segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Acordo de não persecução penal: um atalho para o triunfo da Justiça penal consensual?

Mateus foi preso em flagrante por ter praticado o crime de embriaguez ao volante (artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro). Ele confessou à autoridade policial a ingestão de bebida alcoólica momentos antes de assumir a condução de seu veículo. Como é primário e para evitar os dissabores do processo, afirmou desejar, desde já, submeter-se ao cumprimento das penas restritivas de direito de prestação pecuniária e prestação de serviço à comunidade. Foi, então, encaminhado ao promotor de Justiça. Comparecendo à Promotoria no dia seguinte, assistido por advogado, celebrou acordo para não ser processado e cumprir imediatamente as sanções penais.
Embora inexista lei que regulamente a feitura desse acordo, desde 7 de agosto de 2017 essa solução consensual é possível e já vem ocorrendo[1], com fundamento na Resolução 181/07 do Conselho Nacional do Ministério Público[2].
O ordenamento jurídico brasileiro já está familiarizado com institutos de Justiça penal consensual como a transação penal, para delitos de pequeno potencial ofensivo, e colaboração premiada, para crimes graves que podem envolver organizações criminosas. No entanto, faltava um instituto consensual para crimes de médio potencial ofensivo. Essa lacuna foi suprida com o acordo de não persecução penal (ANPP); mas, pela primeira vez, o substrato normativo para a celebração do ajuste é um ato normativo infralegal.
O artigo 18 da resolução estabelece que, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, além de assumir o compromisso de: reparar o dano à vitima, pagar prestação pecuniária, cumprir prestação de serviço ou cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.
Para parcela da doutrina, a ANPP é formalmente constitucional por não dispor sobre Direito Penal e Processo Penal, matérias que demandam lei em sentido formal oriunda da União nos termos do artigo 22, I, da Constituição da República. Ao invés, tratar-se-ia de matéria de política criminal[3], o que tornaria legítima a normatização realizada pelo CNMP.
Exsurgem desse raciocínio dois problemas. Primeiro, considerar que a decisão do investigado em não se submeter ao processo criminal e cumprir imediatamente sanção penal trate-se apenas de uma questão de política criminal é uma argumento frágil. Se por um lado a utilização do acordo pode vir a ser, se bem utilizado, instrumento de política criminal, seu conteúdo, isto é, o objeto sobre o qual as partes transacionam (pena imediata sem processo), é evidentemente processual penal. Outro equívoco é supor que a existência de eficácia normativa primária das resoluções do CNMP, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 12[4], permita que o órgão regulamente qualquer matéria uma vez que, inquestionavelmente, não se encontra entre as atribuições do CNMP estampadas no artigo 130-A, parágrafo 2º, da CF/88 normatizar sobre política criminal.
Por outro lado, não se verifica ofensa ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. Ao contrário da Constituição italiana (artigo 112)[5], a CF/88 não o previu expressamente, sequer o Código de Processo Penal o fez. Assim, previsão normativa que o mitigue, como já fizeram a Lei 9.099/95 e a Lei 12.850/13, é compatível com nosso ordenamento jurídico.
Em todo caso, foram propostas duas ações diretas de inconstitucionalidade contra a Resolução 181/2017, uma de iniciativa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a ADI 5.793, e outra de autoria da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a ADI 5.790[6], cujos julgamentos ainda não se realizaram.
Há de se reconhecer, entretanto, ante o princípio da presunção da constitucionalidade, que a norma que regulamenta o ANPP é eficaz e aplicável até ulterior análise de sua compatibilidade com a Constituição pelo STF.
Mudando-se o enfoque do plano formal para o material, verifica-se que o regime jurídico erigido na resolução assegura, por meio de um procedimento detalhado, a observância de todas as garantias constitucionais ao investigado: inafastabilidade do controle judicial (artigo 18, parágrafo 4º), defesa técnica (parágrafo 2º) e segurança jurídica (parágrafo 11º).
Como esse fenômeno da expansão dos espaços de consenso na Justiça criminal é de ordem mundial, não uma exclusividade brasileira, é relevante observar que a Corte Europeia de Direitos Humanos, em 2014, no caso Togonidze v. Georgia, já teve oportunidade de manifestar que acordos criminais, similares ao ANPP, não ofendem ao contraditório e ao devido processo legal[7]. E nos EUA, a Suprema Corte reconheceu, no caso Brady v. USA, em 1970, a constitucionalidade do plea bargaining quando o tribunal estipulou algumas condições para que o acordo seja válido[8].
Importante também mencionar que a implementação de acordos criminais estão em consonância com as diretrizes estabelecidas nas Regras de Tóquio (item 5.1)[9], normativa internacional impossível de ser ignorada.
Há, sim, questões ainda não solucionadas, tais como a forma de se realizar o ANPP durante a audiência de custódia (artigo 18, parágrafo 7º) ou como estabelecer uma política criminal lógica e efetiva que preserve, por exemplo, o tratamento igualitário no aceite e recusa da celebração do acordo pelo membro ministerial e garanta também a repressão e prevenção de ilícitos penais em determinada comunidade.
Mesmo que o destino seja louvável, o atalho tomado pelo CNMP foi equivocado, em especial por existir propostas legislativas em tramitação no Congresso Nacional que contemplam acordos dessa natureza[10].
A despeito da consagração da Justiça penal consensual no Brasil decorrente da constatação de sua celeridade, efetividade e eficiência, cujo ápice se deu com a operação "lava jato", a aplicação do ANPP ainda é incipiente e incerta.
Por ora, parece que se repetirá o enredo da colaboração premiada. Será a prática dos atores envolvidos nos acordos e a jurisprudência que moldarão os contornos do ANPP. Experiência similar à vivenciada pela Alemanha, onde, após larga utilização de acordos criminais sem previsão normativa, em 2007, o Tribunal Constitucional Federal reconheceu a validade de sua utilização por não violarem princípios constitucionais e processuais[11].
O caminho do devido processo legislativo era o preferível, contudo, substancialmente, o ANPP é constitucional.

[1] No estado de São Paulo, o procurador-geral de Justiça já se manifestou em sede de revisão de decisão de juiz que não homologara o acordo (artigo 28 do CPP) afirmando sua legalidade, validando assim, no âmbito institucional do MP-SP, a sua aplicação dentro dos contornos estabelecidos pelo CNMP.
[2] Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resolu%C3%A7%C3%A3o-181.pdf. Acesso em 25 de novembro de 2018.
[4] Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=372910. Acesso em 25 de novembro de 2018.
[6] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=359581. Acesso em 25 de novembro de 2018.
[7] Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int/eng#{"itemid":["001-122692"]}. Acesso em: 25 de novembro de 2018.
[9] As Regras de Tóquio foram formuladas pelo Instituto da Ásia e do Extremo Oriente para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (em 1986), cujo projeto foi aprovado em 14 de dezembro de 1990, pela Assembleia Geral das Nações Unidas (8º Congresso), integrando a Resolução 45/110, oficialmente denominadas Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas não Privativas de Liberdade. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/09/6ab7922434499259ffca0729122b2d38.pdf. Acesso em 24 de novembro de 2018.
[ 11] BVerfG, 2 ByR 2628/10, ByR 2883/10 und ByR 2155/11, vom 19/03/2013. Berlin: Bundes-Verfassungs-Gericht, 2013a. Disponível em: https://www.bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs/Pressemitteilungen/EN/2013/bvg13-017.html. Acesso em 25 de novembro de 2018.


 é promotor de Justiça e mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (USP).
Revista Consultor Jurídico, 30 de novembro de 2018.

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