segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Leitura do contexto é vantagem competitiva no jogo processual

Alexandre Morais da Rosa

Compreender o processo penal a partir da teoria dos jogos como é a proposta do Guia Compacto do Processo Penal implica em reconhecer que não se trata exclusivamente de racionalidade. A incerteza e a surpresa das variáveis orgânicas, pessoais/teóricas e contextuais devem ser consideradas no momento de se estabelecer as expectativas de comportamento.
Assim é que decorar as regras do jogo processual não qualifica o jogador como exímio, embora seja condição de possibilidade. É preciso dominar novos instrumentos, conceitos e categorias. E no processo penal brasileiro não existem, sequer, regras compartilhadas, em face das diversas leituras (in)autênticas do sistema processual. Por isso, além de conhecer a normatividade, o bom jogador precisa dominar os sentidos já dados e saber jogar. É preciso ampliar os horizontes e dominar novas maneiras de inovar, argumentar, enfim, não pode se entregar à mesmice.
É preciso angariar o máximo de informações sobre as variáveis orgânicas, pessoais/teóricas e contextuais dos jogadores, julgadores e do lugar e tempo da partida processual, especialmente dos jogadores diretos (acusação, assistente da acusação, defesa e julgador) e dos indiretos (mídia, grupos de pressão, etc.). O contexto do processo penal singular, ou seja, da partida processual que está em foco, é único. Pode ser influenciada por rodadas processuais anteriores (rivalidade entre os jogadores). Todavia, como partida, será única. Daí que conhecer o passado pode ser importante, mas não é suficiente. O evento processual único é irrepetível (na maioria das vezes) e, portanto, quanto mais se estiver preparado (munido das informações), melhor pode ser o êxito. A verdade processual será cons truída a partir de contingências. Melhor dizendo: de acasos. Pode chocar um pouco essa afirmação. Quem sabe com o tempo o leitor possa se acostumar com as variáveis, categorias que compõem uma decisão judicial.
Pode-se pensar numa decisão penal idealizada, proferida por um julgador situado no plano teórico e com jogadores éticos e cumpridores das normas. Essa visão idealizada, todavia, pode ser encontrada em diversos manuais da graduação. A proposta lançada no Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos é um pouco mais complexa. O modo pelo qual se produz uma decisão é ensinado a partir de uma indução fática, acrescida de uma dedução normativa e, por fim, por uma inferência prática, a ser aplicada no mundo da vida. Esse modelo pressupõe a uniformidade ideológica, teórica, social, recompensas, dentre outros fatores, dos participantes da partida processual. Daí que é preciso aterrar a distinção e trazer a decisão aos fatores reais em que o acontecimento hermenêutico se dá.
O modelo padrão pode funcionar imaginariamente e se desfaz na primeira partida em que se ocupa uma das posições processuais, uma vez que o perfil e motivação dos intervenientes não pode ser dado a priori. É preciso um cotejo preliminar e/ou no decorrer da partida para que, então, possa-se perceber as motivações e, fundamentalmente, as recompensas de cada um dos jogadores e do julgador. O jogo processual penal possui um coeficiente de sorte e de assunção de riscos, de aposta, de tática e estratégia. O resultado é um evento semântico no tempo e no espaço, com personagens portadores de um lugar no mundo. São pessoas de carne e osso que ocupam os lugares e a aproximação delas pode (e na maioria dos casos é) ser inautêntica.
A noção de autenticidade ou não da decisão e do jogo processual pode ser lida a partir da Hermenêutica Filosófica. Ou seja, uma decisão judicial deveria atender ao modelo de coerência e integridade do sistema jurídico, em face de sua autonomia, não se perdendo em pré-conceitos e pré-juízos pessoais. Entretanto, justamente pela crítica empreendida por Lenio Luiz Streck no sentido de que as decisões judiciais são inautênticas, na sua ampla maioria, esse texto, em reconhecendo o fato, promove uma trajetória de enfrentamento. Pode-se pensar e defender decisões autênticas. Enquanto isso não acontece devemos nos preparar para um jogo processual inautêntico. Parte-se dessa constatação: o senso comum teórico (Warat) opera inautenticamente. Daí que se deve preparar e, quem sabe, responder melhor a um jogo muit as vezes viciado.
É preciso entender, desde o início, que no jogo processual não se joga sozinho, mas interagindo-se com jogadores (diretos e indiretos) e com o julgador, todos com as suas regras de bolso, e buscar entender quais as normas daquele jogo, no tempo e no espaço, bem assim as recompensas que cada um busca. Por isso aprender a ler corretamente o contexto, o ambiente, as motivações, pode auxiliar a compreender melhor o jogo e realinhar a estratégia. O processo penal pressupõe certa capacidade de leitura das pessoas e suas motivações, domínio da teoria da tomada de decisão do julgador (o qual se pretende capturar o sentido, em todas as instâncias possíveis), aprender a calcular os riscos das táticas e manter o foco na estratégia de conteúdo variado. Joga-se com blefes, trunfos e time.
Se o leitor quiser buscar ampliar as possibilidades deve ficar atento às novas teorias, tendências da jurisprudência, pressões de gestão de processos dos julgadores e jogadores, avaliando as oportunidades processuais. A habilidade de obtenção de informações e sua utilização podem ser inatas. Mesmo assim a compreensão adequada do modo em que o jogo se reproduz auxilia na obtenção de resultados mais favoráveis. De qualquer forma, tanto na perspectiva dos jogadores, quanto na dos julgadores, adiante todos considerados jogadores latu senso, o domínio de uma nova grelha teórica (teoria dos jogos) e treinamento, podem auxiliar no resultado pretendido, conforme Gregorio Robles. É preciso dominar teoricamente os espaços em que as oportunidades de captura psíquica dos intervenientes do jogo singular. Isso pressupõe dedicação e certo talento para que o raciocínio possa se ampliar e a tomada de decisões sob pressão aconteça mitigando-se o coeficiente emocional. A preparação para o jogo processual e suas diversas possibilidades antecipa os caminhos e auxilia na tomada de decisões durante a partida.
No jogo processual, entendido a partir da metáfora da guerra, existem diversas batalhas. Compreender que se pode ou será necessário perder-se algumas das batalhas sem que a vitória final seja perdida, implica em reconhecer que o jogo processual possui a incerteza como mote. Até o trânsito em julgado pode acontecer um giro de sentido. Caso o leitor não concorde, fique livre para não acolher a perspectiva da teoria dos jogos. A angústia de um jogo manipulado, incontrolável pela autonomia do Direito, em que diversas variáveis roubam a cena decisória será o que se pretende apresentar. Deslocando-se as lentes, quem sabe, sob novas coordenadas simbólicas, poderá ver que no jogo processual é preciso dominar as regras do jogo, o contexto da partida e as possibilidades de compreensão dos jogadores.
Para além da autonomia do Direito, a cultura (jurídico e social) dos ocupantes dos lugares no processo penal (jogadores e julgadores), o espaço físico em que ocupam, no tempo, influenciam as tomadas de decisão. Há sempre um sujeito que interage com o significado do ato e o contexto da decisão. Daí ser multifatorial o mapa de uma decisão judicial, com fatores biológicos, psicológicos, sociais e econômicos, os quais operam no acontecer decisório (Marrafon). E essas variáveis interagem e se influenciam. Pode-se, assim, antecipar as expectativas de comportamento dos sujeitos (reais) intervenientes nas decisões. A ideia é adquirir novas competências e não ter a decisão como uma surpresa, a partir de padrões de comportamento plenamente disponíveis. Daí que a teoria dos jogos pode ser um aliado na compreensão da decisã o no processo penal. E no caso penal, são jogos mortais.

* Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.


Conjur. 29.08.2014.

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