terça-feira, 27 de agosto de 2013

Sessão com Dilma e projetos na pauta marcam 7 anos da Lei Maria da Penha

Cintia Sasse e Ricardo Westin
O Congresso aprovou em 2006 uma das leis mais ousadas do mundo na proteção das mulheres contra a violência doméstica. Os senadores e deputados, porém, não deram a missão por cumprida. Nos últimos meses, percorreram o Brasil para verificar os resultados práticos da Lei Maria da Penha. A investigação, recém-concluída, revela uma realidade estarrecedora: o rigor previsto na lei não é cumprido à risca pelo poder público e, como resultado, brasileiras continuam sendo brutalmente espancadas e mortas por seus companheiros.
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Mulher vítima de violência refugiada com a filha numa casa-abrigo pública do DF: Lei Maria da Penha completa sete anos Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
O presidente do Senado, Renan Calheiros, entregará hoje à presidente Dilma Rousseff uma cópia do relatório final da CPI da Violência contra a Mulher — um documento de mais de mil páginas que condensa os 16 meses de investigação. Dilma estará no Congresso às 11h, convidada para a sessão solene pelos sete anos da Lei Maria da Penha.
Além disso, 7 dos 13 projetos apresentados pela CPI para aperfeiçoar a legislação constam da pauta de votações do Plenário do Senado.
A Lei Maria da Penha prevê a criação de delegacias, promotorias, defensorias públicas e juizados dedicados exclusivamente à violência doméstica. Esses serviços, porém, são escassos.
A CPI descobriu que cada estado tem, em média, só 19 delegacias da mulher. Na delegacia da mulher de Manaus, por exemplo, a CPI contou 4.500 inquéritos engavetados. Faltam agentes para tocá-los. Em razão do acúmulo, crimes caducam sem chegar à Justiça. Em Boa Vista, a delegacia da mulher não tem telefone.
No Brasil, boa parte dos casos de violência doméstica precisa ser denunciada em distritos policiais comuns, onde os oficiais não têm treinamento para acolher a mulher violentada. Por vezes, o depoimento é marcado para dias mais tarde — o que é considerado arriscado, já que podem voltar a ser atacadas.
Norma ignorada
A mulher agredida tampouco encontra amparo adequado na Justiça. O número de juizados de violência doméstica é ainda mais baixo que o de delegacias. A CPI encontrou em cada estado, em média, três juizados. Estão concentrados nas capitais. E contam com pouquíssimos juízes e funcionários. Isso tem duas consequências desastrosas. A primeira é que os processos se acumulam e as sentenças são proferidas tarde demais. Em Minas Gerais, os três juizados contabilizam juntos 58 mil processos. A segunda é que muitos casos têm de ser julgados por varas criminais comuns, que nem sempre estão preparadas para as mulheres violentadas. Há juízes que interpretam equivocadamente a Lei Maria da Penha ou a ignoram. Em 2007, o juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues, de Sete Lagoas (MG), escreveu numa sentença que a lei era um “conjunto de regras diabólicas” e “o mundo é e deve continuar sendo de prevalência masculina”.
— Algumas mulheres preferem ficar caladas e não denunciar seus agressores porque não confiam na rede de atendimento, acreditam que não serão protegidas. Em muitos casos, elas têm razão — diz a senadora Ana Rita (PT-ES), a relatora da CPI mista. A presidente foi a deputada Jô Moraes (PCdoB-MG).
De tempos em tempos, casos de violência contra a mulher ganham o país. Em 2000, o jornalista Pimenta Neves matou a ex-namorada Sandra Gomide, também jornalista. Em 2005, o cantor e apresentador Netinho de Paula agrediu a companheira — ela disse que foi socada no rosto; ele, que a esbofeteou. Em 2008, o ator Dado Dolabella atacou a atriz Luana Piovani, então sua namorada. Em 2010, o goleiro Bruno foi acusado de encomendar a morte da ex-amante Eliza Samudio — ele foi condenado.
Trata-se de uma “arraigadíssima tradição patriarcal”, segundo a historiadora Mary del Priore:
— Na Colônia, no Império e até nos primórdios da República, a função jurídica da mulher era ser subserviente ao marido. Da mesma forma que era dono da fazenda e dos escravos, o homem era dono da mulher. Se ela não obedecia, sofria as sanções.
A vida do Brasil colonial era regida pelas Ordenações ­Filipinas, código legal que, entre outros pontos, assegurava ao marido o direito de matar a mulher caso a flagrasse em adultério. Podia matá-la por mera suspeita de traição.
Na República, as leis continuaram reproduzindo a ideia de que o homem era superior. O Código Civil de 1916 dava à mulher casada o status de “incapaz”. Só podia trabalhar se tivesse autorização do marido.
— O Brasil de hoje não é o do passado, mas o controle do homem sobre a mulher persiste na memória social — explica a antropóloga Lia Zanotta, da Universidade de Brasília (UnB).
Não existe um perfil típico do agressor nem da agredida. A violência doméstica não tem classe social. Ocorre nos bairros nobres e nas favelas. Não tem escolaridade. Humilha tanto as pós-graduadas quanto as que mal assinam o nome. Não tem raça. Fere brancas, negras, orientais e índias.
Porte de arma
Ciente de que a mulher que rompe o silêncio corre risco, a Lei Maria da Penha estabelece medidas de proteção. Denunciado, o agressor pode perder o porte de arma, ter de sair de casa, ser obrigado a manter-se a certa distância da companheira ou ser preso preventivamente. Enquanto isso, corre o processo que poderá levá-lo à condenação. Para lesão corporal, a pena chega a três anos de prisão.
— Pense numa mulher que teve o braço quebrado pelo namorado e em outra que teve o braço quebrado pelo vizinho. A situação da primeira é bem mais grave. Muitas vezes, ela e o agressor vivem sob o mesmo teto. E têm ligação emocional. A tendência é que as agressões se repitam e fiquem mais brutais. Se a mulher não procurar ajuda, a situação se transformará numa espiral da qual ela não conseguirá escapar ou da qual só sairá morta — diz Ana Teresa Iamarino, uma das diretoras da Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República.
Os homicídios de mulheres no Brasil (4,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres) são mais epidêmicos do que na África do Sul (2,8), nos EUA (2,1), no México (2), na Argentina (1,2) e na Espanha (0,3).
A Lei Maria da Penha busca mudar comportamentos. Diante da certeza da punição, o homem pensará duas vezes antes de atacar e a mulher não hesitará em denunciar. A ONU considera a lei exemplar para o mundo. O que falta, como constatou a CPI, é tirá-la do papel e colocá-la integralmente em prática.

info_maria_da_penhaPor medo, agredidas ainda não denunciam
Sete anos depois de aprovada a Lei Maria da Penha, percebe-se que aquela máxima popular está mudando. Em briga de marido e mulher, as pessoas devem, sim, meter a colher. Isso foi constatado por uma pesquisa do ­DataSenado que ouviu 1.248 mulheres de todos os estados entre fevereiro e março.
Das mulheres entrevistadas, 60% disseram que qualquer pessoa deve denunciar às autoridades um caso de agressão física, independentemente da vontade da mulher agredida. Em 2011, só 41% tinham essa opinião.
Ainda de acordo com a pesquisa, quase 80% das entrevistadas disseram acreditar que a Lei Maria da Penha sozinha não é capaz de resolver esse tipo de violência. Essa percepção foi confirmada pela recém-concluída CPI da Violência contra a Mulher, que apontou que o poder público ainda tem muito a fazer para organizar e fazer funcionar toda a rede de proteção da mulher que está prevista na lei — de delegacias e juizados especializados a serviços médicos para tratar as agredidas.
Se hoje praticamente todas as brasileiras sabem que a Lei Maria da Penha existe (99,1%) e acha que o agressor deve ser processado mesmo contra a vontade da vítima (94%), boa parte delas ainda resiste a denunciar os maus-tratos provocados pelos maridos, companheiros ou namorados.
Das mulheres ouvidas pelo DataSenado, quase 40% afirmaram ter procurado alguma ajuda logo após a primeira agressão, 32% só buscaram auxílio depois do terceiro ataque e 21% permanecem sofrendo caladas. Apenas 35% das vítimas denunciaram a violência à polícia. O principal motivo para o silêncio, apontado por 74% delas, é o medo do agressor.
É claro que a questão é complexa e envolve a própria sobrevivência da família, como a dependência financeira e a criação dos filhos, motivo revelado por 34% das consultadas. Aparecem também com destaque as que não denunciam por vergonha (26%), especialmente entre as que têm ensino superior ou recebem mais de cinco salários mínimos. Outras responderam que não acreditam na punição do agressor (23%) e que têm a ilusão de que aquela foi a última vez que o homem com quem convivem ou conviveram se descontrolou (22%).
A violência contra a mulher começou a ser acompanhada pelo DataSenado em 2005, para embasar o trabalho legislativo que culminou com a aprovação da Lei Maria da Penha, no ano seguinte.
A pesquisa é repetida a cada dois anos para verificar as mudanças provocadas pela nova lei. A próxima será em 2015.
— Hoje temos uma das séries históricas mais importantes sobre a violência contra as mulheres — afirma Elga Lopes, assessora da Secretaria da Transparência do Senado.

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A senadora Ana Rita conversa com mulheres em delegacia de Campo Grande: CPI do Congresso percorreu o país Foto: Gabinete da Senadora Ana Rita
Plenário pode votar proposta sobre feminicídio
A CPI da Violência contra a Mulher redigiu 13 projetos de lei que ampliam a proteção das mulheres e endurecem a punição dos agressores. Parte dos projetos está sendo analisada pelo Senado, parte pela Câmara. As sete propostas que estão com os senadores passam hoje pela segunda sessão de discussão e poderão ser votadas em primeiro turno no Plenário.
O mais destacado é o que transforma o homicídio de mulher num crime específico — o feminicídio. A pena para quem cometê-lo irá de 12 a 30 anos de prisão. Para que o assassinato seja enquadrado como feminicídio, será preciso que a vítima tenha relação de afeto ou parentesco com o agressor (violência doméstica) ou tenha sofrido ataque sexual ou sido mutilada ou desfigurada.
Neologismo
Para o homicídio comum, o Código Penal prevê de 6 a 20 anos de prisão. Ao julgar um homem que matou a companheira, muitos tribunais veem o ciúme e a traição como “motivo torpe” ou “fútil”, o que dá ao crime o status de homicídio qualificado, mais grave, com pena de 12 a 30 anos de prisão — justamente a mesma pena proposta pela CPI para o feminicídio. Esse entendimento dos tribunais, porém, não invalida os planos da comissão de incluir o feminicídio no Código Penal. Nem sempre a pena arbitrada é essa. Na direção inversa, existem os tribunais que entendem que o ciúme e a traição levam o homem a agir “sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”. Isso é uma atenuante prevista explicitamente no Código Penal, o que pode levar o assassino de uma mulher a ser castigado com meros quatro anos de prisão.
— Não é por ciúme ou amor que o homem mata. É por não aceitar que a mulher tenha o poder de decidir sobre sua própria vida. Quando se cria um tipo penal chamado feminicídio, acaba-se com a visão equivocada de que assassinato de mulher é crime passional, crime de amor. Deixamos claro que é crime de ódio. E crime de ódio não pode ser tolerado nem amenizado. Deve ser punido com rigor — explica Fausto Rodrigues de Lima, promotor de Justiça do Distrito Federal.
O termo “feminicídio” é um neologismo importado do espanhol. A palavra ganhou força na América Latina na entrada deste século, quando ocorreu uma intrigante série de assassinatos de mulheres pobres em Ciudad Juárez, no México, sem que o governo tomasse ­medidas para responsabilizar os criminosos e impedir novas mortes. Países como Argentina, Bolívia, Chile e Peru, além do próprio México, já adicionaram o feminicídio às leis penais.
No Brasil, a criação de um crime chamado feminicídio será importante também por questões estatísticas. Hoje, muitas delegacias de polícia e tribunais enquadram os assassinatos decorrentes da violência doméstica no grupo dos homicídios comuns.
Tortura
Em outro projeto, a CPI quer que o “intenso sofrimento físico e mental” provocado dentro das relações domésticas e familiares — uma agressão premeditada e com requintes de crueldade — seja enquadrado na Lei da Tortura. A tortura, hoje, só é qualificada como tal se a vítima está sob guarda, poder ou autoridade do agressor. Não vale, portanto, para a mulher torturada pelo marido. Esses casos acabam sendo julgados como lesão corporal — punidos com penas de três meses a três anos de prisão. Passando a ser tortura, a pena ficará mais severa — de dois a oito anos de prisão.
Veja no quadro abaixo os sete projetos de lei redigidos pela CPI que constam da pauta de hoje do Plenário.

Projetos de lei em análise
Estão na pauta de hoje do Plenário do Senado sete propostas redigidas pela CPI da Violência contra a Mulher
PLS 292/2013
Inclui no Código Penal um crime chamado feminicídio, conceituado como “forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher”, com pena de reclusão de 12 a 30 anos. Três circunstâncias caracterizam o crime: relação íntima de afeto ou parentesco entre vítima e agressor, qualquer tipo de violência sexual contra a vítima e mutilação ou desfiguração.
PLS 293/2013
Considera a violência doméstica ou familiar crime de tortura quando a vítima é submetida a intenso sofrimento físico ou mental como forma de o agressor exercer domínio, “com emprego de violência ou grave ameaça”. As penas previstas na Lei de Crimes de Tortura vão de dois a oito anos de reclusão. O projeto deixa claro que não é preciso viver sob o mesmo teto.
PLS 294/2013
Agiliza os pedidos de prisão preventiva dos agressores para os casos em que as vítimas são encaminhadas às casas-abrigo. O juiz e o promotor devem ser comunicados sobre a medida no prazo de 24 horas para que tomem as providências necessárias. Segundo a CPI, muitas vezes os agressores ficam soltos enquanto as vítimas “ficam custodiadas em estabelecimentos governamentais secretos e proibidas de trabalhar e estudar”.
PLS 295/2013
Inclui entre as atribuições do Sistema Único de Saúde (SUS) a organização de serviços públicos específicos e especializados para atender mulheres e demais vítimas de violência doméstica em todo o país. Entre os atendimentos que devem ser assegurados, estão tratamento médico, psicológico e cirurgias plásticas reparadoras, quando necessárias.
PLS 296/2013
Cria o auxílio-transitório para as seguradas do INSS vítimas de agressão, inclusive a empregada doméstica, nos casos que resultem em afastamento do trabalho. O benefício será calculado pela média dos maiores salários de contribuição correspondentes a 80% de todo o período contributivo. Deverá ser custeado pelas contribuições da segurada e pelo percentual pago pelo agressor (9% do salário de contribuição da vítima) no período em que durar a concessão.
PLS 297/2013
Determina que os recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) oriundos de multas decorrentes de sentenças condenatórias em processos criminais que envolvam violência doméstica e familiar devem ser destinados à manutenção de casas-abrigo que acolhem vítimas desse tipo de violência.
PLS 298/2013
Institui o Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres para financiar a ampliação e a capacitação da rede de atendimento às vítimas, campanhas educacionais e programas de assistência jurídica, entre outras ações. O fundo terá verba, entre outros, da União, dos estados, dos municípios, de doações, de contribuições internacionais, de multas de sentenças penais condenatórias e de 2% da arrecadação das loterias federais.

Saiba mais
Encarte do Jornal do Senado explica a violência contra a mulher e os trabalhos da CPI:
Veja as edições anteriores do Especial Cidadania em www.senado.leg.br/jornal
Jornal do Senado

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