segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Delação premiada não pode ser utilizada como instrumento de condenação


A prova testemunhal, desde os tempos mais remotos, sempre foi vista com reserva pelos mais variados povos e civilizações. Muitas também foram as vítimas da perversidade e injustiça, pois a testemunha, aliada aos interesses do monarca ou detentor do poder que tinha a força discricionária suprema, poderia levar pessoas a perder suas vidas, liberdade e patrimônio. Perseguições eram perpetradas pelas testemunhas alinhadas a determinado grupo de poder.
Portanto, não é por outro motivo que a prova testemunhal ficou conhecida como “a prostituta” das provas. Séculos se passaram e hoje, mesmo que com contornos verborrágicos de que o bem da nação permite o retrocesso social, retomamos, ainda que de forma implícita, esse período medieval com a delação premiada.
Uma das críticas à delação, tão discutida em meio às investigações da operação "lava jato", decorre do fato de estar sendo obtida não de forma voluntária, mas quando o réu delator está preso, ocupando as conhecidas estruturas do sistema penitenciário brasileiro que, é consabido, corresponde a “masmorras medievais”, termo esse já tão bem colocado pelo ministro Antônio Cezar Peluso.
O custodiado recebe a proposta de “colaboração”, o que por si só já torna o consentimento questionável ante o grau de deterioração das cadeias públicas pátrias superlotadas, em um Brasil que ostenta mais um recorde mundial, o de 4ª potência carcerária do planeta.
Jurisprudência consagrada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal é uníssono no sentido de que depoimento de corréu não serve como prova válida para condenação. Esse é outro ponto que merece reflexão. Se nem mesmo o depoimento de corréu não colaborador é suficiente para incriminar qualquer pessoa, com muito mais razão a delação premiada não pode ser utilizada como instrumento de condenação.
A partir do momento que o Juízo admite como válida a “cooperação voluntária” de um acusado preso e considera tais declarações como prova contra outras pessoas (chamando o delator a presença do magistrado sempre que necessário em troca de futuro abrandamento da reprimenda), abdicamos do Estado Democrático de Direito, ingressamos em um sistema de terrorismo institucionalizado, com nítida quebra dos princípios básicos que sustentam a Constituição Federal.
Explica-se. O sistema acusatório estabeleceu que cabe ao Ministério Público promover a ação penal, baseado nos elementos indiciários colhidos durante a fase investigativa. Na fase de inquérito permanece o ranço inquisitorial com procedimentos secretos que tramitam entre o gabinete do parquet e o Juízo, negando ou dificultando ao acesso pela Defesa dos interessados.
O Juízo deve ser imparcial e agir sempre que provocado, sopesando os elementos dos autos para concluir pela procedência ou não da ação penal. Porém, ao prolatar a primeira sentença oriunda das inúmeras ações ajuizadas pelo MP e, admitindo como válida a palavra do delator, ficará “Ad eternum” vinculado a sua “convicção íntima”, que estabeleceu tal premissa (falsa ou não) como verdade absoluta.
A partir daí cremos que o processo penal se torna instrumento de massacre onde não existirá contraditório judicial ou ampla defesa. Para o Juízo, o que vale é a palavra do delator, um réu da “confiança do magistrado”, cuja credibilidade é absoluta e inquestionável e pode ser utilizada em vários processos diferentes e sucessivos, apesar de versarem sobre tema comum a todos.
Neste momento não há mais defesa, apenas acusação. O MP acusa, o Juízo através do delator acusa, o acusado se autoacusa, a imprensa alimentada diariamente acusa e acusa.
Se a testemunha é a prostituta das provas, o que dizer da delação premiada?
 é advogado em Curitiba. Foi procurador do Estado do Ceará, ex-defensor público federal e ex-presidente da Associação Nacional dos Defensor Públicos Federais (Anadef).
Samir Matar Assad é advogado e sócio-fundador de Borges, Adams e Mattar Assad Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 20 de setembro de 2015.

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