segunda-feira, 20 de outubro de 2014

"Polícia Federal não pode ser eficiente com tantas atribuições"

Se os candidatos à Presidência da República estivessem efetivamente preocupados com o combate à corrupção, bem poderiam conversar com o delegado da Polícia FederalRoberto Troncon, um profissional que entende do assunto.
Sem bravatas, demagogia ou afetação, Troncon discorre sobre os dramas mais complicados da criminalidade no Brasil como quem toma um café na esquina. Com naturalidade, segurança e a paixão de quem acredita no direito e na carreira que escolheu, o comandante da PF em São Paulo defende sua corporação, mas não seus defeitos. Ele acredita, convicto, que a sua polícia pode apoiar o desenvolvimento do país. Mas não com o formato atual.
Troncon idealiza uma força policial altamente especializada e eficiente. Mas concentrada nas tarefas de inteligência e investigação para enfrentar o maior inimigo do país: o crime organizado. A maior parte das atribuições iniciais — e as que foram acrescentadas à medida que a PF passou a ser vista como solução universal para todos os males — seriam repassadas a outros agentes. Emitir passaportes, controlar porte de armas ou vigiar fronteiras, por exemplo, deveriam ser repassados a órgãos existentes ou a serem criados. Ou seja: a PF deve concentrar-se no principal para dar conta disso.
O perfil do delegado não passou despercebido por advogados e juízes. O presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Fábio Prieto, o aponta como expoente de “uma geração muito bem formada, séria, comprometida com as finalidades institucionais da Polícia Federal”. Troncon, atesta o juiz, “é um dos mais respeitados profissionais desta geração”.
O presidente do Tribunal de Justiça, Renato Nalini, faz coro: “O delegado Troncon é paradigma da juventude brasileira empenhada em fazer desta República o ambiente saudável em que o crime não mais compense, mas gere sanção adequada”. Para o desembargador, a PF brasileira já concorre com os melhores departamentos policiais do mundo.
Troncon goza de prestígio mesmo entre os advogados mais críticos da categoria, como o criminalista Alberto Zacharias Toron, e que conhecem o delegado desde seu ingresso na corporação. “Troncon sempre foi tido — e com justa razão — como competente e operoso”, diz o advogado, para arrematar: “Além disso, é afável no trato e, enfim, reúne as características de um autêntico líder”.
Fausto De Sanctis, celebrizado como juiz criminal, hoje no TRF/3, depõe: “Posso dizer que Troncon sempre realizou e realiza trabalho coerente e determinado. Atua no limite das capacidades da Polícia Federal, que tem sofrido com redução de verbas e redefinição de funções. Trata-se de profissional engajado e merece todo o respeito”.
José Luis Oliveira Lima, expoente da nova geração de criminalistas brasileiros confirma: “O doutor Troncon representa o que há de melhor na Polícia Federal. Exerce a Superintendência em São Paulo com maestria e correção”. Na mesma linha, Rodrigo Dall' Acqua complementa: “Ele busca a valorização da Polícia Federal como órgão de inteligência, prestigia a eficiência e contém o avanço ilegal do Ministério Público na busca de assumir o controle das investigações policiais”.
Para compreender o motivo desse prestígio, a revista eletrônica Consultor Jurídico foi checar as ideias desse policial brasileiro.
Leia a entrevista:
ConJur — Qual seria a Polícia Federal ideal para um país como o Brasil? 
Roberto Troncon Filho — A Polícia Federal adquiriu as atribuições e a configuração que tem hoje no regime militar. Nós consideramos que o embrião da Polícia Federal foi o Departamento Federal de Segurança Pública, criado no governo Getúlio Vargas, em 1944. Mas de 1944 a 1964, o Departamento Federal de Segurança Pública tinha como atribuição principal garantir a segurança pública no Distrito Federal, que à época estava no Rio de Janeiro. Em 1964 a Polícia Federal teve ampliadas as suas atribuições. Em 1967 a Constituição outorgada expressa essas atribuições. Em 1988 essas atribuições são reiteradas, reafirmadas e ampliadas na Constituição Federal elaborada pelo legislador contribuinte.  

ConJur — Que papel o constituinte atribuiu à Polícia Federal, nesta oportunidade?
Roberto Troncon Filho— Ele nos coloca como polícia judiciária da União, com exclusividade. Quem faz investigações criminais que apura infrações penais contra bens, interesses e serviços da União, suas autarquias e empresas públicas, e outras infrações que também afetam o interesse da federação como tráfico de drogas, contrabando, descaminho, enfim, é a Polícia Federal. À margem disso, a Constituição nos colocou na função de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras. É uma atribuição gigantesca, visto que nós temos 16,7 mil quilômetros de fronteiras terrestres e a faixa legal de fronteira compreende uma faixa de 150 quilômetros.

ConJur — Qual a diferença entre a Polícia do regime militar e a de agora?  
Roberto Troncon Filho— A Polícia Federal, até 1985, foi comandada por militares. O diretor-geral era um general, os superintendentes eram coronéis. Isso foi muito bom para nossa formação porque nos trouxe fundamentos muito sólidos de uma organização que que cultua valores nacionais e sabe da importância do Estado brasileiro para o seu povo. Nós tivemos toda essa formação rígida apesar de ser uma polícia civil, uma policia não uniformizada. Quando da redemocratização, em 1985, os órgãos militares e de Segurança Pública, que durante o regime militar atuaram de acordo com a regra do jogo, apurando crimes contra a ordem política e social, condutas que visavam a mudar pela força o regime, esses órgãos vivenciaram uma certa estigmatização. A Polícia Federal teve a sua parcela: de 1985 até 1993 não houve concurso. Então, o órgão foi definhando.

ConJur — Quando ela começa a recuperar seu prestígio?
Roberto Troncon Filho— Reafirmadas as nossas atribuições na Constituição Federal de 1988, o processo começa a se reverter a partir de 1993, quando o presidente Itamar Franco autorizou o primeiro concurso para recompor seus quadros.

ConJur — O que aconteceu nos governos que se seguiram?
Roberto Troncon Filho— Todos esses governos levaram em conta aquilo que o legislador constituinte havia decidido que era: a União tem que ter uma Polícia Federal que investiga crimes contra o interesse da Federação; que controla as fronteiras, os portos e aeroportos; e que é a polícia judiciária da União exclusivamente. É assim que está escrito na nossa Constituição.

ConJur — Qual era a situação da Policia Federal naquele momento?
Roberto Troncon Filho— A polícia estava muito sucateada, depois de oiti anos sem concursos e investimentos. Nós tivemos o restante da década de 1990 para nos modernizar, contratando novos policiais. E dentro dessa grande mudança, houve também uma mudança cultural.

ConJur — O que isso significa?
Roberto Troncon Filho— Significa que nós somos uma polícia de Estado, uma polícia republicana, especialmente quando se fala de investigações criminais, e que a lei é igual para todos. Isso não foi obra de um governo nem de uma pessoa isoladamente dentro da Polícia Federal. Foi obra de uma sequência histórica da organização que passou a se enxergar como quis o legislador constituinte: como uma polícia que não deve perseguir, nem proteger, que deve agir absolutamente de acordo com a lei.

ConJur — Em termos de efetivo, como foi a evolução da PF nesse período?
Roberto Troncon Filho— No final dos anos 1970, quando o Brasil tinha 100 milhões de habitantes, a Polícia Federal chegou a ter 12 mil policiais. Em 1995, tinha 4.250 agentes. Na década passada, voltamos ao nível entre 11 e 12 mil. Comparada com o início dos anos 80, a população quase que dobrou, hoje somos 200 milhões de habitantes. Então, a relação com o trabalho piorou.

ConJur — Como a PF tem enfrentado essa situação?
Roberto Troncon Filho— Em consequência dessa recuperação da polícia, a PF passou a desenvolver uma metodologia sedimentada na cultura de que a lei vale para todos e começou a atacar grandes grupos criminosos. O que atraiu a atenção da imprensa é que enfrentamos não só narcotraficantes poderosos, mas grupos de pessoas envolvias em crimes do colarinho branco, gente que se passava por pessoas de bem na sociedade, mas que estavam surrupiando dinheiro público, se metendo em fraudes de licitações ou em crimes financeiros.

ConJur — Para dar conta das atuais funções, seus 12 mil integrantes são suficientes?
Roberto Troncon Filho — Absolutamente insuficientes. Vou pegar o exemplo de um item apenas: hoje a Polícia Federal tem 105 mil inquéritos policiais federais no Brasil. Inquéritos de menor complexidade que apura o furto de um equipamento de um computador de uma universidade, até inquéritos que apuram fraudes bilionárias. Vigora o princípio da obrigatoriedade que no nível federal não tem mitigação: recebeu a notícia-crime, instaura-se o inquérito. Então, nós temos 105 mil inquéritos. À margem disso, quantos homens seriam necessários para fiscalizar todo movimento na faixa de 150 km de fronteira, nos seus 16.780 km de extensão? Certamente, nem se fosse empregado todo efetivo da Policia federal para isso, conseguiria... Mas não é só isso: nós temos que controlar todas as armas do país, fiscalizar armeiros, clubes de tiro, autorizar portes, fiscalizar toda atividade de segurança privada, múltiplas escolas de formação, empresas de segurança patrimonial...

ConJur — É um exercito maior do que a própria polícia.
Roberto Troncon Filho — Vigilantes que receberam formação profissional são 1,5 milhão; em atividade são cerca de 600 mil. Se você somar todas as forças policiais brasileiras dá mais ou menos esse número.

ConJur — Nesse momento em que a PF se dedica mais a combater esse tipo de crime urbano, as fronteiras não ficam descobertas? 
Roberto Troncon Filho — É por isso que eu digo que a Polícia Federal hoje não pode ser eficiente com 12 mil policiais. Quando a PF começa a ter reconhecimento da população, o Congresso Nacional começa a aprovar leis especiais dando-lhe mais atribuições. Passamos a controlar as empresas que fabricam, produtos químicos que possam ser utilizados no tráfico de drogas; a controlar empresas de segurança privada; a controlar armas,; a investigar concorrentemente com as polícias civis crimes de roubos de valores, roubos de cargas e outros quando têm repercussão interestadual. Além disso os demandantes de serviço de passaporte aumentaram... São emitidos 2,1 milhão de passaportes por ano.

ConJur — Essa é uma atribuição tradicional da PF?
Roberto Troncon Filho — Ela não está na Constituição, está no nosso regulamento, que é um ato do ministro de Justiça. O fato é que não tem muito a ver com a atividade policial emitir passaportes.

ConJur — Mesmo com a expansão do terrorismo internacional?
Roberto Troncon Filho — Há uma diferença significativa entre gerenciar um processo burocrático de controle de passaportes e ter acesso aos dados que vão lhe permitir reprimir eventuais crimes. A Polícia não precisa controlar a imigração, não precisa emitir passaporte, pois isso é uma atividade de polícia administrativa. O que a polícia precisa é ter acesso aos bancos de dados da imigração. Se no curso da atividade administrativa de controle surge alguém que tem uma incongruência de dados, uma suspeição, a polícia deve ter capacidade de intervir.

ConJur — Como o efetivo está distribuído para se desincumbir de suas atribuições?
Roberto Troncon Filho — Hoje, a Polícia tem metade do seu efetivo envolvido com atividades de polícia administrativa e a outra metade para lidar com os seus 105 mil inquéritos policiais. Esse número é absolutamente inviável. A PF faz o que pode. Tem feito mais do que pode. Por exemplo, quando você passa pelo guichê de controle migratório do aeroporto, não é um policial que está ali. É um colaborador contratado que exerce atividade mecânicas de receber seu passaporte e botar no sistema. O sistema faz um cruzamento de dados com nossos bancos e se não tiver nenhuma restrição ele autoriza sua saída ou sua entrada e registra aquele movimento. Quando há alguma restrição aparece uma mensagem na tela dizendo: “Acionar policial federal.” Aí o colaborador faz um acionamento e o policial vai ver o que está acontecendo.

ConJur — Se o Supremo determinar que a atividade fim não pode ser terceirizada como é que vocês vão fazer?
Roberto Troncon Filho  Essa atividade do aeroporto feita por colaboradores contratados, que eu mencionei, não é uma atividade fim. Na semana passada nós inauguramos um projeto piloto chamado E-gate, no aeroporto internacional de São Paulo. Por esse sistema você chega com seu passaporte, coloca em um leitor de passaporte, abre uma cancela, você entra em um espaço e a cancela se fecha. Você olha para uma câmara, a câmara compara a sua imagem facial com a que está no microchip, faz um cruzamento instantâneo com tudo que temos no banco de dados e, não havendo restrição, a segunda cancela abre e você vai embora. Se houver algum problema a cancela não abre, o passageiro fica retido e aí o policial é acionado para intervir. Então, a máquina está fazendo aquilo que os colaboradores contratados fazem. Isso não é atividade fim.

ConJur — Qual seria o formato ideal para a Polícia Federal?
Roberto Troncon Filho — O Brasil ganharia muito se fossem retiradas da Polícia Federal todas as atribuições de polícia administrativa e de polícia preventiva. Que elas fossem transferidas para outros órgãos existentes ou a serem criados e que a polícia ficasse apenas e exclusivamente com a atividade de investigação criminal, à semelhança do que acontece com o FBI nos Estados Unidos. Com o mesmo efetivo de 12 mil que temos hoje, faríamos muito mais do que estamos fazendo. Poderíamos fazer mais ainda, no combate à corrupção, que é uma vertente prioritária da Polícia Federal há alguns anos; no combate ao crime violento, ao narcotráfico e aos crimes patrimoniais contra a União, que são atribuições nossas. Poderíamos firmar convênios com as Polícias Civis d os estados para investigar crimes de homicídio, ou latrocínio, ou extorsão mediante sequestro. São crimes graves contra a vida ou a liberdade das pessoas, crimes com violência.

ConJur — E como seria possível dar à Polícia Federal uma atribuição que hoje é exclusiva da Polícia Civil dos estados? 
Roberto Trocon Filho — Seguindo o modelo do que acontece com o tráfico de drogas. A Constituição de 1988 diz que o combate ao tráfico de drogas é uma atribuição da Polícia Federal. Mas a PF assinou convênios com as polícias civis, que ficaram com o encargo de fazem a repressão do tráfico na distribuição local, na venda a varejo. Para a PF ficou o combate ao tráfico interestadual e internacional. Seguindo essa mesma metodologia nós podemos firmar convênios com todos os estados e participar do combate à violência e à criminalidade. O Brasil tem 50 mil homicídios por arma de fogo por ano. Isso é mais do que muitas guerras civis. É inaceitável. Então, desonerados das atividades de polícia administrativa, nós poderíamos nos concentrar também no combate à violência.

ConJur — O que dá mais visibilidade à Polícia Federal hoje em dia, são as investigações criminais apelidadas de “operações da PF”. Já o número de processos resultantes dessas operações que são trancados pela Justiça passa a sensação de que a qualidade da investigação é ruim. É só uma sensação? 
Roberto Troncon Filho — Não. Nós temos uma parte de investigações trancadas que não foram bem instruídas; e temos outra parte que acabou trancada em decorrência da legislação que estabelece possibilidades recursais múltiplas, que torna a Justiça muito lenta e passa uma sensação de impunidade. O legislador brasileiro idealizou um cenário utópico: ‘Olha, nós só vamos punir alguém quando se esgotar qualquer possibilidade que aquela punição contenha uma margem ínfima de erro’. Esse princípio que permeia todo nosso direito, torna o judiciário sobrecarregado e não consegue dar a resposta adequada.

ConJur — Mas a Polícia também cometeu erros.
Roberto Troncon Filho— Eu creio que há 10 anos a polícia cometia mais erros. Mas a cada investigação nós fomos melhorando. Então, tem uma parte de erro? Tem. Mas tem uma parte que resulta do próprio sistema judiciário e sua legislação processual que os nossos advogados sabem muito bem utilizar. E tem ainda decisões polêmicas, que nós não discutimos, mas observamos, analisamos para não trilhar no futuro aquele caminho na produção da prova para evitar qualquer tipo de contestação. Lembrando que a polícia não tem o compromisso que tem o Ministério Público, com a acusação, com a condenação de ninguém. Nosso compromisso é exclusivamente esclarecer o que aconteceu naquele fato que é apresentado como criminoso.

ConJur — Tem um delegado aí, um ex-delegado, que agora é deputado federal, que não trilhou bem...
Roberto Troncon Filho — A gente sempre é lembrado por um caso, particularmente esse caso da operação satiagraha, em que erros foram cometidos. Então, esse caso está na primeira parte dos processos em que a prova não foi bem constituída, em que a forma como foi conduzida não foi boa. É fato isso. Tanto é fato que a Polícia Federal instaurou procedimentos administrativos disciplinares que ainda estão tramitando, porque a questão da imunidade parlamentar embaralhou um pouco. Qual será o resultado eu não sei, mas se provada a infração, pode dar até demissão do cargo público. E nesse aspecto eu falo sem medo de errar, ninguém tem feito mais o dever de casa para depurar as falhas e punir os responsáveis no campo administrativo, do que a Polícia Federal.  

ConJur — Quantos casos de afastamento a bem do serviço público ocorrem por ano na PF?
Roberto Troncon Filho — Acontece um monte. Eu não tenho essa estatística. Eu tenho uma teoria com relação ao desrespeito às normas. Num espectro de 10 pessoas, você tem uma ou duas em um extremo que jamais vão infringir uma regra de conduta social, pela sua formação religiosa e moral, pelos valores que recebeu da família. No outro extremo, tem aqueles um ou dois que pura e simplesmente não entendem o que é uma regra de conduta. Nesses dois extremos, o Estado não consegue mexer. Os outros seis do nosso espectro de dez que ficam entre esses extremos, a  conduta desses vai depender.

ConJur — De quê?
Roberto Troncon Filho— Depende de o país ter regras claras de prevenção e repressão. No país que tem mecanismos mais eficazes de prevenção e repressão, esse grupo de 60% pende mais pro lado de obediência às normas; no país que não tem, a massa pende para o outro lado. Por que eu digo que a Polícia Federal melhorou? Entre 1995 e 2000 nós nos reestruturamos e crescemos. Houve investimentos em tecnologia e materiais, foram contratadas novas pessoas, repaginamos, reciclamos e a cultura foi mudando. A partir de 2002, que foi a operação Anaconda, começamos a bater internamente. No começo foram muitos casos, mas recentemente os casos começaram a diminuir felizmente. Por quê? Porque sempre vai haver crime, porque tem aqueles 20% que não entendem o que são as regras de conduta e que estão em todo lugar, inclusive na Polícia.

ConJur — As falhas nas investigações da polícia acontecem por falta de preparo, por incompetência ou por má fé?
Roberto Troncon Filho — É difícil generalizar, mas eu diria que as falhas são de duas ordens: por falta de qualificação, de conhecimento, a pessoa tem boas intenções, mas não executou seu trabalho adequadamente; ou, deliberadamente a pessoa orientou a sua atividade para atingir um resultado não desejado pela lei e no qual ela tem interesse. Esse é o mais grave e é o que a gente está sempre muito atenta e tem reprimido. Dentro do Executivo, diferentemente do que acontece no Judiciário e no Ministério Público, se você for demitido a bem do serviço público, o seu vinculo com a administração é cortado absolutamente. Você vai ter que arrumar outro emprego, porque não recebe um centavo sequer do estado a partir de então.

ConJur — Voltando às investigações anuladas pelo Judiciário: por que não se pode refazer a denúncia?
Roberto Troncon Filho — Existe um princípio jurídico que diz que se for considerado que uma determinada prova foi obtida por meio ilícito, toda sequência de relações decorrentes daquela prova é invalidada. Isso não tem solução.. Agora, falando especificamente da Satiagraha, nós tivemos uma primeira fase em que o responsável pela investigação não observou protocolos e procedimentos específicos da Polícia Federal. Quando a polícia aplicou os mecanismos de controle, detectou que já tinham acontecido algumas falhas e gerou um procedimento disciplinar. Já a segunda fase foi técnica, profissional. Vou falar de novo: um investigador criminal não pode se apaixonar pelo tema, ele não pode querer condenar alguém. Quem está à frente de qualquer investigação deve agir de maneira absolutamente distante do resultado, como um pesquisador cientifico.

ConJur — Dá para salvar a investigação viciada?
Roberto Troncon Filho— Não sei, é muito difícil. Eu acho importante explicar como funciona o nosso sistema: nós temos o Estado que investiga, que é a polícia judiciária, que é independente do Estado que acusa e é independente do Estado que julga. E esse sistema independente é essencial para a garantia da população contra abusos praticados por agentes públicos em nome do estado. Veja bem; eu falei que nós temos 105 mil investigações em andamento. Temos, em média, entre 300 e 400 operações especiais por ano. Então, desde 2008, nós tivemos 1.800 operações e apenas um caso problemático, que foi a já citada operação Satiagraha. Então, em 1.800 investigações tivemos 0,1% de problema. Eu acho que a gente está com um controle muito bom.

ConJur — O senhor não acha que há um exagero no uso do grampo nas investigações policiais
Roberto Troncon Filho — Não. Não é assim. A interceptação de comunicação é uma técnica utilizada pela Polícia Federal e por todas as polícias dos países mais desenvolvidos do mundo, mas ela é absolutamente excepcional. Em 2010, ano da CPI do grampo, a imprensa divulgou que havia 600 mil linhas interceptadas. Eu vou te falar o número de 2010: naquele ano nós tínhamos 150 mil inquéritos em andamento e em 280 houve interceptação de comunicação.  De lá para cá a média de inquéritos com interceptação oscila entre 0,3% e 0,4%.

ConJur — Em que circunstâncias cabe o grampo?
Roberto Troncon Filho — Você começa a investigação com as técnicas tradicionais: ação controlada, vigilância, busca de dados públicos e, dependendo do crime, afasta o sigilo bancário e fiscal. Chega um momento em que não dá para ir mais adiante sem usar a interceptação ambiental, telemática e telefônica. Quem avalia a necessidade e autoriza é o Judiciário e o CNJ controla a quantidade de números interceptados que cada juiz está autorizando.

ConJur — Mas precisa ter grampo? 
Roberto Troncon Filho — Tem casos que não tem como avançar, especialmente aqueles que lidam com organizações criminosas mais complexas. Por quê? Para uma organização criminosa ir adiante no seu intento e se expandir, ela precisa que os níveis gerenciais se falem. Vamos pegar a narcotráfico: o grupo pega a droga na Colômbia, traz para o Brasil, do Brasil manda para a Europa e para a África. Ele tem posições em todos esses lugares. A exemplo de uma empresa multinacional, é impraticável que todas as reuniões sejam presenciais. O grupo tem que se comunicar à distância. Então, nesse caso, a gente age absolutamente de acordo com a lei e faz a interceptação. Suprimir isso da polícia de investigação gera problemas graves.

ConJur — Como grampear sem ferir os direitos individuais?
Roberto Troncon Filho— Na ótica da proteção dos direitos individuais, o Brasil está mais avançado do que a maioria dos países. Em 2010, foi feito um seminário internacional pela Polícia Federal em Brasília. Além do Brasil, oito países foram convidados: Inglaterra, Portugal, França, Nova Zelândia, México, Colômbia, Canadá e Estados Unidos. Nós constatamos que na maioria desses países, no confronto entre o direito individual e o direito da sociedade à segurança, o individual sempre perde. Nos Estados Unidos ou na França, se você precisa interceptar as comunicações de alguém, tem que pedir para o judiciário, a exemplo do que ocorre no Brasil. Agora, se for uma investigação de interesse do Estado — não estou falando de investigação criminal, estou falando de proteger o estado contra grupos terroristas — aí não tem nada disso: a interceptação de comunicações é feita pelo executivo. O judiciário não fica sabendo, o Ministério Público não fica sabendo, ninguém fica sabendo. É assim na França, berço da República moderna, e é assim nos Estados Unidos, a terra da liberdade. No Brasil, não existe essa exceção.  

ConJur — Uma violação que tem ocorrido com frequência é o vazamento de informações sigilosas. O que a Polícia Federal faz para coibir essa ilegalidade?
Roberto Troncon Filho — Temos feito muitos estudos para identificar vazamentos, estudos de marcação digital de som, mas isso é um aspecto complexo. Toda vez que a gente toma ciência que houve vazamento, nós instauramos um inquérito. Mas há uma grande dificuldade de fazer essa prova.

ConJur — Por quê?
Roberto Troncon Filho — O jornalista, que publica a informação vazada, tem e deve ter o direito de não revelar a fonte. Se o jornalista não revela a fonte, fica difícil rastrear a origem do vazamento, porque vários atores tomam conhecimento do material sigiloso. Tem a polícia que começa a investigar, o Ministério Público que acompanha a investigação, o Judiciário que decide as medidas cautelares e os advogados, que na fase ostensiva da investigação têm acesso a tudo. Já tivemos caso de advogado que vazou a informação, conseguimos provar e ele foi indiciado.

ConJur — Qual é sua posição sobre a delação premiada?
Roberto Troncon Filho — A delação premiada é um avanço e teve muita influência dos países da common law, especialmente dos Estados Unidos. O pragmatismo norte-americano é imperativo, eles priorizam mais a substância e o resultado do que a forma do processo. Nós temos esse apego à forma, que é incompreensível para os americanos. Então, dentro desse pragmatismo americano se percebeu a conveniência de, no interesse da sociedade, quando identificada e responsabilizada uma pessoa que pertence a um grupo criminoso, ao invés de punir aquela pessoa, se essa pessoa decidir colaborar com o estado, dar-lhe algum beneficio, para ampliar a repressão. Nós não chamamos de delação premiada, porque delação contém um juízo de valor, como uma coisa reprovável. O fato é que, se alguém que praticou um crime e depois, arrependido ou motivado por um ganho pessoal, decide colaborar com o Estado para desvendar esse crime responsabilizando os outros criminosos, a sociedade que não quer o crime e quer recuperar o dano causado pelo crime, se beneficia com a colaboração de alguém que é um criminoso.

ConJur — O que pode ser feito para evitar dois defeitos do sistema: um é o que os advogados chamam de “delação a la carte”, que é o investigador já levar o que ele quer que a pessoa diga; e o outro é o denunciante usar a delação para se vingar.
Roberto Troncon Filho — A vingança é uma motivação. Quando alguém vem à polícia para denunciar um crime, um aspecto importante avaliado é: qual é a motivação? Compreender o interesse das pessoas ajuda a valorar aquela informação e isso a polícia faz frequentemente. E a vingança é um grande motivo. É a ex-esposa que resolve denunciar o ex-marido; é o sócio prejudicado pelo outro sócio. Agora, chegar alguém e dizer: “Olha, você tem que me dar essa delação aqui.” Isso é ilegal, porque a lei diz que a delação ou a colaboração tem que ser espontânea.

ConJur — A Polícia Federal paga por informação?
Roberto Troncon Filho — Pagamos. Temos um regimento interno de recrutamento e pagamento de informantes, tem todo uma delineação legislativa que protege essa informação, a gente não tem que revelar a fonte. Fazemos isso há muito tempo e não somos diferente de ninguém no mundo. A polícia de investigação, as agências de inteligência elas compram informações.

ConJur — Como a Polícia pode confiar na palavra de um criminoso, que não é nenhum exemplo de ética e bom comportamento?
Roberto Troncon Filho- Sabe quanto vale a informação de um colaborador no momento em que ele a entrega? Nada, não vale absolutamente nada. O que ele diz tem que ter uma comprovação por outros meios no mundo real. Ele fala: “Eu fiz uma transferência de US$ 2 milhões na conta número tal, banco tal da Suíça e está no nome do fulano.” Aí a autoridade tem que ir lá e e confirmar a informação. Quando a colaboração é comprovada por outros meios aí valeu, o colaborador vai ter direito ao beneficio combinado. Antes disso, não vale absolutamente nada. Por isso, a informação tem que ficar em sigilo até que seja devidamente comprovada.

ConJur — Tem crescido o número de colaborações premiadas?
Roberto Troncon Filho — Eu não tenho números, mas a tendência é crescer. A sociedade ganha porque a delação não se resume a responsabilizar uma pessoa; ela acaba desarticulando todo o sistema e isso tem um efeito didático preventivo.

ConJur — Qual é a Polícia Federal dos seus sonhos?
Roberto Troncon Filho — Uma Polícia Federal, exclusivamente voltada para investigação criminal que tivesse uma configuração assemelhada à do Ministério Público, com autonomia funcional, administrativa e financeira. É inegável a contribuição do Ministério Público depois que ele ganhou autonomia com relação ao poder executivo. Na Polícia Federal, não há caso de interferência direta. Não tem porque a cultura não permite. Nós estamos blindados, não pela lei, mas pela cultura dogmática que hoje existe na imensa maioria dos policiais federais. Não há como um diretor geral, um superintende, um ministro querer direcionar qualquer investigação. Mas uma polícia sobrecarregada, uma polícia que não consegue ter o fluxo de investimentos que estava planejado, ela pode ter mais dificuldade de executar a sua missão primordial que é a investigação. Então, a proposta é que essa polícia adquira uma autonomia funcional, administrativa e financeira, como eu entendo que o Banco Central também deve adquirir. O fortalecimento do estado investigador é absolutamente necessário com todos os controles existentes e outros que puderem ser pensados pelo legislador, para que esse órgão execute a sua atividade com absoluta independência e imparcialidade dentro da regra do jogo, mas também que tenha as condições de fazer seu papel sem nenhum tipo de interferência externo.

Revista Consultor Jurídico, 19 de outubro de 2014.

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