terça-feira, 15 de março de 2016

Quem adere à cultura punitivista pressupõe que nunca será uma de suas vítimas

É evidente o crescimento, nos últimos anos, de uma cultura punitivista que vê no Direito Penal um instrumento redentor.
Quem adere a essa cultura do linchamento pressupõe que nunca será uma de suas vítimas. Normalmente, divide as pessoas entre as “de bem” e as “outras”, e, evidentemente, o seu lugar no primeiro grupo parece garantido.
Temos a impressão, como professores de Direito Constitucional, que a cada dia fica mais difícil ensinar temas de direitos fundamentais. Nas aulas, o conteúdo que queremos passar disputa com conceitos muito arraigados, aprendidos em casa, na mídia e na rua. Temos que afirmar claramente que eles, ali naquela sala, estão entre os que mais gozam de direitos na prática e que eles circulam livremente, falam o que pensam e creem no que bem entendem, sem temer uma violência estatal pelo exercício dessas liberdades. Temos que chamar a atenção de que a cultura que põe direitos humanos no centro ainda está longe de ser realidade para boa parte da população.
A expectativa da sociedade alimenta agentes estatais que assumem uma postura de heróis. Quanto mais espetáculo, mais aplausos. Quanto mais aplausos, maior é o show. O problema é que esse não é o papel do Poder Judiciário. As decisões judiciais não devem ser orientadas pelo calor de uma plateia ávida por punições exemplares e decretadas num cenário de “vale-tudo”. Nós, o povo, conferimos aos juízes importantes garantias de independência (vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de subsídios), justamente para que possam julgar com base nas leis e na constituição, ainda que isso contrarie maiorias ocasionais e parte da opinião pública (não raro deturpada por alguns meios de comunicação). Daí falarmos em uma função contramajoritária (e não necessariamente antidemocrática) das cortes.
Daí que, na linguagem política brasileira, já se tem intensificado o uso de um novo conceito, precisamente o de “populismo judicial” para denunciar aquelas práticas em que a decisão judicial parece estar sobretudo motivada por razões de índole política, em vez de jurídicas. Em vez de cederem ao populismo judicial, magistrados deveriam ser os principais atores a lembrarem à sociedade que direitos e garantias individuais existem para proteger qualquer pessoa, e não somente aquelas por quem nutrimos simpatia e admiração. Sim, numa democracia, meu rival não deixa de ter direitos por ser meu rival.
Juízes criminais ativos na investigação — um misto de juiz, delegado e membro do Ministério Público — não são figuras estranhas nas democracias constitucionais. Porém, em grande parte dos países, os juízes responsáveis por acompanhar investigações e a produção de provas ficam apenas com essas funções. Reconhece-se que estão tão contaminados pela investigação que não têm o distanciamento necessário para julgar. Aqui, o juiz-herói será, também, o responsável pelo julgamento.
Nesse contexto, parece inevitável criticar a recente decisão do juiz Sergio Moro, por ocasião do desencadeamento da 24ª fase da operação “lava jato”, em que se determinou a condução coercitiva do ex-presidente Lula para prestar depoimento de cunho investigatório. Ao fundamentar sua decisão, o juiz Sergio Moro ostentou as seguintes razões:
  • Argumenta que a medida é necessária, pois, em depoimentos anteriormente designados para sua oitiva, teria havido tumulto provocado por militantes políticos, como o ocorrido no dia 17 de fevereiro de 2016, no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo. No confronto entre polícia e manifestantes contrários ou favoráveis ao ex-presidente, “pessoas ficaram feridas”.
  • Receia que tumultos equivalentes se repitam, com o que a oitiva deles, na mesma data das buscas e apreensões, reduziriam, pela surpresa, as chances de ocorrência de eventos equivalentes.
E, mais à frente, reiterou a razão fundamental para desferir a ordem de condução coercitiva:
  • Por outro lado, nesse caso, apontado motivo circunstancial relevante para justificar a diligência, qual seja evitar possíveis tumultos como o havido recentemente perante o Fórum Criminal de Barra Funda, em São Paulo, quando houve confronto entre manifestantes políticos favoráveis e desfavoráveis ao ex-presidente e que reclamou a intervenção da Polícia Militar.
  • Colhendo o depoimento mediante condução coercitiva, são menores as probabilidades de que algo semelhante ocorra, já que essas manifestações não aparentam ser totalmente espontâneas.
  • Com a medida, sem embargo do direito de manifestação política, previnem-se incidentes que podem envolver lesão a inocentes.
  • Por outro lado, cumpre esclarecer que a tomada do depoimento, mesmo sob condução coercitiva, não envolve qualquer juízo de antecipação de responsabilidade criminal, nem tem por objetivo cercear direitos do ex-presidente ou colocá-lo em situação vexatória.
A grande questão é que, nesse caso, o juiz se afastou da própria jurisprudência consolidada do STF, bem como se ateve à decisão que não se aplica exatamente à questão sob exame. Se dos casos proferidos pelo STF só se tem admitido a condução coercitiva na hipótese restrita e excepcional na qual a testemunha e acusado não atenderem à intimação, como justificar — a partir de uma noção de integridade do Direito — que a decisão do juiz Sergio Moro foi constitucionalmente adequada?
O juiz Moro, ele próprio, reconhece que o ex-presidente já tinha atendido a uma intimação sua, mas, para o “bem da ordem pública”, resolveu determinar a condição à luz do pensamento probabilístico segundo o qual, com tal medida, se poderiam evitar os tumultos e prejuízos, anteriormente registrados no último depoimento colhido do Lula.
É fácil, pois, identificar a falta de fundamentação consistente para legitimar a decisão de condução coercitiva, eis que, segundo consta de seu teor, em nenhum momento, o ex-presidente Lula se negou a atender ordem de intimação. À míngua, pois, de razão suficiente para a decretação de tal ordem judicial, outra não parece ser sua motivação senão a de criar um fato político, um grau tal de comoção social em que o anticristo seria o líder maior do partido que hoje ocupa a cadeira da Presidência da República.
Tal linha de argumentação, que não obstante possa não corresponder a verdadeira intenção do magistrado, sem dúvida alguma soa como hipótese provável que muitos segmentos da sociedade têm considerado. Destarte, torna-se inevitável reconhecer que, além de uma justiça midiática, esse modo específico de proceder, que se apoia na restrição indevida de direitos fundamentais e na exposição de pessoas ao público como se condenadas fossem, além de promover verdadeira involução do Estado Democrático de Direito, contribui para inaugurar uma perigosa prática institucional em que, em nome da luta pelo poder, admite-se a adoção de todas as medidas possíveis (constitucionais ou não; legais ou não) tendentes a afastar dirigentes de cargos eletivos para os quais foram legitimamente eleitos.
Há, ainda, nesse tipo de conduta, um mal ainda mais perverso: o desperdício de nossa experiência histórica, que, desde nossa primeira Constituição, tem sido marcada por golpismos e autoritarismos. A punição a todo custo, especialmente das autoridades políticas máximas, revela, portanto, outra face perversa em sua capacidade de fazer implodir garantias institucionais e constitucionais, que foram lenta e arduamente conquistas às duras custas pelo povo brasileiro.
Artigo produzido pelo grupo Recife Estudos Constitucionais (REC), formado pelos professores Adriana Rocha de Holanda Coutinho, Flávia Danielle Santiago Lima, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira, José Mário Wanderley Gomes Neto, Luiz Henrique Diniz e Marcelo Labanca Corrêa de Araujo.
Revista Consultor Jurídico, 14 de março de 2016.

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