segunda-feira, 8 de junho de 2015

Brasil é obcecado pela severidade penal, mas brando quando cuida das polícias

* Texto originalmente publicado em coluna da Folha de S.Paulo deste sábado (6/6), no caderno Cotidiano, com o título “Plantação de Provas”.]
O Brasil é obcecado pela severidade penal, mas é brando quando cuida das polícias.
A sucursal da Folha no Rio noticiou a condenação de dois oficiais da PM por forjarem um flagrante contra adolescente, durante repressão a protesto em outubro de 2013.
Sabidamente inocente, o rapaz foi algemado (não havia esboçado nem um gesto de resistência) e "conduzido" até uma delegacia. A PM plantou morteiros em seu poder, simulando uma periculosidade irreal, e ignorou sua menoridade, expondo-o à suspeita e ao vexame.
A vítima do singelo arbítrio, tão comum, teve sorte porque a fraude foi percebida por testemunhas e filmada. O vídeo divulgado por O Globosubsidiou a sentença da Auditoria Militar do Rio de Janeiro e mostra, passo a passo, a construção do grotesco abuso de poder.
O policial (seu dever é a proteção das pessoas) que subtrai a liberdade de alguém indevidamente, ainda mais falsificando dolosamente evidências de um suposto crime, pratica ato mais grave e mais danoso do que o roubo de R$ 100, sem violência, que aqui pode ser punido com cinco anos e quatro meses de reclusão em regime fechado.
A condenação aos oficiais pelo delito de constrangimento ilegal, definido no Código Penal Militar, é pequenininha: um mês e seis dias de detenção, comsursis (suspensão condicional da pena), já que, de fato, o encarceramento não contribuiria para a "ressocialização" dos réus, que permanecem na ativa, prontos para, de novo, "arrepiar".
Plantar provas é corriqueiro. Armas aparecem do nada para simular tiroteios. Drogas aparecem do nada para a extorsão de transeuntes. Testemunhas aparecem do nada para criação de álibis ou falsos desacatos. O que surpreende é a desproporção entre delito e pena.
Somos duros com muitos, indulgentes com outros.
Incompreensível, também, que a função policial (exercida por agentes treinados como militares) permaneça submetida à jurisdição e às leis militares, que consideram mais grave a homossexualidade no quartel do que inventar flagrante nas ruas. República de bananas.
A PM age nas cidades e os abusos são praticados contra civis: por isso, assim como os delegados de polícia, deveria estar submetida à Justiça comum. A única exceção, estabelecida pela Lei 9.290/96, proposta por Hélio Bicudo, marco institucional contra a impunidade, é o homicídio praticado pelo soldado, que passou a ser julgado pelo tribunal do júri – em tese mais isento e menos suscetível à visão e aos interesses corporativos.
Mas não se iludam. Se os mesmos oficiais fossem julgados pela Justiça comum, a pena também seria irrisória. A Lei 4.898/65, entulho deixado pela ditadura militar, permite que abusos de autoridade sejam reprimidos com multa.
Por que o Congresso Nacional se omite em relação às violações cotidianas das nossas polícias?
A bancada da bala prevalece, a bancada da cidadania sucumbe. Não temos estatuto legal capaz de disciplinar a ação repressiva, prevenir excessos e condenar com rigor os abusos cometidos.
A suavidade penal em matéria de proteção das garantias constitucionais é a senha para o desmando.
Afeta a paz pública, gera insegurança. É uma ameaça concreta e permanente a todos nós.
 é advogado e colunista do jornal Folha de S.Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 6 de junho de 2015.

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