segunda-feira, 1 de julho de 2013

Responsabilidade penal dos indígenas é pouco discutida

O Consultor Jurídico, no dia 27 passado, noticiou que “O juízo da comarca de Nova Xavantina (MT) determinou a soltura de um indígena que estava preso após ser encontrado dormindo dentro de um automóvel parado no meio de uma rodovia federal. Ao ser revistado, o indígena apresentava sinais de embriaguez, portava munição calibre 22 e não tinha carteira de habilitação. Além disso, constatou-se que a numeração do chassi do carro estava raspada e a documentação era falsa”. E logo adiante registrou: “A prisão do indígena causou reação da comunidade xavante na região, que chegou a cercar o fórum da cidade e fazer bloqueios em rodovias pela libertação do homem.

Este é apenas um caso envolvendo índio e uma suposta infração penal. Elas tendem a crescer, inclusive porque a população indígena vem aumentando. Que fazer? Pode ser lavrado auto de prisão em flagrante? É necessária a presença de representante da Funai? Onde responderá o indígena por tal ato, na Justiça Federal? Estadual? Se condenado, onde e como cumprirá a pena? Vejamos.
Os indígenas, no âmbito penal, são tratados com base no Código de 1940, que não lhes fez referência explícita, do que se conclui que, nos termos do artigo 21, serão inimputáveis se forem inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com este entendimento.
Entretanto, mudanças recentes vêm alterando este quadro. Entre elas, a Constituição de 1988, que, no artigo 231, dispôs ser reconhecido aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
Fruto desta evolução, os povos indígenas vêm se organizando, estão mais conscientes de seus direitos e reivindicam-nos dentro de suas possibilidades. Alguns de seus membros passaram a dedicar-se ao estudo. É o caso de Vilmar Martins Moura Guarany, mestre em Direito pela PUC-PR, e de Joênia Batista de Carvalho, conhecida como Joênia Wapichana, com mestrado em Direito no James E. Rogers College of Law, na Universidade do Arizona, em Tucson, Estados Unidos.
Todavia, quando acontecem ocorrências criminais envolvendo indígenas, muitas são as dúvidas. Não se conhecem bem os limites de seus direitos, há uma zona nebulosa sobre como se deve proceder. No âmbito policial arrisca-se a autoridade policial a ser acusada de arbítrio.
A primeira observação a ser feita é que desde 1973 a Lei 6.015, conhecida como Estatuto do Índio, dispõe no artigo 57 que: “Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte”.
O legislador dos anos 1970 deixou claro que crimes de menor gravidade praticados por indígenas devem ser solucionados pelos grupos tribais. Isto pressupõe, logicamente, infrações cometidas no interior de suas reservas. Não alcança, pois, penas cruéis, infamantes ou de morte como, por exemplo, o enterro de crianças vivas por serem gêmeos (http://pt.shvoong.com/humanities/1905935-tribos-ind%C3%ADgenas-brasileiras-enterram-crian%C3%A7as/).
Portanto, um fato fora da reserva indígena, como o de Mato Grosso, será decidido pelo Poder Judiciário. A competência não é da Justiça Federal, porque inexiste qualquer dispositivo constitucional ou processual penal que assim determine. Portanto, salvo caso de interesse indígena genérico (v.g., genocídio), a competência é da Justiça Estadual (STF,RE 419.528/PR, Pleno, j. 03.08.2006, rel. Min. Cézar Peluso)..
Examinando a recorrente hipótese de indígenas integrados à sociedade, o STJ, (REsp 737285 PB, Rel. Ministra Laurita Vaz, j. 7.11.2005) decidiu que:
“RECURSO ESPECIAL. PENAL. LATROCÍNIO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADO. INDÍGENAS INTEGRADOS. DESNECESSIDADE DE TUTELA DIFERENCIADA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ESTATUTO DO ÍNDIO. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA N.º 07 DO STJ.
1. A simples transcrição de ementas não é suficiente para caracterizar a divergência jurisprudencial. 2. Os indígenas integrados à sociedade, nos termos do art. 4º, inciso III, da Lei n.º 6.001/73, não se sujeitam ao regime tutelar especial estabelecido pelo Estatuto do Índio. 3. Ademais, afastar o entendimento adotado pelas instâncias ordinárias, de que os índios estavam devidamente aculturados e integrados à sociedade, ensejaria uma aprofundada inserção na seara fático-probatória dos autos, com o reexame das provas colacionadas nos autos da ação criminal, o que é vedado, nesta via especial, a teor do que estabelece a Súmula n.º 07 do STJ.”
Na instrução do processo criminal, salvo hipóteses de evidente aculturamento, será importante produzir exame antropológico destinado a avaliar o grau de compreensão do denunciado sobre o caráter ilícito da conduta. E, segundo . Roberto Lemos dos Santos Filho, “caso a necessária perícia realizada no curso da instrução não concluir ser o índio, autor da ação, incapaz de entender o caráter criminoso de sua ação, e não se tratando de silvícola integrado de acordo com as disposições do art. 10 do Estatuto do Índio, é necessária a aplicação da atenuante genérica inscrita no art. 56 do Diploma citado”. (Direito Ambiental em Evolução, Índios e Meio ambiente, Juruá, p. 330).
Se o indígena for condenado, a execução da pena terá regras próprias, previstas no artigo 56, parágrafo único do Estatuto referido, que diz: “As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.”
Sempre que possível, a sanção corporal deverá ser evitada. A liberdade faz parte dos índios e na prisão tendem a isolar-se, muitas vezes adoecem. Portanto, a execução, quando possível, deve dar-se na própria aldeia a que pertencem e, se as circunstâncias recomendarem, em regime de semiliberdade sob controle de órgão que lhes dê assistência. Evidentemente, isto não significa regime de impunidade pois, dependendo da pena, da gravidade dos fatos condenado e da periculosidade, o regime prisional poderá ser o fechado.
Merece atenção, da mesma forma, a possibilidade do índio ser vítima e não autor do crime. A disputa por terras vem agravando este problema. Segundo a imprensa, em 2012, 60 índios foram assassinados, sendo mais da metade (37) oriundos de MS (Estado de São Paulo, 28.6.2013, A14). Além disto, o artigo 58 da Lei 6.001/1973 considera crimes contra os índios ou a sua cultura o ultraje, impedimento ou perturbação de suas cerimônias, a utilização do índio ou de sua comunidade para propaganda turística ou exibição lucrativa ou, ainda, propiciar o uso e disseminação de bebidas alcoólicas.
Registre-se que, segundo pesquisa da ONG CTI (Centro de Trabalho Indigenista) com a UCDB (Universidade Católica Dom Bosco), no ano de 2006 “Quase 100% dos processos judiciais abertos contra indígenas em Mato Grosso do Sul desrespeitaram garantias previstas na Constituição Federal , no Estatuto do Índio e, principalmente, na convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) —da qual o Brasil é signatário”. (http://folha-online.jusbrasil.com.br/noticias/38383/processos-contra-indigenas-em-ms-desrespeitam-constituicao-e-estatuto-do-indio).
Em suma, aí está um tema que merece mais atenção e a fixação de regras mais claras, jurisprudência consolidada. Um primeiro passo poderia ser um fórum de discussão interdisciplinar, envolvendo juristas e acadêmicos. Dele poderiam ser tiradas conclusões com força de orientação, ainda que não vinculantes, quem sabe até um manual. Algo direto, objetivo, de preferência coordenado pelo CNJ, Enfam ou por um TJ. Novos tempos reclamam novas soluções.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.

Revista Consultor Jurídico, 30 de junho de 2013

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