segunda-feira, 11 de maio de 2015

Na falta de regime adequado, preso deve cumprir o mais benéfico



Quando o Estado promete que a pena será cumprida em um regime (fechado, semiaberto ou aberto), a manutenção de preso em regime mais gravoso é uma fraude, um estelionato, capaz de aumentar o ódio de quem está segregado e de parcela da sociedade que não entende a desfaçatez de quem mantém ilegalidades. A maioria se omite ou vibra com a desgraça alheia.
A situação do sistema penitenciário brasileiro é de conhecimento de todos. Estabelecimentos prisionais transformados em verdadeiras masmorras, onde imperam a corrupção, o esquecimento e o desrespeito aos mais básicos direitos dos humanos. O Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, através de seu relatório oficial sobre o Brasil dentro do processo de Revisão Periódica Universal[1], escancarou para todo o mundo a perversa situação dos presídios brasileiros.
A responsabilidade pelas violações dos direitos humanos nas penitenciárias não é exclusiva do Poder Executivo, sendo compartilhadas pelos poderes Legislativo e Judiciário e também pela sociedade civil. Esta última, influenciada pelo uso midiático do Direito Penal, amedronta-se e, por consequência, exige do Estado uma pronta resposta à ilusória guerra contra a criminalidade. Pressionado, o Poder Legislativo, muita vezes no uso político do Direito Penal, encrudesce a legislação criminal, criando tipos penais que antecipam a punição aos atos preparatórios, além de enrijecer as penas já existentes. O Poder Executivo, por sua vez, ao invés de apostar na prevenção das circunstâncias criminalizadoras investe suas fichas na repressão desenfreada de delitos, em especial nos de bagatela. Esse ciclo vicioso contribui para o aumento da população carcerária, que é mantida nos famosos calabouços cinco estrelas de terrae brasilis.
O Poder Judiciário, apesar de possuir a precípua função de garantidor dos direitos fundamentais, deixou escapar uma excelente oportunidade para coibir alguns abusos que há muito são praticados na execução das penas privativas de liberdade. Apresentada pelo então Defensor Público-Geral Federal, ainda no ano de 2011, a Proposta de Súmula Vinculante (PSV) 57, teve seu julgamento iniciado pelo STF no dia 12 de março de 2015. A dita PSV possui o seguinte verbete: “o princípio constitucional da individualização da pena impõe seja esta cumprida pelo condenado, em regime mais benéfico, aberto ou domiciliar, inexistindo vaga em estabelecimento adequado, no local da execução”. Contudo, em razão de pedido de vista do Ministro Roberto Barroso, o julgamento foi suspenso sem previsão para ser retomado, não havendo previsão para a sua retomada.
A jurisprudência do STF (HC 107.810/PR, HC 109.244/SP, HC 96.169/SP), bem como a do STJ (RHC 34.792/BA, HC 309.412/RS, HC 304.831/SP), adota o entendimento de que ao apenado não se pode impor um regime prisional mais gravoso do que aquele determinado na sentença penal condenatória, já que atuação diversa ofenderia o princípio da individualização da pena (artigo 5º, XLVI, da CR). O mesmo fundamento embasa a possibilidade de progressão de regime per saltum quando o agente preso no regime fechado faz jus à progressão, mas, contudo, não há vagas no regime semiaberto. Se por um lado há de se elogiar o entendimento conforme à Constituição dos Tribunais Superiores, por outro, tem de se preocupar com a razão que leva esses tribunais a reiteradamente se manifestar sobre esse tema. Ora, o motivo é claro!
Em determinadas situações, alguns Tribunais de Apelação e também Juízes de Direito, não obstante apresentarem discursos robustos pela defesa dos direitos do jurisdicionado, padecem do complexo de Pinóquio, pois o que sustentam na teoria destoa do que fazem na prática. O TRF-1, por ocasião do julgamento do HC 2004.01.00.061000-8/MA, decidiu que “[n]ão constitui coação ilegal a momentânea inexistência de vaga, compatível com o regime de cumprimento de pena imposto na sentença (semi-aberto) (...)”. Já o TJ-MG, em sede de julgamento do Agravo em Execução 1.0118.13.001371-7/001, ressalvado o brilhantismo do divergente e vencido voto do desembargador Alexandre Victor de Carvalho, assim se manifestou: “[l]ogo, o fato de não existir casa do albergado na comarca não significa que o Estado possa deixar de executar a pena privativa de liberdade regularmente aplicada, uma vez que permitir ao paciente em regime aberto que cumpra a reprimenda em residência particular, sem qualquer controle ou fiscalização por parte da Administração, representa uma verdadeira impunidade pelo crime praticado.”. Enquanto se confundir garantias constitucionais com impunidade, certamente se seguirá a manter a cultura do aprisionamento em Pindorama — (re)lembrando Lenio Sreck. É certo que a condenação criminal representa o juízo de censura estatal face ao fato penal cometido pelo acusado. Se o Estado, na execução da reprimenda, viola as leis e, em especial, as normas constitucionais que conferem direitos ao apenado, estaria ele  agindo como um fora da lei, assim como se comportou aquele que é submetido à pena.
No que toca aos julgadores singulares salta aos olhos o número de agravos em execução e também de habeas corpus submetidos aos Tribunais estaduais e federais impugnando decisões que sujeitam o apenado ao regime mais gravoso do que o determinado na sentença penal condenatória, ou mesmo que não proveem a progressão de regime por ausência de vaga no regime mais brando. Basta dar uma olhada na seção de jurisprudência dos Tribunais de Apelação para assistir ao show dos horrores das decisões de 1ª instância submetidas à revisão colegiada.
Isso tudo possui um custo a todos nós. Pagamos pelo tempo e meios para que seja movimentado o Poder Judiciário com agravos, julgamentos, subsídios, além de ocupar o tempo que poderia ser utilizado para julgamentos de outros casos. É uma das facetas da Tragédia dos Comuns (aqui).
Como no Brasil alguns atores do Direito só entendem vigentes as normas efetivamente escritas, a aprovação da PSV 57 colocaria fim à discussão sobre (im)possibilidade de o apenado cumprir pena em regime mais benéfico quando da ausência de vaga naquele definido na sentença. A vigência da aludida súmula vincularia os demais órgãos do Poder Judiciário bem como a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, gerando, portanto, flagrante violação ao direitos do apenado, em caso de seu descumprimento.
A rigor, normas, inclusive, já existem tanto no Código Penal (artigos 33 ao 35) quanto na Lei de Execuções Penais (artigo 110 e seguintes, e artigo 185, todos da Lei 7.210/1984). Contudo, a lógica brasileira do aprisionamento, que mantém mais de 550 mil mil presos[2], impede que a interpretação de tais regras seja feita a partir das normas constitucionais, mas, sim, com base na consciência dos julgadores[3] influenciada pelos discursos midiáticos de medo e revolta apresentados em torno dos temas de Direito Penal.
Esperamos que o pedido de vista não fique preso por muito tempo, mantendo-se a negação de direitos em nome de convicções pessoais absurdamente incompatíveis com a legalidade expressa. Do contrário, seremos Pinóquio ao mentir que não há direito subjetivo a cumprir regime mais brando na ausência de condições materiais ocasionadas pelo próprio Estado. Em resumo: 1) O Estado cria as regras; 2) Promete três regimes (fechado, semiaberto e aberto); 3) Não possui as condições materiais para que se execute; 4) Nega, via Poder Judiciário, aplicação expressa da lei; 5) Ou cresce o nariz ou reconhece a ilegalidade. O resto é muita vontade de punir ilegalmente, talvez com um gozo perverso.

[1] United Nations. Disponível em: http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/RegularSessions/Session27/Pages/ListReports.aspx. Acesso em: 24.03.2015.
[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Novo Diagnóstico de Pessoas Presas no Brasil. Disponível em: . Brasília, 2014. Acesso em: 16.02.2015.
[3] STREK, Lenio. O “Decido conforme minha consciência” dá segurança a alguém?. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2014-mai-15/senso-incomum-decido-conforme-consciencia-seguranca-alguem>. Acesso em: 26.03.2015.
 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
 é advogado, mestre em Direito pela UFMG, especialista em Ciências Penais pela EIC/PUC Minas, professor de Direito Penal e Processo Penal no Ibmec, professor de Processo Penal na Unicenter, professor de Direito Penal no IEC/PUC Minas, e diretor-presidente do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ).
Revista Consultor Jurídico, 8 de maio de 2015.

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