terça-feira, 24 de junho de 2014

Projeto para desmontar a estrutura da Polícia Civil no Brasil

Polícia Civil I
Está em curso um silencioso projeto de desmontar a estrutura da polícia civil brasileira. O tiroteio não parte do crime organizado, mas surpreendentemente de setores ligados ao Ministério Público. Entendem que os policiais devem se subordinar diretamente aos membros do MP, por ser ele o destinatário das investigações e legítimo para promover a ação penal. Como é preciso superar uma barreira de ordem constitucional, já que as atribuições da polícia estão insertas na Carta de 1988, o caminho para tornar o projeto viável é, gradualmente, interpretar essas atribuições como “concorrentes” (não-exclusivas) e esvaziar as autoridades das delegações originárias.


Polícia Civil II

Recentemente, surgiu uma ‘orientação’ do MPE (146/08), permitindo à polícia militar lavrar ocorrências de menor potencial ofensivo, em nome do princípio da celeridade. Primeiro, recomendações não têm o condão de vincular quem quer que seja; segundo, é uma forma de avançar no naco de atribuições privativas da polícia civil; terceiro, quem lavra o flagrante, caso o sujeito negar-se a comparecer ao Juizado? Também a PM?; quarto, e mais importante, a classificação penal provisória é uma das mais delicadas tarefas da técnica policial civil, variando muitíssimo conforme as circunstâncias, os depoimentos, uma análise minimamente responsável que não cabe à emergência da atuação militar. É de sintonia fina de anos de estudo e percepção.

Polícia Civil III

A busca da celeridade não pode solapar valores constitucionais e mesmo o senso comum de responsabilidade. Não é preciso debater quem é mais e quem é menos preparado, estudado, graduado. Devemos nos poupar dessa argumentação viciada. Muito embora, o delegado de polícia deva ter curso superior, preparar-se para especificidade do trabalho, nem mesmo esse é o argumento central para o debate. Circunscrevemo-nos, isso sim, à deliberada tentativa de desmontar uma estrutura que tem a maior capilaridade no Brasil: a polícia fundamental para a organização social das regiões mais e menos acessíveis. Além disso, o TJ gastou recursos para implementar o TCO virtual, o que seria prejudicado por um atípico conflito de atribuições.

Polícia Civil IV

Os passos do “desmonte policial” são os seguintes: a) tentativa de assumir a investigação por parte do MP; b) tentativa de conduzir investigações em paralelo; b) filtragem de inquéritos policiais que não chegam diretamente ao Poder Judiciário, como manda a legislação; c) intimidações profissionais por meio de intimações para comparecimento de policiais em procedimentos disciplinares que são confundidos com administrativos de controle externo; d) agora, a usurpação da prerrogativa de lavrar o termo circunstanciado em crimes leves; e) sucateamento sistemático do aparato civil, sufocando a polícia ao ponto de tornar inviável e ineficaz o trabalho.

Jekyll & Hyde

Sabendo que o público de um jornal não tem qualquer obrigação de acompanhar questões eminentemente técnico-jurídicas, a proposta da coluna é tentar “traduzir” o que se passa neste cenário. Então, tentarei ser o mais didático. Após um forte lobby na Assembléia Constituinte em 1987/88 (talvez o segundo maior, depois dos ruralistas e empresários, do Centrão), o Ministério Público conseguiu um enorme avanço tanto para si próprio, enquanto instituição, como para a cidadania brasileira, uma vez que a tônica da fiscalização pública passou a ser uma agenda imprescindível.

Antes da Constituição, os promotores estavam atrelados à defesa do executivo. Com a independência funcional, novas missões constitucionais foram atribuídas ao Parquet, diante de uma gigantesca carência de inclusão social de um lado e da moralidade administrativa, de outro. O “fiscal da lei” não queria ficar circunscrito apenas à defesa dos interesses difusos e coletivos, na fiscalização exterior dos órgãos da administração pública direta, indireta e fundacional – era preciso mais e, neste ponto, começam os atritos. A atuação só seria efetiva, caso dominasse o aparelho policial de investigação, reformando o sistema processual e subordinando diretamente a polícia. Passo em falso.


A Constituição de 1988 foi sábia, no entanto. Não só manteve o equilíbrio de poderes (que o Executivo tratou de desarticular), como engendrou um quarto poder não filiado a nenhum dos três – o Ministério Público. Mas fez ainda mais, o aparelho policial mereceu destaque especial, com as atribuições devidamente enumeradas, de ordem exclusiva: a autoridade policial (delegado) investiga e dá andamento aos comunicados de crime, seja de que natureza for. Não foi cedido espaço para que houvesse uma “seleção” do que seria de interesses institucionais. A conveniência pôs um tempero da interpretação: essas diretivas são tidas como “concorrentes” e não “exclusivas”.


O sistema de equilíbrio de poderes é o melhor para uma democracia republicana. A fim de evitar a figura do “promotor parcial” (já que o MP não reconhece a sua parcialidade enquanto acusação, afirmando-se sempre apenas como “parte imparcial”, um paradoxo!), a lógica recomendaria não só o afastamento de membros do Ministério Público das investigações, como a concessão de idênticas prerrogativas aos delegados de polícia. Destarte, teríamos uma acusação que julgaria o trabalho policial de forma desapaixonada e um judiciário ainda mais ao largo. Quanto maior a distância da investigação, melhor. São os filtros de legalidade.


Pode parecer cabotino estar a defender a democracia em detrimento de uma instituição democrática por natureza. Entretanto, em tempos de mordaça, de tutela da imprensa, em tempos de intimidações de advogados com grampos e invasões em escritórios, de divulgação seletiva e blindagem de notícias, ainda resta espaço para sustentarmos abertamente em favor do Dr. Jekyll e rechaçar o Dr. Hyde, ambos dentro do MP.



Extinção da polícia civil


Retrocedamos a 1987. Assembléia Constituinte instalada. Conflito de viés socialista como projeto de organização financeira e social e o parlamentarista, como alvo almejado pela esquerda intelectualizada. Projeto abortado pelo centrão. Fraturas no partido majoritário. Noite das punhaladas. Guerra das garrafadas. Era a História do Brasil se reescrevendo como farsa. O Congresso foi tomado pelo Brasil e seus lobistas sem carteira assinada. Eram vários congressos, tantos quantos os interesses. Emplacar um artigo na nova ordem constitucional: missão dos segmentos. Quando organizados, conseguiam. Muito organizados, iam além.


Comissões, subcomissões, grupos de trabalho. Recortes de dispositivos constitucionais estrangeiros no carpete dos apartamentos funcionais dos congressistas. Trabalho e negociação varando a madrugada. Artigos inseridos na undécima hora. Disposições transitórias-permanentes e permanentes-transitórias. Acomodação geral: tudo estava previsto e todos foram contemplados. E que Deus nos ajude. Só não se sabia ao certo de que forma tudo se ajeitava. Carência de regulamentação. Aparente ineficácia. Troca de acusações: o texto tornava o país ingovernável ou o governo era ingovernável? Coragem e covardia. Trevas e ilustração. Cinismo e verdade. É o Brasil.


Estava dissolvida a ditadura militar. A proximidade dos vinte anos de chumbo era, naquele momento, insuportável. Um dos temas-tabu naquele congresso era a segurança pública. Qualquer menção ao fortalecimento da categoria profissional policial iria frontalmente de encontro à abertura democrática, ressentidos os constituintes da repressão e do exílio. Atividades de inteligência policial, estratégias de investigação de núcleos marginalizados, (re)aparelhamento, modernização e treinamento policial, todos esses assuntos causavam arrepios e eram rechaçados. Afinal, um policial treinado poderia ser mais perigoso do que um néscio. Eram, então, sinônimos polícia e a censura repressiva. Políticos e imprensa com medo. Lembranças do Dops e Doi-Codi.


Gangorra de poderes. Enfraquecida a categoria policial, fortalecido o Ministério Público, após um discreto e poderoso lobby. Périplo gabinete por gabinete. A tese inicial era desvencilhar o MP da advocacia estatal. Rapidamente, evoluiu para garantias funcionais equiparadas às da judicatura e, finalmente, chegaram não só à completa independência institucional, como também inúmeras outras funções. Era o quarto poder. Mas o “poder do bem”. Surgiram os defensores da sociedade, fiscais da lei. De posse deste slogan, o Ministério Público, ao contrário da polícia e das forças armadas, foi adotado como filho querido da democracia, da liberdade, do novo pacto nacional com os critérios do Estado Social dos quais se constituía a nova catequese constitucional.


A polícia ficou sem independência. Sem imagem própria. Tímida, não tinha condições de organizar-se para pleitear nada. Controlar a polícia era essencial para manter os “cães da ditadura” sob controle. Justo por isso, a cargo do Ministério Público ficou confrontar, ainda que externamente, o poder policial. Sobrou uma nesga de garantias, centradas na prerrogativa policial, que é o inquérito policial, tutelado, supervisionado, limitado. Essa dicotomia, espécie de tatuagem ideológica, nunca mais foi removida na mentalidade brasileira – o bem contra o mal. Minguada, humilhada, submetida, à polícia restaram todas as críticas, as denúncias, as desconfianças, despojos das duas décadas de golpe militar. Um “mal necessário”, cujo cidadão teme, desconhece e quer distância.


Atualmente, está em curso um sutil movimento orquestrado de esvaziamento da polícia. O objetivo final é submetê-la, por completo, ao Ministério Público. Como fazer isso, se estão elencadas as prerrogativas das autoridades policiais? É simples. Além de minar a credibilidade da classe, divulgando amplamente imagens negativas, intervindo brutalmente nas questões internas, sucateando a máquina policial investigativa, retroalimentando a frustração social com relação às atividades inerentes dos delegados e seus agentes, as atribuições constitucionais são maliciosamente (re)interpretadas como “concorrentes” e não “exclusivas”.
Lentamente, outras instituições estão abocanhando nacos de atribuições constitucionais. O Ministério Público quer, também, investigar. A Polícia Militar quer, também, lavrar termos circunstanciados. Políticos com propostas ingênuas de integrar as polícias; enfim, um conjunto de medidas de sufocamento policial civil. O ardil está ganhando força. Só que ninguém nota. Se não houver a mínima atenção para o quadro policial civil, brevemente veremos a sua extinção. A fragilidade da polícia gera outros monstros, tão ou mais perigosos que os porões militares. São piores porque aparentemente são legítimos. O centro gravitacional quer se tornar um buraco negro e a polícia civil, depois de enfraquecida, será apenas um satélite a ser engolido.


Sobre o autor
Eduardo Mahon é Advogado

Colaboração das Diretorias integradas da Adepol e Sindepo



Nenhum comentário:

Pesquisar este blog