segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Judiciário descumpre regra sobre encarceramento de mães, mostram HCs

Há leis que o Judiciário não gosta de cumprir. O Marco Legal da Primeira Infância, embora recente, já pode entrar para a lista de regras cujo descumprimento só resulta em mais prisões ilegais e em mais Habeas Corpus batendo às portas do Supremo Tribunal Federal — para serem concedidos. Desde março de 2016, quando foi aprovada a lei, as duas turmas da corte já concederam inúmeras ordens de soltura a rés grávidas ou mães de filhos menores de 12 anos com base no singelo argumento de que assim manda o Código de Processo Penal.
Judiciário resiste a conceder prisão domiciliar a rés grávidas; Supremo é quem resolve, sempre por meio de HCs.
O Marco Legal da Primeira Infância é uma lei que trata de um conjunto de medidas voltadas ao “desenvolvimento infantil”. Das mais comemoradas é a reforma do artigo 318 do CPP para dizer que o juiz pode substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando a ré for gestante ou mulher com filho menor de 12 anos de idade.
Na prática, a alteração diz que a motivação da prisão cautelar a grávidas e mães de crianças deve ser ainda mais robusta que a imposta aos demais réus. A lei está em vigor desde o Dia Internacional da Mulher de 2016. E são praticamente da mesma época os HCs concedidos pelo Supremo para mandar soltar as acusadas por falta de motivação da ordem de prisão e porque elas se enquadram nas situações previstas no novo artigo 318 do Código de Processo Penal.
Gilmar Mendes tem capitaneado preocupação do STF com cumprimento de regras sobre encarceramento de mães de crianças e grávidas.
Carlos Moura/SCO/STF
O ministro Gilmar Mendes tem sido pródigo em levar esses casos à 2ª Turma, que tem dado decisões unânimes. A mais recente é uma liminar do dia 24 de novembro, quando ele mandou substituir por prisão domiciliar a preventiva aplicada a uma mulher grávida de oito meses e mãe de um menino de três anos.
Para ele, a aplicação das medidas do Marco da Primeira Infância “encontra amparo legal na proteção à maternidade e à infância, como também na dignidade da pessoa humana, porquanto prioriza-se o bem-estar do menor”.
Tratamento adequado
Na decisão, Gilmar afirma que o Judiciário brasileiro deve aplicar as Regras de Bangkok, um conjunto de medidas das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas. A Regra 64 diz que “penas não privativas de liberdade serão preferíveis às mulheres grávidas e com filhos dependentes, quando for possível”.

As regras foram aprovadas pela Assembleia Geral da ONU em 2010, muito por causa da participação ativa da representação brasileira no órgão. Mas, como a maioria dos tratados internacionais de que o Brasil é signatário, elas só passaram a valer no país no dia 8 de março de 2016, Dia Internacional da Mulher, mesmo dia em que foi sancionado o Marco Legal da Primeira Infância. O que não quer dizer muita coisa, de acordo com o ministro Ricardo Lewandowski.
Brasil assumiu, na ONU, compromisso de implantar políticas específicas sobre o encarceramento feminino, mas nunca o fez, diz ministro Ricardo Lewandowski.
Carlos Moura/SCO/STF
Em abril deste ano, ele concedeu pedido de prisão domiciliar para mulher presa em flagrante por tráfico de drogas. Ela é mãe de quatro crianças menores de 12 anos e foi presa junto com o marido, pai de três delas.
“Apesar de o governo brasileiro ter participado ativamente das negociações para a elaboração das Regras de Bangkok e a sua aprovação na Assembleia Geral da ONU, até o momento elas não foram plasmadas em políticas públicas consistentes em nosso país”, escreveu o ministro na liminar. “Cumprir essas regras é um compromisso internacional assumido pelo Brasil.”
Escudos
Há precedentes do Supremo no mesmo sentido pelo menos desde junho de 2015, cinco anos depois da assinatura das Regras de Bangkok e um ano antes da sanção do Marco da Primeira Infância. Foi uma decisão da 2ª Turmarelatada pelo ministro Gilmar Mendes. Por unanimidade, a turma concedeu HC a uma mulher grávida sob o argumento de que a natureza abstrata do crime e a quantidade da droga apreendida não são motivos idôneos para decretação da prisão cautelar.

Mesmo com a reiteração das decisões, o Judiciário resiste. Em agosto deste ano, o juiz Atis de Araújo Oliveira, da 2ª Vara de Execuções Criminais de Presidente Prudente (SP), mandou uma mulher condenada por tráfico de drogas e mãe de uma menina de dez meses responder ao processo presa. A Justiça havia concedido a liminar, antes da condenação, quando ela estava grávida de sete meses, para que ela ficasse em prisão domiciliar.
Quase um ano depois, Atis Oliveira mudou a situação da ré. Ele foi instado a se manifestar no caso por causa da condenação. E considerou que, como a criança já havia nascido e estava com dez meses, a mãe poderia ser presa. Ela foi flagrada e condenada junto com seu “companheiro de vida”, com diz o magistrado.
Na decisão, o juiz escreveu que, assim como a mulher é a “gestante biológica” da menina, o pai passa por uma “gestação socioafetiva”. E se o pai quer se sentir tão gestante quanto a mãe, argumenta o juiz, “vamos dar então plenitude ao princípio da igualdade”. E decretou a prisão do casal.
Para o juiz, crianças não podem ser usadas como "escudos" contra a aplicação da lei ou para dar imunidade a quem comete crimes. Se o casal estivesse preocupado com o bem-estar da filha, não teria se envolvido com tráfico de drogas durante a gravidez, conclui o magistrado.
Desrespeito a proteção do interesse das crianças e adolescentes é "censurável situação de inconstitucionalidade por omissão", diz ministro Celso de Mello.
Rosinei Coutinho/SCO/STF
Advertências
É por causa desse tipo de decisão que o ministro Celso de Mello costuma escrever em suas liminares que o magistrado deve considerar os “vetores” criados pelas Regras de Bangkok e pelo Marco da Primeira Infância. “A benignidade desse tratamento dispensado às prisões cautelares de mulheres é também justificada pela necessidade de conferir especial tutela à população infanto-juvenil”, escreveu o ministro numa liminar de abril.

De acordo com o decano, obedecer ao que diz a lei nada mais é do que respeitar compromisso assumido pelo Brasil tanto interna quanto externamente. Para o ministro, conferir às grávidas e mães de crianças condições mais brandas de responder a processos penais é uma questão de respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, ao artigo 227 da Constituição Federal, que diz ser dever de todos dar prioridades às crianças e aos jovens, e às regras das Nações Unidas.
“O fato inquestionável, portanto, é um só: o objetivo perseguido pelo legislador constituinte, em tema de proteção integral aos direitos da criança, traduz meta cuja não realização qualificar-se-á como uma censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público, ainda mais se se tiver presente que a Lei Fundamental da República delineou, nessa matéria, um nítido programa a ser (necessariamente) implementado mediante adoção de políticas públicas consequentes e responsáveis”, afirma Celso.
 é editor da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 2 de dezembro de 2017.

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