Várias teorias sobre a conduta criminosa foram formuladas desde o século XIX até o advento do pós–finalismo, no Direito Penal. Hoje fortemente influenciada pelo finalismo, a teoria da conduta, ao longo de sua evolução teórica, nunca chegou a contemplar uma análise detida sobre o conteúdo da vontade ou sobre os fatores que compõe o elemento subjetivo da ação.
Denomina-se aqui de “elementos determinantes da vontade” aqueles fatores que, de uma forma ou outra, influenciaram o agente no cometimento da conduta típica.
Embora pareça impossível, à primeira vista, o esgotamento completo desses elementos formadores da vontade na conduta penalmente relevante, no entanto, alguns destes elementos mostram-se de indispensável consideração no momento da aplicação da pena. Isto porque o desenvolvimento pessoal de cada indivíduo, seus traumas, condições familiares, seu meio social, familiar, a própria formação de sua personalidade e do seu inconsciente são fatores determinantes de sua existência e, conseqüentemente, de sua idéia de moral como inspiração de sua conduta pessoal.
Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, sobre a moral, apontam que: “Se o que caracteriza fundamentalmente o agir humano é a capacidade de antecipação ideal do resultado a ser alcançado, concluímos que é isso que torna o ato moral propriamente voluntário, ou seja, um ato de vontade que decide pela busca do fim proposto”[1].
A assertiva das autoras encontra semelhança no conceito de dolo dado pelo Direito Penal, segundo o qual o dolo seria a vontade, que tem o agente, de praticar um ato, previsto como crime, consciente da relação de causalidade entre a ação e o resultado. Portanto, sem sombra de dúvidas, conclui-se que a vontade está contida no ato dirigido a um fim, na conduta.
De forma semelhante, Sartre alertava sobre para um ponto crucial da condição humana, qual seja, o livre arbítrio inerente a todo ser humano que possibilita o exercício da liberdade inata através de atos de escolha que determinarão a existência de cada ser humano. Segundo ele, ainda que privado de sua liberdade política, o ser humano ainda assim é livre para fazer de si o que dele foi feito pelo meio ou por outros fatores externos. Ou seja, a liberdade do ato vem de uma consciência única e pessoal, livre de quaisquer preceitos morais nos quais se possa fundar a ação humana: “A realidade humana não poderia receber seus fins, como vimos, nem de fora nem de uma ‘pretensa’ natureza interior. Ela os escolhe e, por essa mesma escolha, confere-lhes uma existência transcendente como limite externo de seus projetos. [...] Portanto, é o posicionamento de meus fins últimos que caracteriza meu ser e identifica-se ao brotar originário da liberdade que é minha. E esse brotar é uma existência; nada tem de essência ou propriedade de um ser que fosse engendrado conjuntamente com uma idéia. Assim, a liberdade, sendo assimilável à minha existência, é fundamento dos fins que tentarei alcançar, seja pela vontade, seja por esforços passionais”[2].
Parece-nos que o direito penal já trabalha antecipadamente com a idéia de que a cada ser humano é dada a opção de guiar-se segundo uma moral estabelecida, consubstanciada na lei posta. A lei considera, presumidamente, que o sujeito optou livremente por guiar-se segundo a norma em vigor ou contrariamente a ela e, neste sentido, trata-se de um ato responsável e livre, com algumas exceções que a própria lei contempla, tais como a legítima defesa, o estado de necessidade, a inexigibilidade de conduta diversa, dentre outras excludentes de culpabilidade.
A realidade social, no entanto, demonstra que não é assim que a conduta criminosa se exterioriza.
A indagação que aqui se coloca, no sentido de rastrear o que realmente determina a conduta humana (considerando-se apenas a conduta humana penalmente relevante), tema infindável diante da amplitude de aspectos que nela se incluem, leva a um segundo questionamento: se o estatuto repressivo considera, na condenação do criminoso, tais fatores.
Estarão os julgadores atentos à condição social na qual se insere o criminoso? Ou aos traumas familiares que eventualmente influenciaram sua conduta? Estão cientes, ao aplicar a pena, dos fatores pessoais, existenciais e psicológicos, concretamente circunscritos, que compuseram a vontade desses criminosos? Decerto que não.
Tais questões são mais relevantes do que parecem à primeira vista: se a individualização da pena foi um avanço pelo qual pensadores lutaram por séculos para assegurar um direito penal mais justo, então o processo de aplicação da sanção deve valer-se de elementos mais naturalistas do que regras da dogmática jurídico-penal. Do contrário, estar-se-ia concebendo apenas parcialmente o princípio da pena individual.
Caricaturas do nosso quadro social estampadas em obras cinematográficas como “Cidade de Deus”, no atualíssimo “Tropa de elite”, ou, ainda, na consagrada peça de Ariano Suassuna “O Auto da Compadecida”, fornecem vívidos exemplos sobre a necessidade de o Poder Judiciário estar mais preocupado e engajado com essas determinantes da conduta – entendidas como propulsoras da vontade humana e antecessoras do dolo – do que com a dogmática jurídico-penal que, quase invariavelmente, mais propaga a injustiça social do que distribui a pretendida justiça.
Em recente artigo publicado no Boletim IBCCRIM[3], Salo de Carvalho tece considerações sobre a flexibilidade do conceito de moral sob diferentes pontos de vista. Traz comparações entre o conceito rosseauniano e as críticas do Marquês de Sade sobre os valores morais e a formação da cultura como adestramento da natureza humana.
Aponta o ilustre professor: “Se o discurso rosseauniano evoca a bondade do selvagem e a pura natureza humana que se desvirtua pelos vícios da convivência social, o autor de Justine categoricamente advogará o erro da premissa, demonstrando que a civilização desumaniza o homem: ‘A crueldade não é outra coisa senão a energia do homem ainda não corrompida pela civilização; é uma virtude, portanto, e não um vício’. E densifica o argumento: ‘A crueldade está na natureza. Todos nascemos com uma dose de crueldade que só a educação modifica; mas a educação não está na natureza e prejudica tanto seus efeitos sagrados quanto o cultivo prejudica as árvores (...) Suprimi vossas leis, vossas punições, vossos costumes, e a crueldade não terá mais efeitos perigosos, já que nunca agirá sem ser repelida pelos mesmos meios (...)’. Notadamente em Os 120 Dias de Sodoma, o Marquês libertino expõe as medidas nas quais o exercício do poder se torna assustadoramente erótico, sexualizado. Cria, pois, condições de perceber não apenas a condição humana, mas a falibilidade de suas instituições geradas para conter seus vícios”.
A transcrição acima visa a ilustrar nossa idéia central: a realidade social impõe, cada vez mais, o abandono de valores exclusivamente morais e elementos unicamente normativos no momento da aplicação da pena. Questões subjetivas relevantes devem ser consideradas e, quando possível, analisadas no criminoso, quando da aplicação da sanção penal.
A questão que se coloca, portanto, é: do que é formada essa vontade, ou, o que antecede e compõe o dolo? Como já dito, a questão é mais importante, sob o aspecto da aplicação da pena, do que parece.
A exposição de motivos da nova parte geral do Código Penal esclarece: “As diretrizes para a fixação da pena estão relacionadas no artigo 59, segundo critério da legislação em vigor, tecnicamente aprimorado e necessariamente adaptado ao novo elenco de penas. Preferiu o Projeto a expressão ‘culpabilidade’ em lugar de ‘intensidade do dolo e grau de culpa’, visto que graduável é a censura, cujo índice, maior ou menor incide na quantidade da pena”. (g.n.)
Daí se extrai a idéia de que a culpabilidade, ou juízo de censura sobre a conduta, é graduável, ou seja, pode haver elementos que a tornem menos censurável, e daí menor será a pena aplicável, ou mais censurável, o que exasperaria a sanção penal.
Assim, na aplicação da pena, segundo o artigo 59 do CP, devem ser considerados: “Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime: I- as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível”.
As denominadas “circunstâncias judiciais”, na definição de Cézar Roberto Bittencourt, não são efetivas circunstâncias do crime, mas critérios limitadores da discricionariedade judicial, que indicam o procedimento a ser adotado na tarefa individualizadora da pena-base.
A primeira circunstância judicial, a culpabilidade, acarreta para o julgador a função de “examinar a maior ou menor censurabilidade do comportamento do agente, a maior ou menor reprovabilidade do comportamento praticado, não se esquecendo, porém, da realidade concreta em que o mesmo ocorreu, especialmente a maior ou menor exigibilidade de outra conduta”[4].(g.n.)
O destaque justifica-se especialmente quando se tem em vista as inúmeras diferenças entre os homens, a começar pelas distintas classes sociais nas quais estão inseridos, suas estruturas familiares, a formação única de seu inconsciente e a forma como estes elementos, e outros, contribuíram para a formação individual da noção de moral de cada um deles.
A cada realidade individualizada caberá um juízo único de reprovação. Não se nega por completo o papel da dogmática jurídico-penal, sem a qual seria impossível a própria aplicação do direito. Mas, aliada a ela, deve estar a análise consciente e real da conduta do criminoso e das determinantes dessa conduta, quando possível.
Em defesa da dogmática jurídico-penal, Fabio André Guaragni se pronuncia: “Todavia, o desprezo ao pensamento dogmático jurídico-penal é inaceitável e as acusações que sofre merecem descarte. A dogmática tem por virtude fixar linhas gerais necessárias para determinar ‘um espaço ideológico neutral e estabelecer conhecimentos que por sua validade geral podem sem transferidos a outros sistemas jurídicos[5]’”.
Nossa discordância, no entanto, é quanto à afirmação do mesmo autor no sentido de que: “Definir quais os elementos essenciais da conduta, como fenômeno psicológico e físico, passa então a ser tarefa dogmática essencial para realizar papel uniformizador, sob pena de se estudarem as condutas humanas tipo a tipo, caso a caso, perdendo-se toda a noção sistêmica necessária ao tratamento do caso penal”[6].
Ora, é exatamente na apreciação de cada caso concreto que o princípio da individualização da pena se opera concretamente! Não se pode pretender, portanto, estabelecer critérios unicamente normativos como forma de uma pretensa individualização da pena, descartando-se aspectos pessoais do criminoso, num verdadeiro ideário acadêmico, num mundo idealizado pelo Direito e intocado pelos fatos.
Assim, aquelas circunstâncias judiciais tratadas no art. 59 do CP parecem sim conferir essa possibilidade de discricionariedade, ainda que de forma limitada.
As críticas à dogmática jurídico-penal cada vez mais ganham corpo entre os juristas. Cândido do Prado Amaral chega a afirmar uma berlinda em que hoje viveria o Direito Penal, propondo uma nova dogmática centrada no sistema social. Afirma que “(...) o direito penal está submetido a contínuo câmbio, ao mesmo tempo em que deve ser justo a cada instante de sua incidência e, por conseguinte, tanto a legislação como a jurisprudência devem compreender as necessidades de cada época e desenvolver respostas jurídicas para essas necessidades, e não somente reflexionar sobre os princípios mais gerais e supra-históricos”[7].
A ênfase sociológica dada pelo autor, no entanto, acaba por deixar de lado o aspecto mais relevante da crítica à dogmática jurídico-penal que aqui sublinhamos: o esquecimento ou a negligência quanto à análise das motivações da vontade na conduta do criminoso.
O ilustre professor Alvino Augusto de Sá abre seu recente trabalho “Criminologia clínica e psicologia criminal” com a exposição dessa mesma proposta nossa, alertando para sua dificuldade: “Querer definir as razões da criminalidade parece-nos uma pretensão tão gigantesca quanto a de querer contar os grãos da areia do mar. Entretanto, pode-se discorrer sobre elas, ou melhor, sobre algumas delas, fazer algumas aproximações teóricas, dentro de um determinado enfoque, entre os múltiplos possíveis”[8].
Mesmo diante de tal oceano de possibilidades e de novos e infinitos rumos que uma proposta dessas poderia acarretar, o senso de justiça que nos motiva impede-nos de abandoná-la e permite-nos delimitar, assim como o fez o insigne professor, um foco determinado, porque as razões determinantes do crime, na psiquê do criminoso, são fundamentais para a própria aplicação e execução da pena criminal e olvidá-la na aplicação da pena seria cometer violência semelhante à que ele externou no mundo através da conduta criminosa.
Tal problemática encontra justificada preocupação no exato ponto explicado pelo ilustre professor: “Independente da questão da imputabilidade, eles [criminosos] não sabem exatamente o que fazem. Aliás, os limites que se estabelecem entre a imputabilidade, semi-imputabilidade e inimputabilidade constituem mera ilusão de um pensamento falsamente objetivo, ilusão essa da qual o Direito cegamente se serve, para tornar suas decisões menos aparentemente e formalmente corretas e “legalmente” bem fundamentadas. Afinal, infelizmente para muitos a decisão justa é aquela formal e legalmente correta. O delinqüente, ao atacar a vítima, não sabe exatamente quem ela é, não pensa sobre as conseqüências e todos os possíveis desdobramentos que sua ação criminosa poderá acarretar-lhe. Além de seus impulsos, suas carências e privações, a própria rotina e os hábitos do crime obliteram-lhe o pensamento e o cegam. Na medida em que o criminoso não pensa sobre o que está fazendo, ele não sabe exatamente o que está fazendo, independentemente de ser ou não formalmente reconhecido imputável perante a lei”.(g.n.)
Não parece, realmente, esta a Justiça que os homens um dia pensaram como solução para o conflito social. Se um homem, como todos os demais, alçado ao cargo de julgador, apoiado na lei posta e criada pelos seus próprios semelhantes, não se atenta para o outro homem que ele irá julgar, então o sistema nada tem de justo, eqüitativo, moral ou ético. A violência que se comete ao julgar outro homem apenas baseado numa fórmula pronta e sensivelmente distanciada do caso concreto, na medida em que descarta a análise de fatores importantes na determinação da conduta criminosa, é semelhante à violência cometida pelo delinqüente contra sua vítima e, indiretamente, contra o Estado. É a verdadeira banalização de todos os princípios que nortearam a concepção da idéia de lei e de seu próprio objetivo.
Voltando à prescrição do artigo 59 do CP, tem-se a segunda circunstância judicial importante como objeto deste estudo: a personalidade do agente, elencada no inciso III do art. 59, do CP.
Aníbal Bruno a definiu como “um todo complexo, porção herdada e porção adquirida, com o jogo de todas as forças que determinam ou influenciam o comportamento humano” [9].
Discordamos da simplicidade com que a doutrina trata a “personalidade do agente” como circunstância a ser considerada no momento da aplicação da pena e também do equívoco invariavelmente cometido pelos julgadores no momento desta consideração. A personalidade do agente, ao contrário do que hodiernamente orienta a doutrina, não deve servir unicamente como indício de “boa ou má índole” ou de “maior ou menor sensibilidade ético-social”, ou ainda, da presença de eventuais desvios de caráter. Evidentemente que, com vistas a um Direito Penal voltado para a realidade social, a circunstância elencada no inciso III do art. 59 deve fornecer muito mais elementos de análise do juízo de reprovabilidade que se faz sobre o criminoso. Daí, por exemplo, a forma como lidou com as questões mais centrais de sua existência, as eventuais dificuldades de aceitar as condições sociais em que esteve inserido durante ela, as escolhas que tomou frente aos obstáculos de sua vida e as limitações que seu inconsciente promoveu na sua conduta consciente frente aos objetos transcendentais do mundo. Ou, segundo as lições, ainda, de Alvino Augusto de Sá: “as razões da violência costumam estar na própria violência”[10].
Guilherme de Souza Nucci, embora concorde que “quanto mais se cercear a atividade individualizadora do juiz na aplicação da pena, afastando a possibilidade de que analise a personalidade, a conduta social, os antecedentes, os motivos, enfim os critérios que são subjetivos em cada caso concreto, mais cresce a chance de padronização da pena, o que contraria, por conseqüência, o princípio constitucional da individualização da pena, aliás, cláusula pétrea”, ainda defende argumentos moralistas difundidos na doutrina penalista quando o tema é “personalidade”. Assim, fundamenta: “São exemplos de elementos da personalidade, que se pode buscar na análise do modo de ser do autor da infração penal: a) aspectos positivos: bondade, alegria, persistência, responsabilidade nos afazeres, franqueza,m honestidade, coragem, calma, paciência, amabilidade, maturidade, sensibilidade, bom humor, compreensão, simpatia; tolerância, especialmente à liberdade de ação, expressão e opinião alheias; b) aspectos negativos: agressividade, preguiça, frieza emocional, insensibilidade acentuada, emotividade desequilibrada, passionalidade exacerbada, maldade, irresponsabilidade no cumprimento das obrigações, distração, inquietude, esnobismo, ambição desenfreada, insinceridade, covardia, desonestidade, imaturidade, impaciência, individualismo exagerado, hostilidade no trato, soberba, inveja, intolerância, xenofobia, racismo, homofobia, perversidade. Naturalmente, muitos desses fatores, quando isoladamente considerados ou mesmo quando não repercutem no desrespeito ao direito de terceiros, devem ser concebidos como frutos da liberdade de ser e de se expressar do indivíduo. Porém, ao cometer um crime, especialmente se a característica negativa de sua personalidade for o móvel propulsor – como a inveja incontrolável ou o desejo de pratica a maldade – deve, ser levada em conta para o estabelecimento da pena”[11].
Não nos parece a melhor interpretação do assunto. Especialmente quando, numa análise psicanalítica da conduta do criminoso, tem-se em conta comportamentos sintomáticos originados de conflitos mais complexos. Assim, a agressividade, a perversidade, a inquietude, são, obviamente, apenas sintomas comportamentais que resolvem-se quando curado o conflito primário que lhes originou. Também, conceitos como “maldade” e “individualismo exagerado” contém uma carga moralista tão grande que impede que sua análise seja realmente isenta e rigorosamente técnica.
Parece demais fantasioso imaginar-se um ideal de “homem ético”, sem desvios de conduta, que se guia pelo e para “o bem”, como se estivesse livre de quaisquer fatores que pudessem, com grande influência, determinar sua conduta.
Adolfo Sanchez Vazquez observa que “a explicação psicológica do comportamento humano possibilita a compreensão das condições subjetivas dos atos dos indivíduos e, deste modo, contribui para a compreensão da sua dimensão moral. Problemas morais como o da responsabilidade e da culpabilidade não se podem abordar sem considerar os fatores psíquicos que intervieram no ato, pelo qual o sujeito se julga responsável e culpado. A psicologia, com a sua análise das motivações ou impulsos irresistíveis, faz-nos ver também quando um ato humano escapa a uma avaliação ou julgamento moral. Por todas essas razões, estudando um comportamento moral, a ética não pode prescindir dos dados fornecidos pelas conclusões deduzidas pela psicologia[12]”.
De fato, há atos humanos que, no processo de exteriorização, sequer passam pela consciência, mas guiam-se pelo inconsciente.No entanto, formalmente, não deixam de conceituar-se como conduta penalmente relevante e que não resvalam naquele conceito realmente precário de “inimputabilidade” ou “semi-imputabilidade”. É que o direito penal distingue de outras ciências ou teorias o conceito de “consciência”, criando uma definição bastante distinta da Psicologia, da Psicanálise ou do pensamento filosófico.
Diante desse quadro, a aplicação da lei penal através dos instrumentos da dogmática jurídico-penal tal como vigora insinua-se cada vez mais impossível. E a primeira proposta imaginável não é outra senão a aplicação da própria disposição do artigo 59 do CP, porém, com um alargamento na apreensão dos conceitos que o próprio artigo traz (personalidade do agente, conduta social, circunstâncias e conseqüências do crime) à luz da Criminologia. Tal possibilidade nos parece bastante palpável na medida em que “os critérios legais servem de guia para o juiz que profere a sentença, mas não manietam a sua atividade de particularizar a pena no caso concreto, momento em que possui alto espaço de discricionariedade, desde que legitimamente fundamentada sua escolha”[13].
Paganella Boschi, citado por Alberto Silva Franco, já alertava: “a valoração da personalidade do acusado, nas sentenças criminais, é quase sempre precária, imprecisa, incompleta, superficial, limitada a afirmações genéricas do tipo 'personalidade ajustada', 'desajustada', 'agressiva', 'impulsiva', 'boa' ou 'má', que, do ponto de vista técnico, nada dizem”. E Alberto Silva prossegue, em conclusão: “Assim, há um inadmissível reducionismo na aplicação judicial desse fator de determinação da pena, que vem, em geral, acompanhado de grande carga de moralismo. Aliás, por estar a aplicação da pena, nesse aspecto, totalmente impregnada por valorações morais que violam o princípio da secularização e se aproximam da idéia de direito penal do autor, conclui Salo de Carvalho pela plena ilegitimidade desse critério posto dentre as circunstâncias judiciais do art. 59. Por outro lado, cumpre assinalar que, quando se trata de valoração da conduta social ou da personalidade do agente, o juiz deve efetuar raciocínio através do qual enxergue o indivíduo na comunidade em que vive, de acordo com os seus hábitos e valores predominantes, e levando em conta as condições de desenvolvimento da personalidade de que desfrutou o agente, sem efetuar em juízo de 'normalidade' ou 'ajustamento' de seu comportamento segundo as suas próprias regras comunitárias (do juiz)”[14].(g.n.)
Falta, realmente, que essa idéia permeie o Poder Judiciário no dia-a-dia dos julgamentos criminais. O amesquinhamento de valores que há séculos inspiraram a ciência penal e o próprio Estado Democrático de Direito apenas consegue ser ainda mais nefasto e pernicioso nos tempos atuais, em que a sociedade padece de graves doenças originadas da sensação de frustração causada pelo sistema capitalista, das crises econômicas e políticas, da miséria da população dominante, da desfragmentação da família e da obliteração dos valores éticos e morais[15].
[1] DE ARRUDA ARANHA, Maria Lúcia, PIRES MARTINS, Maria Helena. Filosofando – Introdução à Filosofia. SãoPaulo: Moderna, 1993.
[2] SARTRE, Jean- Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1999.
[3] Ano 15- nº. 182 – Janeiro/2008
[4] BITTENCOURT, Cézar Roberto. Manual de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
[5] GUARAGNI, Fábio André. As teorias da conduta em direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.005, p. 33.
[6] ob. cit. p. 36.
[7] AMARAL, Cláudio do Prado. Bases teóricas da ciência penal contemporânea. Dogmática, missão do direito penal e política criminal na sociedade de risco. São Paulo: IBCCRIM, 2.007.
[8] DE SÁ, ALVINO AUGUSTO. Criminologia clínica e psicologia criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.007.
[9] BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
[10] ob. cit. p. 52.
[11] NUCCI, Guilherme de Souza. A análise da personalidade do réu na aplicação da pena. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 13, n. 153, p. 2-3, ago. 2005.
[12] VÁSQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
[13] STOCO, Rui, FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.007.
[14] ob. cit. p. 346.
[15] “Todo mundo fala de ética e reclama da ética, mas os comportamentos individuais são sempre pautados pelos interesses próprios e o interesse próprio não é ético e nem político no sentido de que também não é comum. A ética e a política são sempre coisas que nascem da comunidade. Se o indivíduo não tem o peso da comunidade por trás dele, suas ações não têm medida. A única medida é ele mesmo e tudo o que ele fizer em benefício próprio estará certo, por definição, porque o único critério é satisfazer o interesse próprio. O indivíduo fica indiferente e as pessoas sentem isso no comportamento dos outros e tendem a assimilar isso como natural. Passa a ser natural que cada um persiga o seu próprio interesse a qualquer custo. Parece que é da natureza humana, então, não se pode impedir que as pessoas façam isso. É um comportamento histórico, datado, que vem dessa exacerbação do individualismo” (entrevista concedida pelo Prof. Dr. Franklin Leopoldo Silva à Revista Filosofia, Ciência & Vida, nº. 17 – Ano II - 2.007, Editora Escala).
Por Tatiana de Oliveira Stoco, Advogada criminalista em Ribeirão Preto
Co-autora na obra “Código Penal e sua interpretação”, 8ª edição, lançado pela Editora RT, 2007.
STOCO, Tatiana de Oliveira. Críticas à dogmática jurídico-penal: a consideração de determinantes da conduta humana na aplicação da sanção penal ao criminoso. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 27.05.2008.
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