segunda-feira, 15 de junho de 2015

Encarceramento de jovens não resolverá o problema da violência


“não acreditamos que a juventude seja produtora de violência. As novas gerações, mais que fatores determinantes da situação de nossa sociedade, são um resultado da mesma, espelho onde a sociedade pode descobrir suas esperanças de futuro e também seus conflitos, suas contradições e, por que não, seus próprios erros”. (Julio Jacobo Waiselfisz)
A imputabilidade, no dizer de Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1990), “é a condição natural de maturidade e sanidade mental, que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento. Em suma, é a capacidade genérica de entender e querer, ou seja, de entendimento da antijuridicidade de seu comportamento e de seu autogoverno, que tem o maior de 18 anos. Responsabilidade penal é o dever jurídico de responder pela ação delituosa que recai sobre o agente de acordo com esse entendimento”.
Na fixação do pressuposto da responsabilidade penal ou para a determinação da imputabilidade penal (capacidade de culpabilidade) apresentam-se três sistemas ou critérios: i) o sistema estritamente biológico condiciona a responsabilidade à saúde mental, à normalidade da mente, ou seja, se o agente é doente mental deve ser declarado inimputável; ii) o critério psicológico não indaga se há uma perturbação da saúde, este critério tem como base a capacidade do agente de entendimento do fato, na determinação e na capacidade de agir de acordo com essa apreciação do entendimento em relação a um determinado fato e, por fim, iii) o critério biopsicológico adotado pela nossa legislação que é uma reunião dos dois critérios anteriores.
A Constituição da República (artigo 228 CR) e o Código Penal brasileiro (CP) consideram os menores de 18 anos penalmente inimputáveis (artigo 27 CP), ou seja, a eles não se pode atribuir responsabilidade penal, já que não atingiram a capacidade plena de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com este entendimento, se submeterão, portanto, às normas estabelecidas na legislação especial, no caso o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei 8.069/90.
Com bem nota Nélson Hungria (Comentários ao Código Penal) em referência ao critério biopsicológico adotado pelo CP, fez o Código uma exceção em relação aos menores de 18 (dezoito) anos, pois nesta hipótese a causa biológica (imaturidade) basta, por si só, irrestritamente, sem qualquer indagação psicológica, para excluir a responsabilidade penal.
Embora alguns insistam em negar, a “inimputabilidade penal” está entre as garantias fundamentais da pessoa humana. A Constituição da República (CR) em seu artigo 228 estabelece a idade de 18 anos como limite ao poder punitivo penal, dispondo-se a garantir, por razões de política-criminal, a proteção à infância e “respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade” (artigo 227, parágrafo 3º, V, da CR).
É a Constituição da República que em seu artigo 60, parágrafo 4º, IV que não admite emenda tendente a abolir “direitos e garantias individuais”, o que por si só, já deveria ser mais que suficiente para barrar qualquer tentativa neste sentido.
Além disso, destaca o Editorial do Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (“Não à redução da maioridade penal”. IBCCRIM – ano 23, n. 270, maio/2015), “a normatividade internacional de defesa dos direitos humanos encampa o princípio da vedação ao retrocesso, em que a previsão e a efetivação dos direitos deve ser realizada de forma progressiva, cada vez mais abrangente”. Como bem lembra o prestigioso Instituto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já se pronunciou a respeito da PEC 171/93, considerando “grave retrocesso e uma violação dos direitos fundamentais dos adolescentes, pois viola sua garantia de ser tratado por uma justiça juvenil especializada”.
É necessário esclarecer que a idade de 18 (dezoito) anos para imputabilidade penal, adotada em mais de 80% dos países do planeta, não foi estabelecida de forma aleatória. Existem estudos científicos que demonstram que até os 18 anos a personalidade do ser humano, bem como a sua capacidade psíquica, ainda, não está completamente formada. Embora para Hungria tenha prevalecido neste caso mais razões de política-criminal do que de postulados científicos.
Francisco de Assis Toledo, que foi coordenador das comissões da reforma penal de 1984, afirma: “nada indica que a idade de dezoito anos seja um marco preciso no advento da capacidade de compreensão do injusto e de autodeterminação. É, entretanto, um limite razoável de tolerância (recomendado pelo Seminário Europeu de Assistência Social das Nações Unidas, de 1949 em Paris), tanto que a maioria dos países, com pequenas variações, para mais ou para menos, ficam em torno dele”. (Princípios básicos de direito penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994).
Além de ser pequeno o número de países que adotam idade menor de 18 anos como critério de responsabilidade penal (análise feita pela ONU sobre 57 nações identificou essa realidade em apenas 17% deles), atualmente, há movimentos que atuam em direção contrária à diminuição da imputabilidade penal. De acordo com a pesquisa "Crime Trends", realizada pela ONU, a idade de 18 (dezoito) anos é a regra, por exemplo, em países da América do Sul (como Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai), da Europa (entre eles, França e Noruega) e na China. Algumas nações europeias utilizam sistemas mistos, nos quais a responsabilidade penal de adultos inicia aos 18, mas só é completa aos 21. É o caso, por exemplo, de Alemanha, Espanha, Grécia, Itália e Inglaterra.
Na Exposição de Motivos do atual Código Penal (Lei 7.209/84) vamos encontrar a justificativa para manutenção da inimputabilidade penal ao menor de 18 (dezoito) anos, in verbis:
“Trata-se de opção apoiada em critérios de Política Criminal. Os que preconizam a redução do limite, sob a justificativa da criminalidade crescente, que a cada dia recruta maior número de menores, não consideram a circunstância de que o menor, ser ainda incompleto, é naturalmente anti-social na medida em que não é socializado ou instruído. O reajustamento do processo de formação do caráter deve ser cometido à educação, não a pena criminal. De resto, com a legislação de menores recentemente editada, dispõe o Estado dos instrumentos necessários ao afastamento do jovem delinquente, menor de 18 (dezoito) anos, do convívio social, sem sua necessária submissão ao tratamento do delinquente adulto, expondo-o a contaminação carcerária”.
É importante esclarecer que a maioridade é determinada pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, ou seja, pelo Código Civil (CC) o qual estabelece que: “A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil” (artigo 5º CC). O que existe do ponto de vista eleitoral (voto facultativo aos 16 anos e obrigatório aos 18 anos), por exemplo, é uma capacidade especial para realização de determinados atos. O Código Civil prevê varias hipóteses de emancipação que não afetam em nada a responsabilidade penal. Assim, se uma pessoa com menos de 18 anos, por exemplo, emancipada pelo casamento (artigo 5º inciso II do CC) vier a matar alguém, estará, apesar da emancipação civil, sujeita as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, posto que em hipótese alguma a imputabilidade penal seja adquirida antes dos dezoito anos.
Segundo João Batista Costa Saraiva, (A idade e as razões – não ao rebaixamento da imputabilidade penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 5, n. 18, abr-jun/1997), juiz da Infância e Juventude no Rio Grande do Sul, “o clamor social em relação ao jovem infrator – menor de 18 anos – surge da equivocada sensação de que nada lhe acontece quando autor de infração penal”. Distinguindo a imputabilidade penal da impunidade Saraiva sustenta:
“A circunstância de o adolescente não responder por seus atos delituosos perante a Corte Penal não o faz irresponsável. Ao contrário do que sofismática e erroneamente se propala, o sistema legal implantado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente faz estes jovens, entre 12 e 18 anos, sujeitos de direitos e de responsabilidades e, em caso de infração, prevê medidas socioeducativas, inclusive com privação da liberdade”.
Portanto, necessário aclarar que, ao contrário, do que muitos imaginam, o menor de 18 anos que praticar um ato infracional (conduta descrita como crime ou contravenção) estará sujeito as “medidas sócio-educativas” consistentes em: I- advertência; II- obrigação de reparar o dano; III- prestação de serviço à comunidade; IV- liberdade assistida; V- inserção de regime de semi-liberdade e VI- internação em estabelecimento educacional (artigo 112 ECA). A internação constitui medida privativa de liberdade que não poderá exceder a 3 (três) anos (artigo 121 ECA).
Neste sentido, razão assiste a Luís Fernando Camargo de Barros Vidal, (Medidas sócio-educativas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 10, n. 37, jan-mar./2002), quando afirma que a “internação é privação de liberdade, liberdade assistida não é diferente de regime aberto ou de um livramento condicional, prestação de serviços à comunidade é isso mesmo, e assim por diante: todas as medidas sócio-educativas são penas”.
Aqueles que defendem a redução da imputabilidade penal para 16, 15 e até 13 anos, sem qualquer critério científico, partem de uma visão equivocada e da ilusão de que, somente, endurecendo a legislação penal, diminuindo garantias e cerceando direitos se estará combatendo o crime e, consequentemente, reduzindo a criminalidade. Esses que sustentam a necessidade da diminuição da imputabilidade são partidários do direito penal simbólico, do movimento da “lei e da ordem”, que se alicerça na crença de que o direito penal é a panacéia para todos os males da sociedade e que através da elevação das penas e do seu questionável caráter intimidatório e preventivo (prevenção geral: positiva e negativa) estará a sociedade segura.
Observa-se, ainda, que quase sempre quando se fala em violência em relação ao menor o mesmo é tomado como infrator, marginal, delinquente e, logo, como aquele que deve ser punido. Esquece-se, entretanto, que mais do que infratores esses menores são as principais vítimas da violência.
Dados nacionais desenvolvidos pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Observatório de Favelas e o Laboratório de Análise da Violência (LAV-Uerj)  e divulgados no mês de dezembro de 2012 destacam a parte deste número de homicídios que acontece ainda na adolescência. De acordo com o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), criado em 2007 por estas instituições, o número de mortes entre jovens de 12 a 18 anos vem aumentando ao longo do tempo. Para cada mil pessoas nesta faixa etária, 2,98 é assassinada. O índice em 2009 era de 2,61. Este índice representa cerca de 5% dos casos de homicídio geral. Entre as principais causas de homicídio está o conflito com a polícia. E o estudo aponta uma expectativa não muito animadora: até 2016 um total de 36.735 adolescentes poderão ser vítimas de homicídio.
No que tange aos estabelecimentos ou instituições de internação, estes revelam a existência de problemas idênticos aos da maioria das prisões brasileiras, tais como: superlotação; falta de assistência médica, psicológica e jurídica; ausência de atividades educativas e profissionalizantes etc. Também, não são raras as vezes que os menores internados são vítimas da violência daqueles que deveriam primar pela sua educação e reintegração social, o que acarreta constantes fugas e rebeliões.
Importante salientar que o endurecimento da legislação penal não tem surtido o efeito de diminuir a violência e a criminalidade, exemplo, como a lei dos crimes hediondos, não falta. A pena de prisão (os estabelecimentos de internação de menores diferenciam em ninharia das penitenciárias) tem se revelado ineficaz no controle da criminalidade, além de não prevenir, através da intimidação, não é capaz de reintegrar o indivíduo à sociedade. Pelo contrário, a prisão, além de estigmatizar o indivíduo, constitui um dos principais fatores de incremento da reincidência criminal. Não é demais lembrar que a prisão é uma “fábrica de delinquentes”, “universidade do crime”, o que levará, inevitavelmente, a imensa maioria dos que habitam os estabelecimentos de internação de menores a persistirem na prática delituosa.
Lamentavelmente, há uma crença punitiva da sociedade de que através do direito penal os problemas que na verdade são sociais, mas por diversos interesses são chamados de “criminais”, serão solucionados com medidas repressivas e violadoras dos direitos fundamentais. A crença punitiva no direito penal simbólico toma as leis penais como a panaceia de todos os males sociais, quando na verdade, já salientou Winfried Hassemer, a melhor política-criminal é a sua substituição pela política social.
Com a precisão de sempre, Juarez Cirino dos Santos acentua que “a legitimação do Direito Penal pela criação de símbolos no imaginário popular é simbólica, porque a penalização das situações problemáticas não significa solução social do problema, mas solução penal para satisfação retórica da opinião pública”. (Direito Penal: parte geral. 6ª ed. Curitiba: ICPC, 2014).
Contudo, a sociedade não pode, definitivamente, vendar os olhos, como faz em relação aos menores infratores, para esta realidade. Não há como negar, goste ou não, que o crime é um problema social e político. Assim, é imprescindível buscar cada vez mais alternativas ao direito penal, e, definitivamente, não é encarcerando jovens que se resolverá o problema da violência e da criminalidade. Afinal, como disse o poeta, “quando, seu moço, nasceu meu rebento não era o momento dele rebentar, já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome para lhe dar”.
 é advogado criminalista, doutor em Ciências Penais e professor de Direito Penal da PUCMinas
Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2015.

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