sexta-feira, 20 de março de 2015

Busca pela punição não pode prejudicar direito a defesa técnica


Foi com as reformas iluministas, segundo informa Luigi Ferrajoli, que a defesa técnica, reduzida nos anos da Inquisição a “uma arte baixa de intrigas”, assumiu a forma moderna de patrocínio legal obrigatório. A importância da defesa técnica é reconhecida também pelo nosso Código de Processo Penal (CPP) quando proclama que “nenhum acusado, ainda que foragido, será processado ou julgado sem defensor” (art. 261) e, ainda, “se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvando-o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação” (art. 263).
Assim, verifica-se que a defesa técnica trata-se de direito irrenunciável e indisponível. Decorre do próprio contraditório, da igualdade entre as partes e da paridade de armas que ao acusado seja assegurado um defensor habilitado, ou seja, um advogado. Jeremy Bentham, apud Ferrajoli, afirmou que os cidadãos “poderiam cuidar de suas causas judiciárias como todos geram seus negócios”, e, neste caso, a autodefesa seria suficiente. Contudo, “onde a legislação é obscura e complicada e o processo é empedernido de formalidades e nulidades”, é indispensável e necessário à defesa técnica de um advogado profissional “para restabelecer a igualdade das partes quanto à capacidade e para contrabalançar, por outro lado, as desvantagens ligadas à inferioridade da condição de imputado”.
Deste modo, além da autodefesa que é exercida pelo próprio acusado, como corolário do princípio da ampla defesa consagrou-se a defesa técnica.
A defesa técnica deve ser exercida por um advogado criminal, com conhecimento técnico-jurídico e com o devido preparo para se pôr em defesa da liberdade alheia. Como salientam os processualistas Rubens R R Casara e Antonio Pedro Melchior, de nada valeria “alçar a defesa a um dos pilares estruturais do processo penal democrático se, na prática, ela for entregue a profissionais despreparados e/ou pouco combativos”.
A importância da defesa técnica, numa perspectiva de direito público, fica evidenciada no dever do juiz de declarar o acusado indefeso em caso de ser a mesma insuficiente ou deficiente e lhe garantir o direito de constituir novo defensor. Não bastando, portanto, a existência formal de um defensor. Como bem destaca Antonio Scarance Fernandes a defesa deve ser efetiva, além de necessária, indeclinável e plena.
O constitucionalista José Afonso da Silva ensina que o devido processo legal está baseado em três princípios, quais sejam: o acesso à justiça, o contraditório e a plenitude de defesa. Verdadeiros pilares do Estado democrático de direito.
Nossos tribunais vez ou outra anulam julgamentos por considerarem que o réu estava indefeso, mesmo tendo advogado constituído. A falta da defesa constitui nulidade absoluta no processo penal (Súmula 523 do STF) e a sua deficiência poderá anular quando evidenciado o prejuízo. A defesa deficiente, precária, débil ou inepta equivale à sua ausência, é pior, porque mascara a própria defesa. Por tudo, é que a defesa técnica não pode ser cerceada ou constrangida. Não é sem razão que a defesa técnica é apresentada como pressuposto processual de validade.
Rubens Casara e Antonio Pedro Melchior destacam: “a grandeza da tarefa pública desempenhada pelo defensor no processo penal pode ser identificada no fato de esse ator jurídico lutar pela preservação da presunção de inocência e ser um dos principais responsáveis por vigiar a legalidade do processo”. Mais adiante, referindo-se ao caráter público da defesa técnica, os eminentes processualistas reafirmam a independência da vontade do defensor técnico (advogado) em relação à vontade do imputado segundo evidenciado na Súmula 705 do STF (“a renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta”). Conforme bem dito pelos citados autores “a independência do defensor é, portanto, um dos traços mais característicos de sua atuação em um processo penal democrático”.
A defesa, segundo Ada Pellegrini Grinover, mais que um direito constitui uma garantia, garantia do acusado de um lado e garantia do justo processo, do outro. Como condição de regularidade do procedimento constitui uma garantia na ótica do interesse público.
Hodiernamente, infelizmente, apesar de tudo e de todos, alguns magistrados com sangue nos olhos e em nome da fúria punitiva vem atropelando o sagrado princípio constitucional da ampla defesa sem qualquer parcimônia. A má vontade, para dizer o mínimo, de alguns juízes com a defesa (acusado e advogado) é evidente. O tratamento desigual entre as partes (acusador e acusado) é notório. Exemplo recente é a exigência feita por alguns juízes ao defensor para que este justifique a razão pela qual está arrolando esta ou aquela testemunha. Deste modo, o julgador presta um desserviço à justiça, sobretudo, porque a defesa, conforme já dito, é, também e fundamentalmente, de interesse público.
Em relação às teses defensivas, o juiz pode acata-las ou não, mas, jamais tentar, ainda que veladamente, limitar e aprisionar a liberdade do advogado, sobretudo, do criminalista. A liberdade da defesa é inseparável desta. Sem liberdade não existe defesa que sobreviva e para que a mesma seja plena é imperioso que seja livre.
Como assevera Geraldo Prado “a legitimidade da atividade jurisdicional está condicionada ao emprego de técnicas que imunizem o processo do decisionismo judicial e não iludam quanto à conquista de uma verdade real, o que só ocorrerá na medida em que sejam assegurados os direitos e garantias fundamentais, permitindo que acusação e defesa demonstrem a correspondência entre as teses esposadas e as provas produzidas, com a redução do subjetivismo inerente a todo julgamento”.
A busca sistemática, incansável e esmagadora pela punição em nome da repressão penal e de uma fantasmagórica contenção da criminalidade, por mais difundida e alardeada que seja pela mídia e ambicionada por parte da sociedade, não pode contaminar os princípios fundamentais e garantistas do direito penal e processual penal e, muito menos, conspurcar a dignidade da pessoa humana um dos pilares do Estado Democrático de Direito.
*Dedico este artigo ao juiz Rubens Casara. Magistrado humanista e garantista.
Revista Consultor Jurídico, 19 de março de 2015.

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