).

Tanto isso é verdade, que o parágrafo único do art. 84 da Lei n° 9.099/95 não se refere à execução de multa fixada por meio de transação, mas somente à imposta por condenação criminal.

Antes o exposto, conclui-se que a transação penal instituída pela Lei n° 9.099/95 possui natureza jurídico civil, firmado entre o Ministério Público e o autor do fato, e que as "penas" de multa e restritivas de direitos, estabelecidas por força desse negócio jurídico nada mais são do que as prestações assumidas pelo autor do fato.

Quanto à sentença estabelecida pelo § 4° do art. 76 da Lei n° 9.099/95, não é condenatória, não impõe pena, mas somente homologa o acordo firmado entre as partes e forma o título executivo judicial da obrigação assumida pelo autor do fato, tendo por conseqüência a exclusão do processo crime e a declaração da extinção da punibilidade, pela decadência do direito de propor a ação penal.


Antônio Carlos Santoro Filho, Juiz de direito da 2ª Vara de Iguape/SP

SANTORO FILHO, Antônio Carlos. A natureza jurídica da transação penal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.49, p. 03-04, dez. 1996.

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