segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Poder Judiciário não deve ser refém de acordos de delação premiada do MP


Ao elaborar o prefácio do excelente livro de autoria dos professores e amigos Vinicius Marçal e Cleber Masson, publicado este ano pela Editora Método/Gen, intitulado “Crime Organizado”, demonstrei minha preocupação com uma perspectiva mais “privatista” do processo penal, resultante da adoção importada de um sistema acusatório puro ou adversarial. Nele, a vontade das partes é supervalorizada, em detrimento até da própria aplicação da lei penal (pública e, por isso mesmo, cogente). Até mesmo a busca de uma decisão justa pode ficar afastada pela vontade das partes no processo ... Deixei escrito naquela oportunidade:
“Também não tenho grandes restrições ao novo 'instituto', que julgo ter a natureza de negócio jurídico processual. Sendo tal delação facultativa, é mais um instrumento de que se pode valer a defesa de um indiciado ou acusado. Aliás, jamais se poderia impedir que eles pudessem confessar crimes e que pudessem delatar outros que também participaram desta prática criminosa. A grande novidade é que tudo acaba sendo premiado por autorização expressa da lei. Agora, o valor probatório do que foi dito pelo réu colaborador será submetido ao livre convencimento motivado do juiz, como todo os interrogatórios dos réus e depoimentos das testemunhas.
Minha restrição à cooperação premiada (delação premiada) diz respeito ao afastamento de determinadas cominações da lei penal (cogente), por acordo entre as partes no processo penal. Por exemplo: por acordo entre o Ministério Público e o réu, com assistência da defesa técnica, pode ser permitida a não aplicação do lei penal no caso em que caberia; poderia ser autorizada a progressão de um regime de cumprimento de pena sem obedecer ao lapso temporal exigido pela lei etc. etc. etc. Vejo aí mais uma influência perigosa de uma indesejável privatização do sistema penal, que praticamente começa com a lei. n.9099/95 e com a importação de alguns institutos do sistema processual norte-americano, mormente a estrutura adversarial do processo penal, que repudio.    
O processo penal não pode ser tratado com um duelo entre duas partes, no qual vence a mais hábil, diligente ou esperta. O interesse público e o sentimento de justiça não aceitam esta visão privatista do fenômeno processual”.
Refletindo sobre esta questão, tendo em vista palestra que devo proferir no XXI Congresso Nacional do Ministério Público, cheguei a novas conclusões sobre a melhor interpretação de algumas regras da Lei 12.850/13, que abaixo apresento, de forma tópica e didática:
1. A regra do artigo 4°, parágrafo 4°,  da citada lei, que permite ao Ministério Público deixar de oferecer denúncia em face de um indiciado colaborador, que não seja o chefe da organização e que seja o primeiro a fazer o acordo, deve ter a seguinte interpretação sistemática:
1.1. Na hipótese, o Ministério Público deve requerer o arquivamento do inquérito policial ou de qualquer outro procedimento investigatório, apenas em relação ao indiciado colaborador, aplicando-se a regra do art. 28 do Código de Processo Penal, para que haja um sistema de controle, pois estamos diante de uma exceção ao princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal. Assim, o colaborador não ficará como indiciado perpetuamente.
1.2. O desarquivamento deste inquérito ou investigação se submete ao sistema do código de processo penal. Assim, se surgir notícia de prova nova de que o indiciado era o chefe da organização criminosa, por exemplo, as investigações poderão ser retomadas. Se a tal prova nova já existir, a ação penal pode ser exercida desde logo.
2. A regra do artigo 4° da Lei 12.850/13 deve merecer do intérprete a seguinte compreensão, sempre preocupada com a preservação do sistema:
2.1. O acordo de cooperação premiada, que tem a natureza de negócio jurídico processual, não pode especificar qual dos quatro prêmios o juiz terá de aplicar na sua futura sentença condenatória. Vale dizer, privilegiar um prêmio e excluir os outros, vedando que o magistrado possa fazer a individualização da pena, que é um preceito constitucional. Este nosso entendimento, permite que, diante do prêmio aplicado pelo juiz, o Ministério Público e/ou réu possam apelar, levando o tema a um salutar controle pelo duplo grau de jurisdição.
2.2. Diversamente da hipótese da regra do parágrafo 4° do artigo 4° acima referida, onde apenas se mitiga o princípio da  obrigatoriedade, aqui a lei permite que o Ministério Público e o indiciado possam negociar com o próprio direito material, ou seja, negociar sobre a aplicação da lei penal no caso concreto.
2.3. Como o magistrado não pode deixar de homologar o acordo de cooperação, salvo  ilegalidades de aspecto formal e como este magistrado fica vinculado a este ato jurídico perfeito, na prática, a sanção penal fica quase que totalmente ao alvedrio da partes contratantes, o que é uma verdadeira revolução em nosso sistema jurídico.
2.4. Desta maneira, impõe-se interpretar a lei de modo a não impedir que o juiz possa aplicar a pena que mais se aproxime de sua convicção, já que está vinculado pelo acordo das partes, podendo até conceder o perdão judicial. Não podem as partes, via acordo, obrigar o magistrado a uma sentença que ele repudia, a uma entrega da prestação jurisdicional exigida por um órgão do Ministério Público e um membro da organização criminosa.
2.5. Em outras palavras, um membro do Ministério Público não pode ter o poder de obrigar o órgão jurisdicional a conceder um perdão a quem, dentro de uma organização criminosa, praticou crimes gravíssimos... Note-se que, não podendo o juiz deixar de homologar o acordo em razão de avaliação de seu mérito, tal absurda benesse fica sem qualquer controle. Em nenhum país do mundo, encontramos tal aberração. Qualquer que seja a gravidade dos crimes, as “partes contratantes” estão obrigando o juiz a aplicar tal sanção ou a não aplicá-la (perdão judicial).
2.6. Note-se a necessidade de se mitigar o absurdo: diante de um crime de roubo isolado, o autor desta infração penal não terá qualquer benefício. Agora, se ele tiver praticado cinco latrocínios, através de uma organização criminosa, ele poderá se beneficiar (ao menos em tese) com um perdão judicial, imposto ao juiz pelo acordo dele com o membro do Ministério Público. Será que a lei está instigando a formação de organizações criminosas? ...
2.7. Nem se diga que a regra do parágrafo 8° do artigo 4° poderia, parcialmente, evitar alguns destes problemas. Na verdade, tal dispositivo não autoriza o juiz a participar da negociação sobre os prêmios, pois isto está expressamente vedado pelo parágrafo 6°. Caso contrário, o magistrado estaria antecipando a sua pena, ainda na fase do inquérito... Por outro lado, como o juiz faria a valoração da pena ou do perdão judicial no início de tudo? Ademais, outros problemas surgiriam desta  interpretação errônea, com a possibilidade de o juiz não homologar o acordo em razão de seu mérito, criando controvérsias sobre eventuais recursos e outros incidentes, antes mesmo da instauração da relação processual. Na verdade, o dispositivo legal apenas permite ao magistrado podar regras contratuais inconstitucionais ou ilegais, como recentemente ocorreu quando um Ministro do Supremo Tribunal homologou um acordo de cooperação premiada, excluindo uma cláusula, através da qual o indiciado “renunciava” a interpor futuros e eventuais recursos.
2.8. A decisão de homologação do acordo de cooperação premiada tem a natureza de jurisdição voluntária, vale dizer, trata-se de uma decisão judicial (não jurisdicional) que a lei exige para a concretização e eficácia de um determinado negócio jurídico. Aqui, não temos pretensão (no sentido técnico, Carnelutti) e muito menos lide (não há como resistir ao que não existe, pretensão). Assim, a retratação prevista no parágrafo 10° do sempre referido artigo 4° só terá eficácia se manifestada antes da homologação. O desfazimento do acordo homologado dependerá sempre de uma decisão judicial desconstitutiva.
Julgo que o acordo de cooperação premiada é um negócio jurídico de Direito Público, dependendo a sua existência jurídica da manifestação estatal (do juiz). Assim, até mesmo para a estabilidade da relação processual penal, não vejo como admitir o distrato por ambas as partes. Evidentemente, pode haver inadimplemento em relação aos deveres assumidos. Por exemplo: o réu opta para, em juízo, ficar em silêncio ou mentir sobre a atuação dos outros membros da organização criminosa. Nestes caso, perderá direito ao "prêmio" avençado e a prova produzida será valorada livremente pelo magistrado, sendo tudo decidido na sentença final, impugnável pelo recurso de apelação.
2.9. Reconheço que a regra do parágrafo 2° do artigo 4°, a menos técnica e de difícil entendimento, mormente quando se refere ao artigo 28 do Código de Processo Penal, pode ser interpretada como um óbice ao que estamos sustentando, pois parece admitir o acordo de cooperação premiada sem a previsão do perdão judicial. Tendo em vista que a nossa proposta busca “recuperar” o princípio constitucional da individualização da pena e preservar um sistema jurídico que não impeça a garantia, também constitucional, de o juiz decidir segundo o seu convencimento, julgo caber aqui técnica da interpretação conforme a constituição. Assim, podemos entender que tal defeituosa regra estaria permitindo ao magistrado, desde que haja postulação neste sentido, a concessão de perdão judicial ao réu (na sentença final), mesmo que não exista o acordo de cooperação, mas a cooperação tenha se efetivado por “delação unilateral” do réu, conforme ocorre nas diversas leis anteriores à Lei 12.850/2013. Tais leis regulam prêmios ao “delator”, sem prévio acordo com o Ministério Público ou com a autoridade policial.
2.10. Melhor explicando: faço distinção entre "cooperação premiada unilateral", prevista nas várias leis anteriores à Lei 12.850/13, do "acordo de cooperação premiada". Este seria um negócio jurídico processual público e aquela funcionaria como uma causa especial de diminuição de pena.  Acho que, na cooperação unilateral, o colaborador pode até ser inocente e não confessar. Por exemplo: alguém é preso em flagrante e se diz agente infiltrado. Ele pode ter conhecimento de toda organização criminosa e a delata ao delegado ou ao membro do Ministério Público. Se for condenado, o juiz pode reduzir a sua pena.  Não havendo o acordo, o juiz NÃO está "vinculado"e decide livremente.
Note-se que a cooperação unilateral pode ocorrer até mesmo em face de uma extorsão mediante sequestro (Código Penal), sem que exista uma organização criminosa, mas apenas uma associação criminosa. Aqui também não há o acordo de cooperação.
Não se pode impedir que o indiciado ou réu confesse um crime e forneça elementos de prova da participação de seus partícipes. Neste caso, sem o  acordo de cooperação, caberia ou não ao juiz reduzir a pena privativa de liberdade, na proporção permitida expressamente na lei. Isto pode acontecer também quando um membro de uma organização criminosa, por qualquer motivo, resolva confessar e colaborar com a investigação, quando da lavratura do seu próprio flagrante (unilateral, por conseguinte). Evidentemente, que aí o colaborador não terá a certeza de que o juiz lhe concederá um daqueles "prêmios", o que tornará rara a hipótese. Por outro lado, neste caso, o Ministério Público pode deixar de denunciá-lo (arquivamento do inquérito) ou  requerer  o perdão a qualquer momento, (como custos legis, que pode até opinar pela absolvição), que será concedido ou não na sentença final.
2.11. O “prêmio” de substituição da pena privativa de liberdade, previsto no artigo 4° da Lei 12.850/13, só poderá ser concedido pelo juiz se a quantidade da pena privativa de liberdade permitir tal conversão, não podendo as “partes contratantes” derrogar dispositivos do Código Penal e da Lei de Execução Penal. A vantagem do colaborador é saber que, se a quantidade da pena privativa de liberdade permitir, o juiz não poderá deixar de substitui-la por critérios outros. Quando a lei autoriza a derrogação das regras do Direito Penal ou Execução Penal o faz expressamente, como o disposto no parágrafo 5° do artigo 4°, que trata do acordo de cooperação premiada após a sentença condenatória.
3. Como faço a distinção entre a colaboração premiada (causa especial de diminuição de pena) do acordo de cooperação previsto apenas na Lei 12.850/13 (negócio jurídico processual público), que vincula o Poder Judiciário que o homologou, entendo que não estão revogadas tacitamente as diversas leis que cuidam de outorgar ao réu ou indiciado o benefício de atenuação da pena em razão de sua colaboração com as investigações.
4. Importante salientar que a regra do parágrafo 2° do artigo 4° desta lei específica prevê REQUERIMENTO, que pode não ser deferido pelo juiz, demonstrando que a outorga do “prêmio” não pressupõe a existência do acordo de colaboração, o que reforça o que dissemos no início deste trabalho.
5. Em nosso sistema constitucional, apenas o Ministério Público é o titular do direito de ação penal pública, motivo pelo qual o Delegado de Polícia não pode, isoladamente, fazer o acordo de cooperação premiada com o indiciado, dispondo do exercício da ação ou do próprio direito penal material.
6. Após a sentença penal recorrível, o acordo de cooperação premiada deve ser homologado pelo desembargador relator competente para julgar o recurso de apelação, sendo que os fatos delatados serão apurados em inquérito ou autos de investigação separados dos autos onde ocorreu a delação, como deve ocorrer se o acordo de colaboração for celebrado após o trânsito em julgado da sentença condenatória, consoante permitido expressamente pela Lei 12.850/13.
7.  A violação do compromisso de dizer a verdade não sujeita o indiciado ou réu ao crime de falso testemunho, porque testemunha não é, mas o sujeita às consequências do inadimplemento do acordo, perdendo o direito ao “prêmio” e mantendo eficaz toda a prova colhida anteriormente em razão de sua colaboração.
Concluo, reiterando a premissa que fundamenta toda esta nova interpretação deste polêmico “instituto processual”. Não julgamos socialmente útil, mormente tendo em vista a realidade deste nosso país, continental em dimensões geográficas e em desigualdades sociais, que as regras do Direito Penal e da Lei de Execução Penal possam ser objeto de negociação entre um membro do Ministério Público e um integrante de uma organização criminosa. Ao menos temos que reduzir tal possibilidade. Numa sociedade democrática, poder demasiado a uma instituição pública, ao invés de fortalecê-la, leva, inversamente, a uma fragilidade perigosa.
Por outro lado, o Poder Judiciário não pode ficar “refém” destes acordos, que podem ser absurdos ou resultantes de atos de má-fé. O que propomos, vale a pena repetir, é que a negociação esteja restrita aos prêmios elencados na lei e que ela não possa tolher o juiz de escolher o mais adequado ao caso concreto, até porque a individualização da pena é um princípio constitucional.
Afrânio Silva Jardim é professor associado da Uerj (mestrado e doutorado), mestre e livre-docente em Direito Processual Penal pela mesma instituição. Também é procurador de Justiça aposentado.
Revista Consultor Jurídico, 18 de outubro de 2015.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog