terça-feira, 8 de setembro de 2015

Polícia do Rio mata 39% a mais e segue impune, diz Anistia

Foto: AP

Um relatório da Anistia Internacional constatou um aumento de 39% no número de homicídios decorrentes de intervenção policial no Estado do Rio de Janeiro entre os anos de 2013 e 2014. O documento também chamou a atenção para o elevado índice de impunidade de policiais que cometem assassinatos.
Segundo a organização, cerca de 80% dos 220 casos de homicídios cometidos por policiais em 2011 permaneciam em aberto até 2015 – e apenas um foi denunciado à Justiça pelo Ministério Público.
O Ministério Público do Rio de Janeiro afirmou à BBC Brasil que 813 policiais militares foram denunciados em 444 ações penais entre junho de 2013 e junho de 2015.
O órgão disse também que seu Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO) fez 247 denúncias envolvendo 129 policiais civis e 458 policiais militares entre 2010 e 2015.
Contatada pela BBC Brasil, a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro não se manifestou até o fechamento desta reportagem.

Violência policial

Em seu relatório "Você matou meu filho!" a Anistia Internacional estima que quase 8.500 pessoas foram mortas em decorrência de intervenções policiais no Rio entre os anos de 2005 e 2014.
Essas mortes incluem tanto casos em que os policiais mataram para se defender dos criminosos como ações em que maus policiais cometeram execuções extrajudiciais – ou seja, quando decidiram assassinar suspeitos deliberadamente.
As mortes chegaram a um auge em 2007 – quando 1.330 pessoas foram assassinadas por policiais. O número de vítimas começou então a cair ano a ano, até 2013, quando 416 pessoas morreram.
O índice voltou a subir no ano seguinte, 2014, quando o número total de assassinatos chegou a 580. A elevação ocorreu principalmente na Baixada Fluminense e no interior.
"Queremos promover um debate sobre isso e mostrar que, a um ano das Olimpíadas, o Rio ainda convive com essa realidade. Isso é incompatível com os valores olímpicos e agora temos uma oportunidade para implementar medidas concretas", disse Renata Neder, assessora de Direitos Humanos da Anistia Internacional.
"Em 2014, 15% das mortes tiveram o envolvimento de agentes do Estado. Isso é muito significativo, não pode ser ignorado."

Impunidade

Para tentar avaliar as medidas tomadas pelas autoridades para investigar essas mortes, a Anistia fez um estudo sobre os casos ocorridos em 2011 - por entender que quatro anos seriam suficientes para que os casos fossem esclarecidos.
Naquele ano, 283 pessoas morreram em 220 casos de mortes por intervenção policial (alguns casos tiveram mais de uma vítima). Desse total, 183 permaneciam em aberto em 2015.
"Choca porque são homicídios de autoria conhecida. Eles (policiais) se identificam como autores dos disparos. Deveria ser fácil de se investigar", disse Neder.
Segundo ela, a Anistia identificou os principais elementos que contribuem para que tantos casos permaneçam em aberto:
  • Maus policiais com frequência desfazem a cena do crime removendo o corpo da vítima (o trabalho de perícia no local do assassinato é essencial para a obtenção de provas);
  • Policiais que cometem assassinatos ilegais por vezes tentam fraudar a cena do crime – por exemplo, deixando armas junto a corpos de suspeitos que estavam desarmados;
  • Nem sempre a Polícia Civil envia peritos ao local do crime;
  • As mortes decorrentes de intervenção policial não são investigadas pela delegacia especializada em homicídios, o que, para a Anistia, "mostra predisposição a não investigar";
  • O Ministério Público falha por supostamente não exercer sua atribuição de controle externo da polícia – afirmação que é contestada pela órgão;
  • Faltaria um mecanismo para proteção de testemunhas, que deixam de dar depoimento à Justiça com medo de serem assassinadas.
Foto: GettyImage copyrightGetty
Image captionSegundo a Anistia, números de mortes por intervenção policial escondem casos nos quais as vítimas foram mortas quando já estavam subjugadas
Segundo a Anistia, os números de mortes por intervenção policial escondem muitos casos nos quais as vítimas não morreram em confrontos com a polícia, mas foram sim executadas quando já estavam subjugadas.
A organização realizou um trabalho qualitativo na favela de Acari analisando dez casos de mortes com o envolvimento de policiais. Em pelo menos quatro delas, a Anistia Internacional disse ter encontrado evidências de execuções extrajudiciais.
"A não investigação e consequente impunidade dos assassinatos cometidos por policiais contribui para o ciclo de violência e recorrência de homicídios. É como dar carta branca para eles continuarem a agir de forma ilegal", disse Neder.

Dor e ameaças

"O meu maior medo é que a coisa toda vá para o arquivo. O que eu quero é que os homens que mataram meu filho sejam punidos com rigor!"
A afirmação é de Maria de Fátima Silva, mãe do dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, conhecido como DG. Ele foi assassinado em uma ação de policias na favela Pavão-Pavãozinho em abril de 2014.
O caso teve repercussão nacional, pois DG era um dançarino de um programa de auditório da TV Globo, mas segue sem conclusão.
Silva afirmou à BBC Brasil que além do fato de ninguém ter sido condenado pela morte de seu filho, ela teria passado a receber ameaças.
"Na época do enterro do meu filho os amigos criaram uma página no YouTube para publicar imagens do enterro. No mesmo dia algumas pessoas entraram na página dizendo: cala a boca, você vai morrer."
Segundo ela, as ameaças continuam e não há esperança de que moradores da favela onde seu filho foi morto, incluindo possíveis testemunhas, se apresentem para prestar depoimento à Justiça.
Foto: GettyImage copyrightGetty
Image captionONG internacional diz que, a um ano dos Jogos do Rio 2016, cenário é incompatível com valores olímpicos
"Como a comunidade vai depor se toda a guarnição (de policiais suspeitos de envolvimento no crime) ainda está lá?"
Segundo ela, a Anistia Internacional vem acompanhando o caso desde o início. "Hoje esse apoio me dá coragem de gritar. Se eu tiver que morrer, vou morrer como guerreira. Troquei o luto pela luta", disse ela.

'Acusações vazias'

O Ministério Público afirmou antes da divulgação oficial do relatório que não teve acesso a ele. O órgão disse que as acusações à Promotoria são "vazias e genéricas" e "em nada colaboram para a solução do problema".
"O MP, ao oferecer denúncia ao Judiciário e colocar quem quer que seja na posição de réu, só deve fazê-lo de forma responsável, sob pena não só de desrespeito às garantias individuais, mas também de desprestígio à imprescindível função pública dos policiais", disse o órgão em nota.
"O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro realiza um trabalho hercúleo e, muitas vezes, solitário, na tentativa de responsabilizar os agentes públicos que vão além dos limites estabelecidos pela lei."
A Promotoria também apontou uma suposta fragilidade no trabalho policial. Afirmou que uma "investigação defeituosa resulta, por vezes, em impunidade, seja pelo arquivamento do inquérito por falta de indícios ou no oferecimento de uma denúncia frágil" que pode resultar em absolvição.
"Com o intuito de aperfeiçoar o exercício do controle externo da atividade policial e combater os excessos no uso da força, o Ministério Público está tomando medidas para dimensionar o problema das chamadas mortes em decorrência da intervenção policial, criando um banco de dados que permita a correta análise e compreensão do problema, o que só pode ocorrer longe de atitudes populistas e irresponsáveis."
A Secretaria de Segurança Pública do Rio disse à BBC Brasil que não teve acesso ao relatório até a última sexta-feira e não se manifestou até o fechamento desta reportagem.

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