domingo, 15 de março de 2015

A Califórnia esvazia suas prisões superlotadas

2.700 presos foram libertados desde novembro, graças a uma mudança de legislação que busca aliviar a superlotação e reinvestir fundos para a educaçãoSistema



Um espiral de drogas e prostituição levou Charsleen Poe à prisão pela primeira vez há 20 anos. "Pensei que minha vida havia acabado", diz. Enviou seus três filhos à casa da sua mãe, no Alabama, e acabou vivendo nas ruas de Los Angeles. Reconstruiu a sua vida e, atualmente, está "limpa" há sete anos e trabalha como coordenadora do A New Way of Life Reentry Project, uma organização que auxilia a reintegração de presos à sociedade no sul de Los Angeles. Mas, com quatro delitos em sua ficha criminal (porte de cocaína e prostituição), aos 56 anos, não consegue deixar o passado para trás.
Poe apresentou, na última terça-feira, um requerimento para reclassificar seus antecedentes criminais. Uma mudança na legislação aprovada pelos californianos para aliviar a superlotação do sistema carcerário permite isso - que significa, no fundo, anular a prisão. E além de dar novas perspectivas para milhares de ex-prisioneiros, levou 2.700 presos à liberdade em quatro meses.
Em três décadas a população de presos cresceu 600% , atingindo a marca de 170.000 pessoas
Uma pessoa com antecedentes, ainda que sejam delitos menores, tem muitas dificuldades para deixá-los para trás quando volta à liberdade. Qualquer empregador pode pedir seu histórico criminal e, caso tenha estado atrás das grades, é normal que não o contrate. O acesso a uma renda social ou a empréstimos é negado. Não pode sequer considerar alguns empregos públicos. Poe quer ser enfermeira, uma função que não pode exercer há duas décadas por causa dos seus antecedentes.
A Califórnia aprovou nas urnas, em 4 de novembro do ano passado, a chamada Proposta 47, que, com efeito retroativo, transforma em infrações uma série de delitos menores, como roubos ou fraudes de valores menores ao equivalente a 3.000 reais, além do uso pessoal de drogas ilegais. Antes, eles implicavam tempo de prisão. Se o tribunal der razão a Poe, ela terá uma segunda oportunidade para a sua vida com a qual "não podia nem sonhar" há um ano.
O objetivo da Proposta 47 é reduzir a população carcerária da Califórnia e reinvestir o dinheiro economizado em programas sociais de prevenção, especialmente tratamentos de drogas e para a saúde mental. Desde novembro, 2.700 pessoas foram soltas e a estimativa é que mais de 10.000 detentos saiam da prisão. Por ano, 40.000 pessoas são condenadas na Califórnia por atos que antes eram delitos e agora não são mais, como porte da maioria das drogas.
A população carcerária da Califórnia aumentou aproximadamente 600% em três décadas e chegou à marca de 170.000 pessoas em 2007, 0,5% do total de habitantes do estado. As razões que explicam esse crescimento espetacular podem se resumir a uma competição eleitoreira para descobrir quem era mais duro contra o crime. A famosa lei dos três erros (tree strikes) foi aplicada com mais firmeza que em qualquer outro estado. Basicamente, quem cometesse três delitos recebia prisão perpétua. Sem contar que o lobby dos guardas das prisões tradicionalmente foi um poderoso aliado político. A Califórnia gasta o equivalente a 200.000 reais por ano com cada preso (como comparação, desembolsa 29.000 reais a cada estudante de escola primária), segundo os números daCalifornians for Safety and Justice, um dos principais grupos de apoio à proposta. As estimativas indicam que a Proposta 47 significará uma economia de entre 324 milhões e 650 milhões de reais por ano.
A Califórnia vem reduzindo sua população carcerária desde 2011 por ordem de juízes que consideram desumana a superlotação das prisões. Mas com a nova legislação, coloca-se na liderança de uma tendência que percorre os Estados Unidos. É o país com mais cidadãos presos: mais de 2,2 milhões de pessoas, mais que a China. Em 1980, eram apenas 500.000. Os EUA gastam mais de 227 bilhões de reais ao ano com as prisões.
Charsleen Poe, em um centro social de Watts, Los Angeles. / P. X. S.
A nova lei tem partidários e críticos nos dois partidos. A Proposta 47, por exemplo, foi apoiada pelo ex-candidato republicano à presidência Newt Grigrich e pelo atual presidenciável do mesmo partido Rand Paul, ao lado de dezenas de organizações sociais. No entanto, sofreu a oposição da senadora democrata Dianne Feinstein, alinhada com os escritórios dos xerifes e ao lobby dos guardas prisionais. Um estado muito republicano como o Texas tem programas há anos para reduzir a população carcerária e reforçar a reintegração à sociedade para tentar interromper o espiral da reincidência.
A lei da Califórnia é a mais avançada dentro de uma tendência nacional de alívio das prisões que tem apoios nos dois partidos
A tendência desafia todos os manuais de política que ensinam que ser duro contra o crime rende votos. "O crime não amedronta mais", explica o analista Joe Mathews, co-autor do livroCalifornia crack up (O racha da Califórnia, em tradução livre) e colunista do fórum de debates Zócalo. A violência em Los Angeles, por exemplo, caiu para os níveis dos anos quarenta. "Há uma mudança nacional nas preocupações dos partidos. O crime está caindo, e os orçamentos, apertados. Então surge a pergunta: precisamos prender tanta gente? Eu acho que será interessante ver se haverá alguma reação. E eu acho que haverá".
Matews adverte que a história da Proposta 47 ainda não terminou. Os críticos asseguram que os pequenos crimes contra a propriedade estão aumentando. Além disso, os detetives descobriram que não podem recolher amostras de DNA dos detidos por pequenas infrações, o que prejudica as investigações. Começam a aparecer pedidos de emendas para essa lei.
Jessica Faris, da União Americana pelas Liberdades Civis, uma das principais promotoras da proposta, afirma que os verdadeiros efeitos serão vistos a partir dos próximos orçamentos, quando houver mais dinheiro para projetos de reintegração. "Quando começarmos a ver os programas sociais se desenvolverem, veremos as taxas de crimes diminuírem", assegura.
Enquanto isso, dezenas de milhares de pessoas como Amie Zuniga esperam que os juízes reclassifiquem suas condenações. Por ter antecedentes por posse de drogas e roubo de carros, Zuniga teve acesso negado a alojamentos sociais, emprego e auxílio de renda. "Comecei a usar drogas aos 12 anos e aos 13 estava em uma gangue", conta. Tem 34 anos e seis filhos. Perdeu a custódia de cinco deles e, para poder vê-los, precisa demonstrar à Justiça que está totalmente reabilitada. Vive apenas com o mais novo, de dois anos e meio, e com o seu pai. "Se aprovarem (seu requerimento), quero voltar à escola e crescer. Preciso seguir em frente e dar o exemplo de que é possível crescer se as portas forem abertas. Cometemos erros, mas é hora de corrigi-los".

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