quarta-feira, 21 de junho de 2017

Chacinas em Belém e paradoxo do monitoramento eletrônico

Os primeiros meses de 2017 têm sido marcados na grande Belém, capital paraense, por chacinas durante as quais pessoas são executadas em via pública, em bares e dentro de suas próprias casas. Até o presente momento a autoria desses crimes não foi esclarecida pelo trabalho investigativo da polícia. Nenhum suspeito foi preso. E o que é pior, as chacinas continuam a ocorrer. Instalou-se um medo generalizado na população da periferia, sobretudo à noite e nos finais de semana. É em bairros afastados do centro de Belém e também em cidades próximas como Ananindeua e Marituba que a ação dos matadores está em curso. Os horários preferidos são à noite. E o final de semana é o período predileto.
A ação dos executores tem sido descrita por sobreviventes e por pessoas que testemunharam as mortes como sendo veículos que se aproximam com os algozes — uns falam num veículo prata, outros num veículo preto etc. (as cores variam) — os quais descem do veículo e efetuam os disparos contra as vítimas. Algumas vezes os tiros são efetuados do interior do veículo. Indivíduos em motocicletas também têm sido vistos nessas execuções. Em grande parte, os tiros dirigem-se contra pessoas que se encontram em bares ou assistindo na rua jogos de futebol dos times locais (Remo e Paysandu) pela televisão. Em situações mais específicas, residências são invadidas, pessoas agredidas e indivíduos executados. Ou, ainda, indivíduos específicos são executados enquanto transitam pela via pública. Houve episódios em que até crianças foram alvejadas.
A pior de todas, com o maior número de mortos, ocorreu em janeiro — os números oscilam em torno de 30 mortos e 25 feridos. De lá para cá, outras, com um número menor de vítimas, têm se repetido. Em abril, a onda de mortes atingiu Belém e Ananindeua. Foram dez mortes, segundo a Secretaria de Segurança do Estado do Pará. No mês de maio, a chacina foi no Conjunto Eduardo Angelim, quando houve quatro mortos na noite do dia 4. No dia 6 de junho, no bairro da Condor, em Belém, houve mais uma chacina, quando três homens morreram e uma quarta vítima morreu em atendimento médico, totalizando 4 mortes. Ficaram 14 pessoas feridas, sendo duas crianças. As informações sobre essas chacinas estão fartamente divulgadas na internet e amplamente cobertas pela imprensa local. E todas ocorreram coincidentemente depois de alguma morte ou ataque a policiais militares, o que tem levado à forte suspeita de um tipo de ação praticada por milícia como fruto do corporativismo policial em reação à investida contra membros da corporação.
A questão que nos chama a atenção e que aqui queremos dar destaque é bem específica, pois as demais ficarão a cargo das investigações. A Secretaria de Segurança Pública do Pará sempre divulga que todas as providências estão sendo tomadas, embora, efetivamente, nenhum resultado concreto como identificação de autores, prisão de suspeitos e inibição das execuções tenha sido alcançado. Chama, contudo, nossa atenção o fato de que parte dessas pessoas executadas usava tornozeleira eletrônica por estarem em liberdade numa alternativa ao cárcere. É o chamado monitoramento eletrônico.
Foi a Lei 12.403, de 04.05.2011, que alterou diversos dispositivos do Código de Processo Penal, dentre os quais o artigo 319, para incluir no inciso IX a medida cautelar diversa da prisão — a monitoração eletrônica. Essa lei procurou explicitar aquilo que já se conhecia no direito — a prisão cautelar, qualquer que seja sua modalidade, é exceção. Isto significa dizer que a regra é que o acusado responda ao processo em liberdade; ou, se necessário for, seja submetido à liberdade sob condições; e, somente em situações excepcionais, a prisão deve subsistir durante a instrução processual. A razão é que a prisão cautelar não pode se converter numa verdadeira antecipação de pena, que, como se sabe, é imposta numa sentença penal condenatória e se torna definitiva com o trânsito em julgado da decisão. Na Lei de Execuções Penais, foi a Lei 12.258, de 15.06.2010, que inseriu a Seção VI que trata da monitoração eletrônica. A regulamentação está por conta do Decreto 7.627, de 24.11.2011.
Pois bem, a monitoração eletrônica é uma modalidade de medida alternativa à prisão cautelar ou definitiva. O juiz defere a liberdade ao preso condicionada ao monitoramento eletrônico, que se operacionaliza com a colocação da tornozeleira eletrônica pelo órgão de gestão penitenciária. O artigo 5º do referido decreto dispõe que o equipamento de monitoração eletrônica deverá ser utilizado de modo a respeitar a integridade física, moral e social da pessoa monitorada.
Aqui está o ponto onde se estabelece o paradoxo e que requer nossa atenção. A monitoração veio para que a prisão não continuasse. É uma forma de garantir o direito do preso a não permanecer encarcerado e, ao mesmo tempo, aliviar o abarrotado sistema penitenciário brasileiro, que possui uma das mais populações carcerárias do mundo. O preso responderia ao processo em liberdade ou cumpriria a pena (ou parte dela) sob monitoração. O uso do equipamento seria de modo a respeitar sua integridade física, moral e social.
Contudo, ouvimos de um determinado magistrado que atuou durante algum tempo na execução penal que mães de presos compareciam à sua presença para pedir (algumas com lágrimas) que não fosse posta a tornozeleira no filho. Qual a razão desse tipo de pedido e do paradoxo mencionado: é que a liberdade com uso de tornozeleira se tornou num critério de identificação pelos autores dessas chacinas. Deixamos aqui de mencionar nomes, mas eles são facilmente localizados nas matérias que tratam dessas chacinas em Belém.
Mencionamos acima quatro chacinas; contudo, outras mortes individuais de monitorados têm ocorrido com regularidade. De maneira mais enfática: a liberdade com tornozeleira tornou-se sinônimo de pena de morte; é melhor (na perspectiva dessas vítimas) permanecer preso.
Surge aqui uma questão jurídica da mais alta relevância: que deve o juiz fazer diante desse quadro? Impor a tornozeleira e aceitar a possibilidade da execução? Manter a prisão para que não haja a morte do preso? Pensamos que nem uma coisa e nem outra. Diante do que vem ocorrendo na região metropolitana de Belém (e não temos informações se esse fato também se repete em outros locais do país), deve ser averiguada a situação de vulnerabilidade social do preso. Se é uma vítima em potencial dessas chacinas, a liberdade, se preenchidos os requisitos, deve ser deferida sob outras condições diversas do monitoramento. Falamos aqui da adoção da vulnerabilidade social como critério jurídico mesmo, uma vez que essas chacinas não ocorrem nas regiões de bairros centrais de Belém e nem em ambientais sociais como clubes e bares frequentados pelas classes mais abastadas ou mesmo shopping centers.
A adoção desse critério levará ao afastamento da monitoração da grande maioria dos casos envolvendo presos, pois, como sabemos, o sistema penitenciário alcança exatamente pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social (baixa renda, pouca escolaridade, desemprego, tenra idade etc.), que é uma faceta do sistema penal já conhecida, embora ainda alguns insistam em ignorá-la como se houvesse igualdade na elaboração da lei penal e na sua aplicação nas mais diversas instâncias. A chamada criminalização primária e secundária de que falam os criminólogos.
Está aí mais uma faceta das leis penais e processuais penais. Mesmo aquelas que parecem vir para explicitar ou concretizar algum direito reconhecido constitucionalmente, tornam-se numa via mais cruenta para que o discurso não declarado do sistema penal no seu sentido mais amplo se efetive. Eis o paradoxo: outorga-se a liberdade para que o preso sofra a pena de morte, negada pela Constituição.
 é promotor de Justiça no Pará. Mestre e Doutorando em Direito (PPGD/UFPA).
Revista Consultor Jurídico, 20 de junho de 2017.

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