sábado, 25 de janeiro de 2014

Julita Lemgruber: 'O problema é o abuso da droga'

Rio -  Julita Lemgruber não foge à polêmica. Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Cândido Mendes e ex-diretora do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio, a socióloga apoia a descriminalização das drogas como a única forma de melhorar o caótico sistema prisional do país. Ela afirma que a imensa maioria dos presos por tráfico é de pessoas sem a menor importância na cadeia do negócio. Ao chegarem aos presídios, elas se ‘diplomam’ no crime organizado. Julita defende a revisão da Lei 11.343 e garante que hoje, no Brasil, apenas negros e pobres são presos por tráfico. “Quem tem dinheiro escapa como usuário.”
Foto: Fabio Pozzebom
Foto: Fabio Pozzebom
O DIA: A senhora é favorável à legalização das drogas. Por quê?


JULITA: Acho que as drogas foram usadas sempre por diferentes sociedades, em diferentes momentos da humanidade, seja ritualisticamente, seja recreacionalmente. É uma ilusão acreditar ser possível um mundo sem drogas. Esta é uma questão de saúde pública, o uso e o comércio de drogas não podem ser tratados como temas da Justiça criminal. É melhor tratar isso de forma a causar menos danos à sociedade. O problema não é o uso, é o abuso da droga. Muita gente consome droga socialmente sem problema. O problema é quando se torna um consumo compulsivo e abusivo. O álcool também é droga, mas a gente aceita naturalmente. Semana passada uma pesquisa mostrou que o álcool é o grande vilão da saúde pública do Brasil, nas emergências, nos acidentes de trânsito, mas este não é um tema de polícia. Hoje o governo encara de frente o consumo do tabaco, há campanhas de prevenção, de esclarecimento, sobre o uso do cigarro. Nos últimos 20 anos caiu o consumo, mas por pressão social. Quem tem coragem para puxar um cigarro dentro do restaurante? Por que não podemos fazer o mesmo em relação às drogas? Precisamos reduzir os danos e prevenir o uso abusivo.



Não seria muito caro?



Os Estados Unidos gastam US$ 50 bilhões por ano na guerra às drogas. No entanto, esta política, que começou há mais de 40 anos com Nixon, não surtiu efeito porque as drogas lá, hoje, continuam acessíveis, e em qualquer pesquisa de opinião pública os jovens dizem que é mais fácil comprar maconha do que álcool. As drogas estão mais acessíveis, com o mesmo preço e mais puras. É o maior exemplo do fracasso da guerra contra as drogas. E se, em vez de investir bilhões na guerra, investíssemos em prevenção e redução do uso? Viveríamos numa sociedade mais segura.



O sistema prisional brasileiro está em vias de colapso, e o número de pessoas presas ligadas ao uso de drogas cresce exponencialmente. Qual o impacto da descriminalização?



Os EUA têm a maior população de presos do mundo, com 750 por 100 mil habitantes. São 2,5 milhões de pessoas, grande parte por crimes ligados a drogas. Tanto lá quanto aqui, a grande maioria por crimes ou é de usuários ou de pequenos traficantes. No Brasil, você tem meia dúzia de grandes traficantes. A imensa maioria dos presos por tráfico no Rio é garotada que está na ponta da estrutura do negócio, que não tem poder e que é substituída com rapidez quando presa. Aí eles vão se diplomar dentro da cadeia com as quadrilhas. O Brasil tem cerca de 130 mil presos ligados a drogas numa população carcerária de 540 mil. São pequenos traficantes. E ainda há muita gente presa por praticar crimes sem violência, como os crimes contra o patrimônio, para alimentar sua dependência química.



A lei de 2006 acabou com a prisão por uso e pune apenas o tráfico. Resolveu?



É uma lei perversa. Ela trouxe a ideia de que o consumidor não deveria ser punido por prisão, mesmo continuando sendo crime. O que aconteceu? A legislação endureceu a pena para os traficantes, mesmo para o pequeno traficante, e as possibilidades de progressão de regime se reduziram. Esta legislação não estabelece a quantidade para diferenciar consumidor e traficante. Com a Lei 11.343, o Brasil despenalizou o uso de drogas, livrando da prisão quem for considerado consumidor. No entanto, diz o Artigo 28: ‘O juiz atenderá a natureza e a quantidade da substância apreendida no local e as condições em que se desenvolveu a ação’. Quem acompanha o sistema criminal sabe que isso é uma brecha para rotulagem segundo atributos econômicos e sociorraciais, que tem levado jovens pobres, negros e sem recursos para pagar a advogados ao encarceramento por tráfico, enquanto jovens com a mesma quantidade de drogas, mas mais bem situados, são enquadrados como usuários.



Como reduzir essa desigualdade de tratamento?



Na medida em que a lei não define a quantidade claramente, abre espaço enorme para o arbítrio da polícia e do Judiciário. Esta é a questão. Precisamos mudar a lei. A luta pela descriminalização vai cumprir várias etapas e primeira é alterar esta lei, no sentido de definir a quantidade.



Voltando à questão do sistema prisional, há um cálculo de quantos podem sair da cadeia?



Não vai sair ninguém, mas vai impedir que o número continue a crescer. A população prisional no Brasil triplicou nos últimos 15 anos e a condenada por tráfico triplicou em cinco anos. O número de mulheres presas duplicou. As mulheres, em geral chefes de família, são 6,3% da população de presos, mas são 14% da população por tráfico de drogas. Com quem vão ficar estas crianças? A velocidade dos acontecimentos é assustadora, e é isso que a gente precisa frear.


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