segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Abrindo a caixa de Pandora: violências diárias do sistema prisional brasileiro

“Eu? Eu tenho uma bíblia véia, uma pistola automática e um sentimento de revolta. Eu tô tentando sobreviver no inferno” Racionais MC’s



Pessoas decapitadas, pernas dissecadas, corpos furados: as imagens que circulam na mídia sobre a situação carcerária no Maranhão remontam a um enredo de filme de terror. Tal situação faz com que a maioria das pessoas, com auxílio de uma mídia enviesada, partam dessa cena com a velha imagem de que há pessoas naturalmente más, “monstros humanos” que não merecem piedade, porque utilizam abertamente da violência. A barbárie vista em Pedrinhas pode ser vista, na verdade, como uma derivação de uma primeira violência, uma violência social com respaldo institucional, anterior até à brutalidade do sistema prisional e de suas violações sistemáticas.
Diante desse contexto, o perigoso discurso de humanização do cárcere vem ganhando força na sociedade e nos poderes executivo e judiciário, como uma possível solução da crise vivida em Pedrinhas e no restante das penitenciárias brasileiras. No Maranhão, a Justiça determinou a construção de presídios no prazo de 60 dias, de maneira que o estado possua vagas suficientes para a quantidade de presos, o que resolveria o problema da superlotação. Além disso, muitos apontam como necessária a garantia de condições mínimas de cidadania à população carcerária e a aplicação de penas alternativas, o que também ajudaria a diminuir a violência dentro das prisões.
Contudo, é importante pontuar que tais medidas se mostram equivocadas, quando se tem em vista que a verdadeira função do cárcere não é a ressocialização. Ao contrário, a prisão cumpre o papel de depósito da população marginalizada, agindo como um verdadeiro controle dos corpos das pessoas negras e pobres. Assim, a política criminal do Brasil, que segue o modelo de encarceramento em massa dos Estados Unidos, suplantou de forma progressiva a política social como resposta à crescente desigualdade social, desemprego e pobreza. O cárcere atua, então, como mecanismo de gestão da miséria produzida e fortalecida pelo sistema capitalista, ocultando os problemas sociais.
Para além disso, a situação em Pedrinhas é, na realidade, resultado de um etiquetamento contínuo da imagem de inimigo que a parcela negra e pobre da sociedade, consequentemente alvo do sistema penal, sofre. A questão é que vivemos em uma sociedade que brutaliza as relações sociais e escancara a dissimetria de classes, que operacionaliza a criminalização da pobreza e institucionaliza o racismo não só a partir da seletividade penal e do encarceramento em massa, mas também por um etiquetamento contínuo da imagem de inimigo que essa parcela da sociedade diariamente recebe, fora do sistema penal propriamente dito. Temos como exemplo a proibição de frequentar determinados espaços porque a classe média e a elite classificam como pessoas com “cara de bandido”, situação essa verificada nos recentes “rolezinhos” ocorridos nos shoppings, fenômenos também marcados pela injustificada e desproporcional intervenção da polícia militar. Outro exemplo é da população negra e marginalizada ser constantemente revistada nas ruas por conta dessa imagem imposta, além de ser violentada na revista vexatória, quando tem algum parente preso, especialmente em relação às mulheres, oprimidas em razão da cor, da classe social e do gênero.
Ainda, apesar de haver na legislação brasileira mais de duzentos crimes previstos, a imagem do criminoso, alavancada pela lógica punitivista ao patamar de “inimigo social”, é quase sempre atribuída à população negra e economicamente marginalizada, geralmente responsável pelos chamados crimes patrimoniais e de pequeno tráfico de drogas. Não coincidentemente, é essa mesma população, violentada por uma sociedade historicamente racista e elitista, que exclui de espaços públicos e culturais aquelas e aqueles que em sua concepção são “marginais”. Esse grupo também é violentado pela negligência de um Estado neoliberal incapaz de garantir direitos fundamentais previstos na própria Constituição brasileira. Selecionado pelo sistema penal para se amontoar nos presídios, cuja realidade, normalmente distante e invisível aos olhos dos autoproclamados “cidadãos de bem”, é escancarada a cada grande episódio de rebelião. A questão, portanto, é anterior ao debate de “enfrentamento da criminalidade”. Para que tragédias vivenciadas em Pedrinhas e em outros massacres silenciosos não voltem a acontecer, é necessário uma mudança brusca em como a sociedade lida com as diferenças sociais e raciais, em paralelo com uma mudança na política criminal atual que ainda prega a falácia da ressocialização como desculpa para a contenção social.
Assim, entendemos que não deve ser criada nenhuma vaga a mais no sistema carcerário. A construção de presídios, embora em um primeiro momento possa ser vista como solução para inúmeros problemas vivenciados no cárcere, nada mais é do que a expansão do poder punitivo, por meio do fortalecimento da política de encarceramento em massa e da gestão da miséria. A Agenda para a Política Prisional, escrita pelos movimentos das Mães de Maio, Pastoral Carcerária, Instituto Práxis e Margens Clínicas, aponta inúmeras medidas cabíveis na contenção do encarceramento em massa. Dentre elas não se encontra a aplicação de penas alternativas, por exemplo, mas sim a abolição da pena de prisão em crimes de menor potencial ofensivo, bem como nos delitos punidos com detenção, nos crimes de ação penal de iniciativa privada, de perigo abstrato e nos delitos desprovidos de violência ou grave ameaça, além da legalização das drogas. Tais medidas, embora insuficientes, já seriam importantes conquistas na luta pela reversão do encarceramento em massa e da criminalização da pobreza.
Por fim, é importante ressaltar o papel central dos movimentos populares na luta contra políticas neoliberais e no combate ao racismo e à criminalização da pobreza, para que obtenhamos reais avanços na questão carcerária brasileira. Nesse sentido, o movimento estudantil tem um importante papel, devendo somar forças nas lutas. Contudo, jamais deve se manter no papel de protagonismo, o qual deve ser exercido pelos verdadeiros sujeitos políticos do processo: a classe oprimida.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog