segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Qual a cor do cavalo branco de Napoleão?

A prova testemunhal

Antes de continuar a ler o artigo, por favor, veja o vídeo. 


A construção de um processo penal em que as pretensões de validade dos jogadores (acusação e defesa) possam ser verificadas pela prova judicializada, ou seja, a produzida mediada pelo magistrado, encontra dificuldades em diversos momentos. Na graduação não se aprende “como se pergunta”. Observando ou participando de jogos processuais o jogador vai aprendendo, no dia-a-dia, as maneiras de se perguntar. Pode-se dizer, todavia, que na maioria dos foros a produção acontece de maneira contaminada.
Como o declarante deve narrar somente o que viu, ouviu ou sentiu, desde seu lugar, o relato deveria ser fragmentado. Quando a narrativa é muito completa, por certo houve o acréscimo de informações de terceiro, mídia etc., pelo qual o sujeito pode narrar uma história com início, meio e fim. Esse modelo pode aparentemente seduzir, mas é o sintoma de que o sujeito diz mais do que viu, ouviu ou sentiu. E isso pode ser grave. Além disso, podem ocorrer ilusões cognitivas, ou seja, a percepção é alterada por erros de perspectiva. No caso do Gorila Invisível, os observadores se focam na missão dada e a percepção é parcial. Logo, a prova testemunhal é a visão de uma perspectiva da conduta, não é onisciente, nem onipresente. Salvo quando o sujeito assistiu à cena desde o início e acompanhou o desenrolar, situação rara, o depoimento crível é fragmentado, embora depois narrado como se fosse uma história linear. De histórias completas deve-se desconfiar e se buscar maiores comprovações.
Não é jogo de memória rápida
A testemunha/informante não é convocada para participar de um jogo rápido de memória, ou seja, não se pode ler a denúncia e/ou o depoimento prestado na fase preliminar e depois perguntar-se o que ela sabe do caso. Isso é doping, jogo sujo, embora realizado na maioria dos foros. Evidentemente que a testemunha, mormente quando policial, deve ser situada no tempo e no espaço da ocorrência, eventualmente com os parceiros da ação, mas jamais nos detalhes que transformam seu depoimento num espetáculo da sugestão. Assim é que se o jogador quiser ler a denúncia ou depoimento, nos termos do artigo 212, do Código de Processo Penal, a sugestão é manifesta e deve ser impugnada. Insistida na ação, a credibilidade do depoimento, no momento da valoração, desfaz-se. Não se tratou de um depoimento, mas sim da antecipação das respostas que deveriam ser dadas para o fim de se obter a vitória.

Para realizar, contudo, a impugnação de perguntas, não é preciso ser agressivo ou ostensivo, dado que pode gerar certo desconforto e antipatia. Daí que um pouco de elegância faz bem no momento de se impugnar uma pergunta, até certa dose de criatividade. Por exemplo, quando o acusador, antes do depoimento da testemunha/informante, quiser ler a denúncia ou o depoimento da fase policial, ambas situações ilegais, já que sugestionam e induzem as respostas, pode-se impugnar com base no artigo 212 do CPP ou indagar: “é um teste rápido de memória?” Claro, eu leio o que o outro irá responder em cinco minutos. Isso é uma fraude. Evidentemente que a testemunha/informante pode ter dificuldades para se recordar de tudo e as perguntas podem, eventualmente, ser fechadas. Mas a prova testemunhal não é check list: sim e não. Perguntas no estilo: o acusado atirou, né? A arma era um .38? Havia 34 petecas de crack? São perguntas abusivas, de quem joga sujo, mesmo sem se dar conta. Verdadeiro doping processual. Deve-se situar o depoente no tempo, no espaço e no tocante aos personagens, a saber, “o senhor foi chamado para depor sobre um furto acontecido em 12 de março de 2013, na Rua Manuel Cardoso, 23, centro, nesta cidade, em que figuram dois acusados, tendo atendido a ocorrência como policial”. Nada mais, nada menos. O depoente pode, com isso, recordar-se ou não. O mais bizarro é mostrar o que disse na fase policial e perguntar se assinatura é do depoente. Não, ele fraudou a assinatura? Isso significa querer requentar o depoimento frio, “como se” tudo que não se disse antes pudesse ser trazido para o processo penal em contraditório. Não. A testemunha não lembra. Esse é o preço do processo penal democrático. Se for para valer o que se disse na Delegacia de Polícia paremos com o retrabalho — não tenho outro termo — de fingirmos que repetimos em juízo. A reserva da Jurisdição é justamente o que diferencia o depoimento para fins exclusivos de justa causa e o que serve para condenação, dado que é o contraditório que o legitima. Parece difícil dizer o óbvio.
Depoimento policial
A tática com testemunha policial é a de explorar o máximo possível, para além do que está escrito no depoimento policial. Não raro os policiais que conduzem o flagrante e prestam declarações, especialmente no caso da Polícia Militar, não são os oficiais, mas os praças. Muitas vezes estavam na condução da viatura, fazendo a segurança do perímetro, mas aparentemente narram os fatos de maneira completa. Muitas vezes embora sejam dois a prestar depoimento, são tão parecidos que parecem ter sido apresentados em coro. Bom, como o Estado não pode(ria) ser fraudulento, a tática de indagar o que foi explicitado na Delegacia de Polícia ou apontar contradições demanda certo cuidado. Os agentes sabem o que é preciso dizer para corroborar os depoimentos pela prática e, para qualquer pergunta além do que está dito, soltam um “não me recordo/lembro, são muitas ocorrências... faz tempo”. Quanto mais respostas como estas, mais fácil demonstrar a inconsistência do depoimento e enfraquecer a prova. Uma das táticas é a de explorar o máximo este não saber. Cuidado: as perguntas devem ser pertinentes e não: qual a cor da camisa do acusado? Para que o depoimento perca credibilidade é necessário que não se recorde de temas convergentes e não acessórios. Ademais, o depoimento dos policiais é recorrente. Para além da discussão se vale ou não vale, algo da ordem do bizarro, pois genericamente vale, devendo-se apurar no processo singular, o que muitas vezes se capta é a ilusão da repetição. Em cidades maiores isso não ocorre com frequência, mas em cidades menores, os mesmos policiais são ouvidos diversas vezes e, assim, um depoimento pouco/muito crível acaba contaminando os futuros. É um código não dito. Os jogadores e julgadores conhecem os policiais que atuam e formam ilusões ex ante sobre a credibilidade dos depoimentos em face das experiências passadas.

Falsas memórias
A falibilidade da memória humana, da sugestão, da manipulação e dos equívocos, é tema cada vez mais presente no campo do Direito, especialmente pela interlocução com outros campos do saber, particularmente psicologia e a neurociência. A memória se articula entre aquisição, armazenamento e lembrança/recordação. Degrada-se pelo fator tempo e outras causas internas/externas. Não se trata de relatos mentirosos, inventados, mas de testemunhos em que o declarante acredita, de fato, que está dizendo a verdade. Entretanto, por diversos mecanismos de sugestão, esquecimento, as falsas memórias se fixam e são afirmadas com certeza lancinante. As falsas memórias podem ser definidas como recordações de eventos que não ocorreram e que, todavia, passaram a ser realmente vividos como verdadeiros no imaginário dos declarantes (assista o vídeo de Elizabeth Loftus abaixo).

Podem ter sido criadas pela mixagem entre recordações verdadeiras e sugestões de terceiros, dolosas ou não. De regra surgem de maneira espontânea ou são implantadas/sugeridas. Daí que sendo a prova testemunhal uma das mais utilizadas, não se pode descartar os efeitos das falsas memórias, especialmente no depoimento infantil e nos reconhecimentos[1].
Sobre reconhecimento vale destacar que, segundo Giuliana Mazzoni, cerca de 76% dos casos de reconhecimento em linha de investigados (colocam-se em linha, lineup) são falsos, dado que as pessoas reconhecem como culpável o que mais se assemelha com o agente, e não necessariamente o autor da infração[2]. Nos casos em que nem mesmo linha é feita e apenas apresentado um investigado, o reconhecimento falso e a fixação das faltas memórias é bem possível. Cristina di Gesu discorre a respeito da possibilidade de ocorrência de sugestionamentos quando dos reconhecimentos operados em procedimentos criminais, a saber: “Um caso típico — não incomum nos processos criminais – acerca da percepção precedente diz respeito à recordação da fotografia de uma pessoa, vista em um álbum como sendo o autor do fato, quando na verdade não o é. Melhor dizendo, a vítima/testemunha recorda, na verdade, da fotografia que observou no álbum e não do suspeito em si (STEIN, BRUST, e NEUFELD, 2010, p. 22), gerando um enorme e gravíssimo equívoco. Embora seja um importante meio probatório do processo criminal, o reconhecimento não deve ser usado como a única prova para obter a condenação, pois fomentador de inúmeros erros. Assim, consoante explica GIACOMOLLI (2011, p. 155), a memória do reconhecimento é uma das formas mais estáveis de lembrança, permanecendo inalterada por duas semanas. Excetuando-se algumas interferências, diferencia-se da memória evocativa, isto é, aquela verbalizada através da descrição do fato delituoso e de seu autor. Nessa senda, a memória é muito mais exigida no que diz respeito à descrição do que em relação ao reconhecimento, pois neste ato o reconhecedor realiza uma espécie de juízo comparativo ou ‘juízo relativo’, no qual há confronto e seleção, dentre as pessoas exibidas, daquela que mais se parece com a recordação que tem do imputado.”[3] Assim é que a aposta na prova testemunhal precisa ser revista, ainda que signifique deixar a posição confortável de ingênuo.
Sobre os manuais de Direito
Nas colunas anteriores, fiz fortes críticas ao modelo de ensino jurídico e ao que denominei deoabtização dos cursos de Direito (clique aqui para ler). Quero sublinhar duas questões. A primeira é que existem trabalho que se propõem a funcionar como resumos da temática e são muito bem organizados. Prometem e cumprem a finalidade. Não se pode exigir mais do que se propõem. Dentre eles, vale destacar, Pedro Lenza (Direito Constitucional), o qual possui trajetória acadêmica e promete um livro específico (para exames e concursos público), sem deixar de indicar o objetivo, nem de reconhecer que é necessário estudar outros autores (Canotilho, Lenio Streck, Ingo Sarlet, Paulo Bonavides, dentre outros). Assim é que a segunda questão passa pelos autores que prometem a completude, a totalidade, mesmo sabendo que isso é impossível. Reside aí o maior problema. Caso queiramos tomar o primeiro contato com uma cidade, por exemplo, numa viagem de três dias, um bom Guia de Turismo resolve. Entretanto, para se conhecer a cidade, o trajeto do Guia pode ajudar, mas é preciso mais tempo e disposição. É justamente sobre esse ponto que não se pode tomar um Guia por um Tratado, nem muito menos confundir um city tour com morar na cidade. É comum os pacotes de viagem oferecerem Europa em 14 dias. Alguém acredita, mesmo, nisso. Daí que é preciso separar o joio do trigo. O livro que se propõe a ser um guia é isso e nada mais. Não se pode pedir mais do que se propõe a dar. Daí que Sandro Sell, professor em Santa Catarina, com razão, afirma que os novos manuais criam doutrina própria, ex nihil, com novas e mirabolantes classificações, sem sentido, com dois objetivos: a) objetivo imediato: atormentar os alunos nas provas; b) objetivo mediato: cair num concurso e virar doutrina oficial.

Em tempo: se te pergunto qual a cor do cavalo branco de Napoleão, respondes o quê?

[1] AVILA, Gustavo Noronha. Falsas Memórias e Sistema Penal: a prova testemunhal em xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013; IZQUIERDO, Ivan. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2006; PISA, Osnilda; STEIN, Lílian Milnitsky. Entrevista Forense de crianças: técnicas de inquirição e qualidade do testemunho. Revista Ajuris. Vol. 33, nº 104. Porto Alegre: dezembro de 2006; STEIN, Lílian M., Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed, 2010.
[2] MAZZONI, Giuliana. Se puede crer a um testigo? El testimonio y las trampas de la memoria. Trad. José Manuel Revuelta. Madrid: Trotta, 2010, p. 149.
[3] DIGESU, Cristina. Boletim Informativo IBRASPP – ano 03, n. 04. Janeiro de 2011.
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Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Revista Consultor Jurídico, 22 de fevereiro de 2014

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