terça-feira, 17 de setembro de 2013

Zaffaroni, um mestre para nosso tempo



O Professor Zaffaroni(na foto) é um desses indivíduos que se tornaram grandes por se fazerem pequenos. Ministro de corte suprema, um dos maiores especialistas mundiais em direito penal, sábio em filosofia e conhecedor de sociologia, ele bem que poderia se apresentar como a solução para muitos dos problemas contemporâneos. Poderia dizer: “Eu tenho a fórmula”. Mas não. Ele prefere comparar-se a um açougueiro que só entende de seu pequeno comércio e tipos de carne. A carne que ele vende é o direito penal e suas penas. E esse produto não serve – ao contrário do que se pensa habitualmente – para resolver a questão da criminalidade. Isso mesmo, o direito penal é, em grande parte, uma fraude: ele se diz útil para o que não é. E Zaffaroni não pretende compartilhar desse blefe, típico dos juristas de mídia. Por isso gosta da metáfora do açougueiro: quem só entende de carnes não deve andar por aí dando palpites sobre vinhos. Se o problema é combater a criminalidade, o penalista sensato tem pouco a dizer.
Como comerciante honesto, se alguém chega e diz: “Açougueiro Zaffaroni, eu queria uma pena criminal para combater o terrorismo, qual o senhor sugere?” “Nenhuma” - responderia o mestre portenho - “as penas não servem para isso e não vou lhe fazer uma venda enganosa. “Então” – continua o esperançoso freguês – “de cá uma pena para resolver a criminalidade no Brasil que está descendo dos morros e atacando nossas cidades.” O estoque de Zaffaroni também não teria como atender a esse pedido. “Meu caro freguês” – diria talvez Zaffaroni – “a única coisa que eu posso lhe informar é que você entrou no estabelecimento errado. Esse é um açougue de direito penal. Você me trouxe um menu de problemas: terrorismo e delitos causados pelos desequilíbrios sociais. Eu vendo penas e, como especialista, posso lhe afirmar: meu produto não serve para os seus problemas, que são sociais e não jurídicos.”
Assim como o doente em busca de analgésico deve dirigir-se à farmácia e não ao açougue, os políticos assustados com a criminalidade devem ir atrás de soluções efetivas e não ao balcão das soluções juríco-penais. Neste não se vendem tais soluções, mas apenas discursos fantasiosos, porém, desgraçadamente, de grande apelo eleitoreiro. Não é à toa que a lei dos crimes hediondos e toda essa série de leis mais duras, ultimamente implantadas no Brasil, não nos deram uma sociedade mais segura. A solução do açougueiro-penal não se aplica a problemas sociais. Quem quer eliminar a criminalidade brasileira via pena criminal está delirando, é mal informado ou é cúmplice da visão estúpida que criminaliza uma parte da sociedade (os mais pobres) para dar uma falsa sensação de segurança aos mais ricos.
O direito penal deveria ser reduzido ao mínimo, pensa Zaffaroni. Quem sabe ter em nosso código penal apenas 20 ou 30 delitos, com os quais todos estivéssemos de acordo e nada mais. O resto é “fantasia tipificada”: desejo de solucionar problemas sociais mediante a criação de novos tipos criminais. Exemplificando: não é com o endurecimento das penas para os camelôs que resolveremos o problema da falsificação do novo programa da Microsoft ou das Bolsas Louis Vuitton. O problema não é penal. Mas sim, no primeiro caso, do monopólio de soluções em informática mundial nas mãos de umas poucas empresas das quais somos todos reféns. E é por isso que cedemos lugar ao atravessador “camelô”, que, em geral, sequer faz uso pessoal da mercadoria ilegal que vende. Está lá para servir a uma outra classe social (a mesma que pede penas mais duras para os falsificadores!). A Microsoft & cia, mediante não apenas competência, mas também a práticas comerciais duvidosas, inviabilizou a concorrência na área de softwares e nos tornou reféns de seus produtos. Colocar o camelô na cadeia não resolverá esse dilema entre os direitos de acesso público aos bens de informática e os direitos autorais e comerciais das empresas que os produzem. Tal dilema deverá ser resolvido em outra instância, e não no açougue do penalista.
Sobre a falsificação de bolsas Louis Vuitton e assemelhados, o problema é fashion, mas não menos sério. Só não é criminal. A questão de base é: como uma empresa como essa consegue convencer o consumidor de que a bolsa que produzem vale algo em torno de 10 mil reais? Somente se aproveitando da ingenuidade do consumidor, induzindo-o ao absurdo consumo, mediante produções de marketing hollywoodianas. Se a bolsa Louis Vuitton custasse o que ela vale em termos de uso, não seria falsificada, pois seu preço cairia drasticamente, ainda que pudesse ser um pouco mais elevado, em função de uma alegada maior qualidade. Mas qualidade, em geral, não se falsifica, o que se falsifica é o status, a etiqueta. Se a L. Vuitton quiser se livrar das cópias de seus produtos, basta que venda – ainda com fabuloso lucro – suas bolsas pelo preço que elas efetivamente valem, e não pelo que induziram o compulsivo consumidor a pagar. Não adianta pôr o falsificador na cadeia (resposta penal), a solução é outra. Deixem em paz o açougueiro penal.
Idéias como essas são típicas de Zaffaroni. Um dos poucos juristas de primeira linha que não se renderam ao charme e prestígio que dá falar apenas o que agrada ao público pagante. Não, Zaffaroni é irritante. Desagrada o penalista tradicional, a polícia e muitos de seus colegas juízes. Talvez por isso é que, há pouco em Buenos Aires, quando procuramos os livros dele nas maiores livrarias da capital Argentina, não encontramos. As prateleiras das livrarias portenhas, lotadas de autores brasileiros como Lair Ribeiro e Paulo Coelho e de americanos, como Dan Brown e Sidney Sheldon, não tinham espaço para Zaffaroni. "Podemos consegui-lo em três dias", diziam os livreiros. Como se vê, lá, como aqui, a ignorância é pronta-entrega, já a sabedoria só sob encomenda. Deveria ter tentado no açougue.

Texto publicado em 2006.

Para saber mais:
ZAFFARONI, E. R. Em busca das penas perdidas.
ANDRADE, V. R. P. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal (livraria do Advogado). 

Sandro Sell

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