quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Do sistema penal “muy amigo” ao direito penal do inimigo

Nos livros e nas faculdades de direito do Brasil ensina-se que a mentira de que a lei penal é geral, abstrata e igualitária para todos, que o direito penal se aplica aos criminosos sob o império da isonomia, que ele não distingue entre ricos e pobres ou entre poderosos e marginalizados. Nada mais enganoso.
Afirma-se ainda que a Justiça tem venda nos olhos para tratar todos sem distinção, que o juiz é neutro (fazendo incidir a espada da Justiça somente a quem merece), que existe “igualdade de armas” entre as partes nos processos, que os acusados contam com “ampla” defesa, “contraditório real” etc. Na prática, as coisas são bem diferentes.
Confunde-se o “dever ser” com o “ser”. O sistema penal (do Estado de direito – do campo do “dever ser”) está razoavelmente programado para ser tudo quanto está dito, mas, na realidade (na prática), funciona de forma bem diferente: ele é extremamente seletivo e discriminatório. Os réus são tratados de forma bastante diferenciada.
Com base na doutrina de Zaffaroni (El enemigo en el derecho penal, p. 11 e ss.), sabe-se (com apoio em ampla constatação empírica e jurídica) que o poder punitivo estatal sempre discriminou os seres humanos, ora tratando-os como desiguais, ora enfocando-os mais drasticamente como “não pessoas”, ou seja, como “inimigos” (são os entes perigosos ou daninhos e nocivos).
Aprofundando um pouco mais a classificação feita por Zaffaroni diríamos que, na prática (no campo histórico e sociológico reais), temos 5 sub-sistemas penais: 1º) sistema penal “muy amigo”; 2º) direito penal liberal dos iguais (“dos amigos”); 3º) direito penal dos desiguais (dos molestadores nocivos ou daninhos); 4º) direito penal do inimigo e 5º) direito penal do inimigo dissidente. Todas as vezes que alguém lhe dizer que o sistema penal brasileiro é igual para todos, diga que isso não é verdade. E fale dos 5 sistemas reais. Vejamos:
1º) o sistema penal, na prática, é “muy amigo”, desde logo, quando favorece e assegura a impunidade descaradamente de alguns tipos de criminosos (dos poderosos, dos agentes que fazem parte do sistema punitivo, dos influentes: MillôrFernandes dizia que “Presume-se que um homem é culpado, até ele provar que éinfluente” – veja os casos recentes de prescrição de Sarney, Schincariol, Maluf, alguns réus do mensalção mineiro etc.); também se torna “muy amigo” quando, em razão da degeneração do seu funcionamento (morosidade, por exemplo), acaba beneficiando qualquer tipo de criminoso (veja o caso da prescrição, v. G.);
2º) o direito penal liberal dos iguais é o aplicado com atendimento de todas as garantias legais, constitucionais e internacionais; respeitoso (no máximo grau possível) do Estado de direito, incide (com a maior benevolência tolerável) aos considerados iguais, ou seja, aos tratados pelo sistema como amigos, como cidadãos, como “pessoas do bem”; para eles vigora o Estado de direito e o que mais os distingue é a imperiosidade da presunção de inocência, que somente pode ser derrubada mediante provas inequívocas da culpabilidade (provas que vão além da dúvida razoável);
3º) o direito penal dos desiguais é o que dispensa aos molestadores nocivos ou daninhos (osperturbadores da ordem, marginalizados, sem influência, sem poder) tratamento punitivodiferenciado, que consiste na não observância (ou na não observância estrita) das garantias, dos princípios ou dos limites enumerados pelo Estado de direito (ou seja, pelo direito penal liberal); o que os caracteriza não é o tratamento de “não pessoa”, sim, é a presunção de periculosidade, que independe da gravidade do fato praticado (são pessoas presumidas perigosas, pela sua classe social, pela sua origem, pelo seu estilo de vida etc.- veja os casos recentes da subtração de duas galinhas, de 12 camarões, de um par de chinelos etc.);
4º) o direito penal do inimigo é o que trata o selecionado (o eleito pelo sistema como inimigo: traficante, autor de crime hediondo ou crime organizado, terrorista, o marginalizado violento, o pedófilo etc.) como “não pessoa”. Como explica Zaffaroni (El enemigo en el derecho penal, p. 18), “a essência do tratamento diferenciado dirigido ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa, considerando-o exclusivamente sob a perspectiva do ente perigoso ou daninho”;
5º) o direito penal do inimigo dissidente tem conotação política, ou seja, o tratamento diferenciado aqui se volta contra o dissidente político, assim considerado não somente o que contesta o sistema democrático (o poder instituído), senão também o poder socioeconômico e financeiro. O dissidente também é tido como perigoso ou daninhopara o sistema.

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