segunda-feira, 18 de maio de 2015

OS PÁSSAROS E SUAS GAIOLAS: LIBERDADE

Desejos, escolhas, renúncias e frustrações: tudo isso e mais um pouco integra os gritos libertários vindos da sociedade e também de dentro de você. ser livre é uma utopia?


Quem nunca se sentiu como a personagem do poema Aprendam com o vento, extraído do livro O mundo de vidro, do cearense William Lial? Diz o poeta: Silêncio!/ O vento pede silêncio./ Cansado de correr/ entre a barafunda do mundo,/ quer liberdade de se ouvir correndo,/ quer espraiar-se sobre a cidade/ sem respeitar limites,/ sem conhecer obstáculos./ Sintam.../ Sintam o vento,/ aprendam a sua liberdade./ Gritem!/ Voem!/ Conheçam o infinito!/ Corram!/ Subam!/ Desçam!/ Espalhem-se!

A liberdade, conceito tão caro à humanidade, tem sido, de fato, aclamada no imperativo ao longo dos tempos, em termos coletivos ou individuais. Sua força apresenta uma vontade exclamativa, porém, seus limites levantam questionamentos. O confronto existente nesta palavra é bem descrito por Lial na metáfora referente à sua busca: para ser livre, é preciso romper barreiras e abrir caminhos para novas possibilidades. Em contraposição, também se encontram nos versos o imaginado pelo senso comum, que vê a liberdade como algo em que “se pode fazer tudo e qualquer coisa”, sem considerar a presença do outro.

Entretanto, ambas as ideias concordam em um ponto: na “consciência da necessidade”, em que somente quando se toma conhecimento das próprias limitações, dependências e vontades, além daquilo que não está ao alcance, é que se pode agir em conformidade com os próprios desejos em meio a circunstâncias incertas. Pois os desejos são a primeira ferramenta para ser livre. Não é à toa que só se deseja aquilo que não se tem. E ainda que não se tenha plena certeza se o desejo será atendido, é necessário “conhecer o infinito”, como diz o poeta, e se arriscar em sua busca. Esta pode começar em vencer limites do próprio corpo, com novos movimentos e performances. “Se encararmos o corpo por uma perspectiva psicossomática, entendendo esse organismo vivo como morada e suporte da imaginação, da memória, das frequências sutis e invisíveis, podemos trabalhar a partir desses limites, potencializando a dinâmica no corpo e sua expressividade”, explica a diretora da companhia Oito Nova Dança, Lu Favoreto. Assim, eis o limite fortalecendo a liberdade criativa. Porém, é importante lembrar que “aguentar a frustração é um exercício necessário [na busca pela liberdade]; do contrário, pode haver uma retração ou inibição que paralisa e impede o sujeito de sentir-se capaz, ou novamente capaz”, afirma a psicanalista Cláudia Arbex.

Por isso, a filósofa Olgária Matos, da Universidade de São Paulo (USP), reforça que “a liberdade é simultaneamente autarquia e liberação das coerções possíveis de serem ultrapassadas”. Por estar sempre ligada aos hábitos, tradições e paixões dos seres humanos, é inconcebível e impraticável a sua concepção individualista levada ao extremo, por mais que existam liberdades individuais relacionadas às escolhas pessoais. Os próprios limites colocados pelos outros ao indivíduo demonstram a sua impraticabilidade, o que já ocorre desde a infância. “Adultos que não conseguem impor determinados limites [às crianças], com receio de frustrar seus filhos juntamente com a expectativa que projetam neles, acabam por afrouxar demais as regras e esperam que as crianças decidam por eles. Desse modo, como descobrir a liberdade sem conhecer a renúncia? Como ser livre sem aprender a lidar com a frustração?”, questiona Cláudia.

LIVRE?
Dizem que um pássaro fora da gaiola é um pássaro livre. Porém, ele, na sua condição de animal e, portanto, de ser acultural, pode não ser, de fato, “livre”, pois, ao agir por instinto, não tem noção de sua “liberdade”. A pergunta que se faz aqui, e que tem sido respondida de diversas maneiras por filósofos e cientistas de várias épocas, é se a liberdade é algo essencialmente humano. O sociólogo e filósofo Nildo Viana, da Universidade Federal de Goiás (UFG), cita a distinção entre “liberdade de” e “liberdade para”, elaboradas pelo filósofo Ernst Bloch (1885-1977) e pelo psicanalista Erich Fromm (1900-1980) para comentar a questão. “A ‘liberdade de’ é quando um obstáculo é removido, como o pássaro, que ficou ‘livre da gaiola’ e como um prisioneiro pode ficar ‘livre da prisão’. Essa liberdade é apenas ausência de correntes para nos prender, mas não é afirmativa. A ‘liberdade para’ é quando, além de ausentes as correntes que nos aprisionam, nós podemos realizar algo, tal como um projeto de vida – algo essencialmente humano”, explica Viana.

Mais uma vez, a dualidade em “ser livre” vem à tona. Se, por um lado, há correntes o tempo todo, o que devemos fazer quando estivermos livres delas? Nesse ínterim, a humanidade escuta, há séculos, os gritos de liberdade pela boca dos oprimidos em forma de lema, de pedido, de revolução. Também ressoa ao longe o desejo de libertação vindo de vozes abafadas no interior de cada ser humano. São desejos pelo fim da escravidão, por maior autonomia política, pelo direito de ir e vir, por uma profissão que atenda às próprias expectativas e não às da família, pela escolha do parceiro, por comparecer ou não a um evento, por dizer o que se pensa, sem restrições. Assim, as liberdades coletiva e individual vivem em um eterno abraço, tão forte quanto as correntes que almejam romper. 

Certos contextos, como guerras, perseguições políticas ou miséria, por trazerem situações extremas, ilustram bem estas duas liberdades: a da necessidade de se libertar de um acontecimento e ser “livre” em outra região, aliada às escolhas pessoais de deixar ou não a terra natal. A peça Cartas libanesas, em cartaz em São Paulo, no Sesc Ipiranga, até o dia 30 deste mês, retrata a “liberdade” de imigrantes libaneses no Brasil durante a virada do século 19 para o 20. Tais pessoas vieram ao país principalmente devido à falta de perspectivas econômicas no Líbano. O espetáculo tem como personagem principal Miguel Mahfuz, que representa todo e qualquer imigrante libanês daquele período. Mahfuz, ao sair de sua terra almejando melhores condições de vida, encontra em uma terra distante, chamada Brasil, um lugar onde constrói a sua vida da maneira como acredita. “Aqui ele encontrou ‘liberdade de agir, de vestir, de falar’, como escreve à sua mulher, tentando convencê-la a imigrar também. Diferentemente do que acontecia no Líbano à época, essas liberdades o estimularam a continuar [no Brasil], mesmo enfrentando aqui preconceito e discriminação”, conta o diretor da peça Marcelo Lazzaratto. 
Na opinião do escritor Miguel Sanches Neto, a “liberdade” de um autor para narrar um período histórico se dá de duas maneiras: fixando-se nos fatos e criando uma percepção bastante fiel e horizontal daquela realidade ou, então, criando uma parábola da época. Nesse caso, será algo que independe de comprovação histórica, tal como fez George Orwell (1903-1950) no livro A revolução dos bichos, trazendo uma metáfora de um regime político. “Acredito que devamos sempre buscar materiais que, em certa medida, gerem algum tipo de desequilíbrio no que está estabelecido”, complementa Lazzaratto a fim de explicar a relação entre “liberdade” e “criação” em uma obra.

Em seu recém-lançado livro, A segunda pátria, Sanches Neto dá margem a uma situação que, na realidade, não ocorreu: e se o então presidente brasileiro Getúlio Vargas (1882-1954) tivesse apoiado os nazistas  e não os Aliados durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945)? Para escrever sobre um Brasil názi, o escritor se valeu da liberdade de formular uma história paralela, intensificando episódios que de fato se manifestaram no país, como os preconceitos em circulação na sociedade, mas não na mesma forma e proporção a que ocorreram. Para isso, situa os acontecimentos na cidade catarinense de Blumenau, com forte influência germânica em suas origens, e traz como personagens principais o engenheiro Adolpho Ventura, negro e pai de uma criança mestiça, e Hertha, jovem de origens arianas. Em busca de suas liberdades, ambos se desfazem dos grilhões culturais e se tornam mais livres, ainda que paguem um preço alto por suas escolhas. “Espero que o leitor construa não um ódio étnico, mas uma tolerância maior com o outro, no sentido de colocar-se no lugar desse outro”, comenta o autor.

ENTRE A UTOPIA E A REALIDADE
A liberdade nasceu há muito tempo, fruto de uma época em que homens e mulheres sentiam-se prisioneiros de regras, situações e ideias. Os séculos passaram e a liberdade cresceu aqui e ali, mas sem se desenvolver por completo, ainda que seja lembrada constantemente no cotidiano de bilhões de pessoas e manifestada pela arte por anos a fio. Se a busca por ela tem relação direta com a satisfação de desejos, por meio de escolhas, consequentes renúncias e a capacidade de lidar com frustações, alcançá-la no sentido amplo do termo seria uma utopia?

Eis uma resposta tão complexa quanto a definição da própria liberdade. Afinal, de quais liberdades estamos falando? Até mesmo o pensamento, que parece ser a mais robusta manifestação de liberdade, sofre algum tipo de censura ou interferência, seja de ordem social e cultural seja das repressões e instâncias inconscientes do psiquismo, como lembra a psicanalista Cláudia Arbex. Já na visão do pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), autor de O mal estar na civilização, não existe ato livre, porque o ser humano é guiado pelo inconsciente, de modo que a liberdade depende daquilo que se é, de acordo com as paixões que determinam os desejos e as ações. Um exemplo é a maneira como a dança dá liberdade a Lu Favoreto no momento de criá-la, dirigi-la ou executá-la. Diz a dançarina que essas ações partem de uma necessidade muito íntima: “É como se uma dinâmica começasse a acontecer dentro de nós, que não podemos escolher não ouvi-la. Você precisa se deixar conduzir por este impulso, pois, se não, ele vai passar e talvez você deixe de conhecer algo precioso que existe na sua imensidão íntima”.

Sendo assim, é preciso vencer os bloqueios psíquicos, como o medo e a insegurança, para buscar a liberdade não só individual, mas também a coletiva. Afinal, ser livre não é somente uma necessidade humana, mas também uma tendência. “Sendo uma necessidade, ela [a liberdade] só precisa se tornar consciente. E a necessidade da liberdade se tornar consciente já é o seu esboço, o seu primeiro momento de aparecimento”, afirma o sociólogo Nildo Viana.

Portanto, a liberdade não pode não ser uma completa utopia. O filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004) afirma que há elementos utópicos na realidade e elementos realistas na utopia. “A questão é saber identificá-los [os elementos utópicos e realistas], e para isso é preciso reconhecer o momento crucial da ação livre, o momento de perigo. Este momento é aquele antes do qual nada aconteceu e depois do qual tudo estará perdido”, esclarece a filósofa Olgária Matos.

Nesta confusão entre utopia e realidade, entre elementos psíquicos e culturais, Cláudia cria mais uma definição para a liberdade: “Talvez seja um lapso, no tempo, no espaço, na linguagem. Talvez seja um momento de grande alegria e prazer, ou de isolamento e introspecção”.


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