quarta-feira, 14 de junho de 2017

Estado deve indenizar preso cautelar posteriormente absolvido



No presente estudo, nos propomos a discutir tema recorrente do dia a dia do defensor público, consistente em o que fazer em situações nas quais o membro da instituição depara-se com indivíduo preso cautelarmente e posteriormente posto liberdade em virtude de decisão absolutória própria ou que venha a extinguir a punibilidade do acusado [1].
Em que pese o entendimento de nossas cortes no sentido de que a absolvição seria algo “suficiente” para recompor o patrimônio jurídico do preso cautelar, já que a “mera” improcedência da ação penal seria supostamente incapaz de demonstrar eventual erro judicial indenizável por parte do estado [2], ousamos nos posicionar em sentido diverso.
In casu, entendemos que não se trata de analisar propriamente a existência de erro judicial indenizável aos termos do artigo 5º, LXXV da Constituição[3], porém analisar a situação à luz da responsabilidade objetiva do beneficiado pela tutela cautelar.
Acerca da questão, a legislação processual prevê a responsabilidade civil objetiva do autor da demanda em relação às medidas cautelares a este deferidas no iter processual, em caso de ulterior sentença a ele desfavorável, abrindo as vias da ulterior liquidação de valores em prol do prejudicado[4]. Em outras palavras, reconhece-se, por força legal, o an debeatur, cabendo ao prejudicado tão somente procurar as vias adequadas para definir o quantum debeatur.
Assim, cabe ao beneficiado pela efetivação da tutela de urgência não corroborada em decisão terminativa ser responsabilizado pelos danos causados à parte adversa. De acordo com a doutrina de Daniel Assumpção Neves, trata-se da teoria do risco-proveito. Neste aspecto, se a obtenção da tutela cautelar concedida em sede de cognição sumária foi proveitosa para a parte autora, esta deve suportar eventuais riscos dessa concretização em caso de não confirmação em sede de decisão de cognição exauriente[5].
É imperioso ressaltar, ainda, que o elemento culpa não deve ser valorado na análise dessa responsabilidade, é dizer, para que haja responsabilização basta que a medida cautelar não seja confirmada em sede de sentença ocasionando prejuízo ao liquidante.
Esta leitura, vale apontar, não merece entendimento diverso mesmo se tratando de questão afeta à seara criminal, especificamente em relação às prisões cautelares, consoante já explanado. Afinal, trata-se de medida solicitada pelo Estado — através do Ministério Público, ou autoridade policial — e por este deferida, através do Poder Judiciário.
Não se ignora que é possível, em tese, que no momento de sua decretação, os requisitos necessários para concessão da medida cautelar estivessem presentes e aludida medida necessitasse ser deferida como corolário do interesse público em segredar determinada pessoa, ainda inocente, do convívio coletivo. Por outro lado, como já dito, isto é irrelevante, ante a responsabilidade objetiva do demandante pela tutela cautelar em decorrência de imposição legal.
Ademais, conforme bem leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, afrontaria a isonomia o Estado vir a lesar desproporcionalmente um cidadão individualmente considerado em prol de toda a coletividade e esta mesma coletividade, encarnada no Estado, não suportar as consequências destes danos. Confira-se:
“Com efeito, o Estado pode, eventualmente, vir a lesar bem juridicamente protegido para satisfazer interesse público, mediante conduta comissiva legítima e que sequer é perigosa. É evidente que em tal caso não haveria cogitar de culpa, dolo, culpa do servidor ou qualquer traço relacionado com a figura da responsabilidade subjetiva (que supõe sempre ilicitude). Contudo, a toda evidência, o princípio da isonomia estaria a exigir reparação em prol de quem foi lesado a fim de que se satisfizesse os interesses da coletividade. Quem aufere os cômodos deve suportar os correlatos ônus. Se a sociedade, encarnada juridicamente no Estado, colhe os proveitos, há de arcar com os gravames econômicos que infligiu a alguns para o benefício de todos”[6]
Assim, ante a cessação da eficácia da medida prisional cautelar revogada em decisão terminativa, independentemente de sua razão, resta configurada a responsabilidade do Estado, titular da ação criminal, cabendo a liquidação dos danos causados, exatamente por força do artigo 302, parágrafo único, do CPC-20157.
Todavia, sendo impossível a liquidação de danos no juízo criminal, caberá seu processamento no juízo fazendário, tornando-se necessária a propositura de processo autônomo de liquidação, e não como incidente nos próprios autos principais como usualmente ocorre.
Aponta-se, ainda, a título de argumentação, que no âmbito do Superior Tribunal de Justiça já se entendeu que a prisão cautelar do indivíduo posteriormente absolvido, por qualquer razão que seja, configura-se “erro judiciário” para fins indenizatórios. Eis excerto do julgado:
"Sob esse ângulo, forçoso convir que a situação de o cidadão ser submetido à prisão processual e depois absolvido, é equivalente àquela em que o Estado indeniza o condenado por erro judiciário ou pelo fato de este permanecer preso além do tempo fixado na sentença. Forçoso, assim, concluir, que quando preso preventivamente o cidadão e depois é absolvido, in casu, pelo Tribunal do Júri, também se configura situação em que houve erro judiciário, sem que tenha havido condenação"[8].
Sem ignorarmos tratar-se de posição que não reflete o entendimento majoritário da corte e apesar de discordarmos do fundamento da decisão, uma vez que a responsabilidade estatal in casu é decorrente da teoria do risco-proveito da tutela cautelar, tem-se evidente argumento de reforço a corroborar a tese acerca da necessidade de indenização em favor do preso cautelar, posteriormente absolvido.
Finalmente, é de se ressaltar que a coletividade necessita se conscientizar acerca dos ônus da permissividade do sistema jurídico brasileiro com o uso das prisões cautelares, as quais, atualmente, chegam a níveis alarmantes e que influenciam sobremodo a crise do sistema penitenciário nacional. Assim, caso se mostre dificultoso entender que o tão-só cerceamento de liberdade de não-condenados é socialmente aberrante e tal medida deve, verdadeiramente, ser utilizada apenas em casos bastante excepcionais, deve-se reforçar este entendimento e impor o dever de toda sociedade suportar com mais clareza os ônus desta situação permissiva, levando-a a refletir com mais parcimônia sobre os caminhos que estão seguidos com a explosão do número de presos provisórios.
Portanto, e em razão do exposto, entendemos que em situações nas quais o defensor público venha a lidar com casos em que o acusado criminal venha a ser cautelarmente ceifado de sua liberdade e posteriormente esta medida venha ser revogada por decisão absolutória ou extintiva de punibilidade, e ante a presença do an debeuatur por força de lei, deverá: i) ajuizar liquidação de sentença autônoma em juízo fazendário com o fito de estabelecer o quantum indenizatório; ou ii) caso não tenha atribuição para tanto — e por consequência careça de capacidade postulatória para ajuizamento da liquidação de sentença9 — que remeta informações ao membro da Defensoria Pública com competência para propositura de tal medida.

1 Ante as nuances da questão e do limite de espaço desta coluna não analisaremos a situação do preso cautelar absolvido de maneira imprópria.
2 Por todos: “ADMINISTRATIVO - INDENIZAÇÃO - PRISÃO E PROCESSO PENAL - ABSOLVIÇÃO POR INOCÊNCIA - DANO MORAL. 1. As circunstâncias fáticas analisadas e sopesadas nas instâncias ordinárias afastam a hipótese de ato ilícito, pela quebra do nexo de causalidade. 2. Exercício regular do poder de polícia, desenvolvido com a prova indiciária contrária ao recorrente, deu ensejo ao processo criminal. 3. Absolvição que atesta a lisura estatal e recompõe o equívoco, sem direito a indenização. 4. Recurso especial improvido”. (STJ, REsp. 337225/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 25.03.03)
3 “LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”
4 “Art. 302 do CPC. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se: I - a sentença lhe for desfavorável; II - obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias; III - ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal; IV - o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor. Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível”
5 NEVES, Daniel Amorim Assumpção, Novo Código de Processo Civil. Salvador: Ed. Jusdivm, 2016, p. 481.
6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de Direito Administrativo. 32ª edição, São Paulo: Ed. Malheiros, 2015, p. 1039/1040.
7 Neste sentido: “Ocorrida uma das hipóteses do art. 302 do Novo CPC no caso concreto, o requerido poderá cobrar do beneficiário da tutela provisória todos os danos suportados em razão da sua efetivação. Segundo o art. 302, parágrafo único, do Novo CPC, a indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida sempre que for possível […]” (NEVES, Daniel Amorim Assumpção, Novo Código de Processo Civil. Salvador: Ed. Jusdivm, 2016, p. 483)
8 STJ, Resp 427.560/TO, Rel. Min. Luiz Fux, j. 05/09/2002.
9 Para maiores detalhes ver: PASSADORE, Bruno de Almeida, Capacidade Postulatória do Defensor Público Natural é Limitada. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-mai-30/tribuna-defensoria-capacidade-postulatoria-defensor-publico-natural-limitada, disponibilizado em 30/05/2017, acessado em 12/06/2017.
Bruno de Almeida Passadore é mestre em Direito Processual Civil pela USP. Defensor Público Auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Paraná. Presidente da Comissão de Prerrogativas da da Defensoria Pública do Estado do Paraná.
Fabíola Parreira Camelo é Defensora Pública do Paraná atuante nos ofícios Cível e Juizado da Fazenda Pública de Curitiba, especialista em Direito do Estado pela Uniderp.
Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2017.

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