terça-feira, 26 de setembro de 2017

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e o aborto

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No dia 28 de setembro é celebrado o Dia Internacional pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe. A frequente polêmica em torno dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, assim como os ataques aos métodos anticoncepcionais, ao planejamento familiar, ao acesso à educação sexual e ao aborto legal, representa uma tentativa de controle institucional dos corpos das meninas e mulheres. Este combate incansável aos direitos reprodutivos vem traduzido por meio de diversos projetos de lei retrógrados, mas felizmente também existem alguns avanços. Uma decisão moderna e conceitual a respeito do tema foi proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus 124.306.
O tema do aborto deve ser tratado sob a ótica da moderna jurisprudência pátria, que deve seguir as evidências científicas, a melhor tendência mundial de proteção à saúde, inclusive respeitando-se os tratados internacionais firmados pelo Brasil e a Constituição Federal. A Pesquisa Nacional do Aborto, realizada em 2010, pelo instituto Anis, concluiu que no Brasil pelo menos uma em cada cinco mulheres de até 40 anos já se submeteu à prática do aborto.[1]
Em novembro de 2016, o ministro Luís Roberto Barroso de forma muito acertada, acompanhado pelos ministros Rosa Weber e Fachin, proferiu voto histórico a respeito do tema do aborto. A 1ª Turma do STF considerou que o aborto, se praticado até o terceiro mês de gestação, não deveria ser considerado crime no caso analisado. Por unanimidade, também decidiram os ministros que as prisões dos réus não se sustentavam. Fundamenta-se o julgado em alguns princípios constitucionais como o da igualdade, dos direitos sexuais e reprodutivos, da autonomia e do direito à integridade física e psíquica da gestante:
“De acordo com o voto do ministro Luís Roberto Barroso, que alcançou a maioria, além de não estarem presentes no caso os requisitos que autorizam a prisão cautelar, a criminalização do aborto é incompatível com diversos direitos fundamentais, entre eles os direitos sexuais e reprodutivos e a autonomia da mulher, a integridade física e psíquica da gestante e o princípio da igualdade.”
Ensina o ministro Barroso:
“Torna-se importante aqui uma breve anotação sobre o status jurídico do embrião durante fase inicial da gestação. Há duas posições antagônicas em relação ao ponto. De um lado, os que sustentam que existe vida desde a concepção, desde que o espermatozoide fecundou o óvulo, dando origem à multiplicação das células. De outro lado, estão os que sustentam que antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em sentido pleno.”
O voto do ministro Barroso encontra-se em absoluta consonância com as evidências científicas, bem como com os tratados internacionais, com a Constituição Federal e com as normas técnicas do Ministério da Justiça.  O fundamento do respeitável Acórdão deve ser analisado sob três óticas: a científica, a social e a jurídica.
Do ponto de vista da ciência, o primeiro trimestre de gestação foi o escolhido como prazo para a descriminalização porque se considera que antes deste prazo não há formação completa do sistema nervoso central, portanto não se poderia falar em vida humana, que é marcada pela atividade cerebral. Normalmente, consideramos uma pessoa morta quando inexiste atividade cerebral.[2] Nesse sentido, se o fim da atividade cerebral é utilizado como marco final, o início da atividade cerebral pode ser considerado como marco inicial.
No que diz respeito ao aspecto social, precisamos identificar quais são as mulheres que fazem o aborto e quais as consequências da criminalização. As mulheres que praticam o aborto são as mulheres comuns, de todas as classes sociais, muitas já têm filhos. A Pesquisa Nacional do Aborto verificou que quanto menos escolaridade, mais riscos de prática de aborto inseguro sofrem as mulheres.[3]
Além disso, a criminalização produz uma discriminação social, como bem observou o Ministro Barroso, uma vez que o aborto inseguro tem um efeito perverso nas mulheres mais pobres e vulneráveis. Assevera o ministro:
“Por fim, a tipificação penal produz também discriminação social, já que prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo. Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários e primitivos, que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito.”
As evidências científicas comprovam esta discriminação social. O aborto inseguro produz 602 internações por dia. Também são responsáveis por 25% das esterilizações. Lamentavelmente, pode ser considerado entre a terceira a quinta causa de morte materna no Brasil, podendo chegar a ser considerada a primeira causa de morte materna, como em Salvador, por exemplo. Uma mulher morre por dia vítima de abortamento clandestino no Brasil. Existem 200.000 internações por curetagem, sendo que um grande número é decorrente de aborto. No âmbito mundial: “A mortalidade ligada à gravidez atinge 500.000 mulheres a cada ano, principalmente nos países mais pobres. Essas mortes não são de forma alguma inevitáveis. Sua extinção depende de políticas públicas de saúde. Em qualquer lugar as mulheres  têm direito à maternidade sem risco.”[4]
Do ponto de vista jurídico, o V. Acórdão encontra amparo não apenas na Constituição Federal, mas também no marco jurídico internacional. Quanto a este se destaca a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Convenção CEDAW), que é fiscalizada pelo Comitê CEDAW que monitora o cumprimento das obrigações dos países. Nas observações finais do Comitê CEDAW destaca-se a seguinte Recomendação ao Estado brasileiro:
“Agilizar a revisão da legislação que criminaliza o aborto, a fim de eliminar as disposições punitivas impostas às mulheres, como já recomendado pelo Comitê 9 (CEDAW/C/BRA/CO/6, parágrafo 3.); e colaborar com todos os intervenientes na discussão e análise do impacto do Estatuto do Nascituro, que restringe ainda mais os já estreitos motivos existentes que as mulheres façam abortos legais, antes da aprovação pelo Congresso Nacional do Estatuto do Nascituro”[5]
É preciso ter coragem para dar a visibilidade e a dimensão necessárias ao problema. A questão precisa ser tratada sob a ótica do direito à saúde. Sabemos que o aborto inseguro gera perigo à vida das gestantes, em especial àquelas mulheres em situação de vulnerabilidade social. A discussão sobre este tema não pode ser polarizada apenas entre aqueles que defendem a liberdade de escolha da mulher e aqueles que opinam pela criminalização desta ação, e a diminuição progressiva de suas hipóteses legais. Esta discussão precisa levar em conta os dados científicos disponíveis, as estatísticas de mortalidade materna, bem como a tendência mundial dos países que conseguiram reduzir estes índices, com preservação da saúde das mulheres e economia de recursos. Também deve ser levado em conta a legislação nacional e os tratados internacionais ratificados pelo Brasil[6]
Na construção de uma agenda para a garantia ao pleno acesso à saúde para gestante são essenciais: uma legislação se concentre mais na proteção das meninas e mulheres; na divulgação das normas que regulamentam o aborto legal, no âmbito internacional e nacional; no amplo debate com participação da sociedade civil, incluindo os profissionais de saúde, da academia, do sistema de justiça; a afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos com um olhar interseccional (não apenas de gênero, mas também étnico racial e de classe) e regional; na prevenção da gravidez na adolescência; na disseminação da contracepção e na educação sexual de qualidade.
Verifica-se que os ministros do Supremo Tribunal Federal, que decidiram o caso concreto mencionado, compreenderam o sofrimento psicológico da mulher gestante, assim também reconheceram os direitos sexuais e reprodutivos, o princípio da igualdade Constitucional, o direito à integridade física e psíquica da gestante, para o fim de reconhecer o seu acesso pleno à saúde, nos exatos termos da Constituição Cidadã de 1988, da Convenção CEDAW e do sistema internacional de Direitos Humanos das Mulheres. A violação aos direitos reprodutivos das meninas e mulheres, não pode ser silenciada, nós mulheres devemos ter o direito a viver com liberdade, autonomia e pleno acesso à saúde. Nenhuma morte evitável de meninas e mulheres pode ser aceita assim, em silêncio.

[1]DINIZ, Debora e MEDEIROS, Marcelo, Aborto no Brasil uma pesquisa domiciliar com técnica de urna, http://www.scielo.br/pdf/csc/v15s1/002.pdf, 2/06/2017.
[2] A morte cerebral é a incapacidade do cérebro de manter as funções vitais do organismo, como o paciente respirar sozinho, por exemplo.
[3] DINIZ, Debora e MEDEIROS, Marcelo, Aborto no Brasil uma pesquisa domiciliar com técnica de urna, http://www.scielo.br/pdf/csc/v15s1/002.pdf, 2/06/2017
[4] FRYDMAN, Rene, “O Livro negro das condições das mulheres”

[6] PORTO, Rozeli Mari, Profissionais de Saúde e Aborto Seletivo em Hospital Público em Santa Catarina, em Sexualidade, Reprodução e Saúde, HEILBORN, Maria Luiza e outros, Editora FGV, 2009.
 é promotora de Justiça do MP-SP, membro do Ministério Público Democrático, mestre em Direitos Humanos pela UNSW (Austrália) e vice-presidente da ABMCJ-SP.
Revista Consultor Jurídico, 25 de setembro de 2017.

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