terça-feira, 26 de agosto de 2014

"Criminalidade não se combate com prisão", diz especialista

Pesquisadora afirma que Brasil é vítima da própria política de encarceramento em massa, que leva à superlotação, ao fortalecimento de facções e a todos os outros problemas das penitenciárias, como a rebelião em Cascavel.
A rebelião na Penitenciária Estadual de Cascavel, no Paraná, voltou a evidenciar os graves problemas do sistema carcerário brasileiro. Pelo menos quatro presos foram mortos, sendo dois decapitados e os outros dois, jogados do telhado.
No telhado da penitenciária, uma bandeira do Primeiro Comando da Capital (PCC) foi hasteada, em mais um sinal de que a rebelião é organizada pela facção criminosa criada em 1993.
Para Camila Nunes Dias, professora de políticas públicas da Universidade Federal do ABC e pesquisadora associada do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da USP, a superlotação é o principal problema nas prisões brasileiras e a origem de todas as outras mazelas do sistema carcerário do país.
Segundo estimativas, o Brasil tem mais de 560 mil presos, mas apenas 360 mil vagas em seu sistema carcerário. "O paradigma de se pensar que nós podemos combater a criminalidade e a violência por meio da prisão precisa ser mudado", diz a especialista, em entrevista à DW Brasil.
Deutsche Welle: Como você avalia as condições do sistema prisional brasileiro?
Camila Nunes Dias: O sistema carcerário brasileiro é terrível nas suas condições estruturais, sobretudo pela superlotação das unidades prisionais. A superlotação é um fator gerador de uma série de outros problemas estruturais, sobretudo as péssimas condições de higiene, alimentação e de permanência nas celas. A superlotação agrava os problemas que já são crônicos no sistema prisional, que não tem investimentos minimamente suficientes por parte do governo. Gasta-se muito recurso público no sistema prisional, mas não vemos qualquer melhoria e mudança em relação ao padrão dessas unidades.
Quais são os principais fatores para tal precariedade?
Uma política de encarceramento em massa que o Brasil adota, seguindo o exemplo de outros países do Hemisfério Norte, principalmente os EUA. O Brasil passou a encarcerar nas últimas décadas muito mais. A taxa de encarceramento relativa quadruplicou nas últimas duas décadas. Essa intensificação das prisões, por mais que o governo gaste recursos na expansão das unidades prisionais, não consegue garantir um controle em termos da relação entre número de presos e de funcionários.
O Brasil tem mais de 560 mil presos, mas apenas 360 mil vagas em seu sistema carcerário
O agravamento das condições das prisões faz com que surjam grupos organizados dentro das prisões. O principal fator que eu indicaria, mais do que a falta do investimento necessário, seria a superlotação.
Falta atenção ao problema por parte dos governos?
Historicamente, a prisão no Brasil é destinada à população pobre. Então os políticos e o governo estão pouco se importando com a condição que essa população será encarcerada. Você tem um segmento populacional que é a clientela das instituições prisionais que, de fato, é uma população que historicamente tem seus direitos violados o tempo todo. As condições das prisões hoje são apenas uma decorrência dessa questão estrutural-histórica, a desigualdade social e de direitos vista no Brasil.
Por um lado, há o avanço da violência e o pedido da população para o aumento das penas. Por outro, a superpopulação prisional e as mazelas carcerárias. Como deve agir o governo?
O paradigma de se pensar que nós podemos combater a criminalidade e violência por meio da prisão precisa ser mudado. É preciso mudar a percepção de que a prisão é uma solução para a violência e criminalidade. Eu entendo que a prisão é a parte central do problema. A prisão é, digamos, um locus a partir de onde a criminalidade se articula no Brasil. Ela não é solução, e agrava os problemas da criminalidade. Tanto que, por conta das prisões no Brasil, é que nós temos hoje as maiores organizações criminosas brasileiras, como o Comando Vermelho e o PCC.
Qual é o papel hoje das facções criminosas dentro dos presídios brasileiros, como Cascavel?
Essas facções representam um problema nacional. A hiperpopulação carcerária leva à formação das facções, ao mesmo tempo em que o Estado não tem condições de manter o controle sobre essa população. As facções, até certo ponto, auxiliam o Estado ao exercerem o controle sobre a população carcerária e organizarem o espaço, que já é caótico e extremamente violento. Os grupos acabam substituindo o Estado na organização prisional.
É um papel ambíguo...
Sim. De um lado, elas acabam fazendo o que o Estado não faz: elas impõem a ordem. Por outro lado, elas se colocam contra o Estado. De vez em quando surgem crises em que, sobretudo em São Paulo e Rio de Janeiro, em que as facções atacam agentes do Estado. Então elas têm esse papel ambíguo: de um lado, elas ocupam o papel do Estado, impondo a ordem e o controle social sobre a população carcerária. Por outro, aparecem como contrapostos ao poder do Estado e efetivam ações contra o Estado.
No cotidiano, os dois são parceiros, porque se não fossem as facções criminosas, o Estado brasileiro não teria condições de encarcerar tantos presos em situações tão subumanas e, ao mesmo tempo, manter a ordem como é mantida nas prisões em São Paulo, por exemplo. De certa forma, esses grupos acabam sendo parceiros do Estado.
A taxa de encarceramento relativa quadruplicou nas últimas duas décadas no Brasil
Como reintegrar um preso que fazia parte do PCC ou outra facção na sociedade, após ele ser libertado?
Isso é um grande desafio. Essa reintegração passa só por processos de conversão radicais, como a religiosa. Mas, no fundo, quando um preso se integra ao PCC, ele faz uma opção pela vida no crime. O que a sociedade e o Estado podem fazer é não dar condições para que isso aconteça. É por isso que falo sobre o desencarceramento. O encarceramento é a condição ideal para engrossar as fileiras das facções, porque é nas prisões que eles recrutam a maior parte de seus membros.
Críticos dizem que a falta de agilidade processual é um dos piores problemas. Muitos detentos ficam vários anos na cadeia sem terem sido julgados. O Judiciário também tem culpa pela situação do sistema carcerário?
O Judiciário é um dos principais responsáveis, já que o sistema prisional apenas administra aquilo que é determinado no âmbito do Judiciário. Ele é um dos principais responsáveis, ao lado, obviamente, do Ministério Público e das polícias.
Quais seriam as possíveis soluções para o sistema prisional brasileiro?
As soluções passam pelo processo de desencarceramento. Isso envolve a adoção efetiva de penas alternativas para crimes de pequena gravidade, como furto e tráfico de drogas; a adoção de políticas alternativas à prisão; tratamentos de saúde para alguns indivíduos que precisam. Esses seriam algumas das soluções possíveis para o sistema prisional.
Eu não vejo solução para prisão a partir da própria prisão. Para mim, não existe solução para prisão ao expandir o número de vagas no sistema prisional, porque os governos vêm fazendo isso há décadas e a demanda só continua crescendo, sem sucesso algum. Os governos constroem vagas para precisar de mais vagas. O caminho possível é o desencarceramento com essas medidas.

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