segunda-feira, 8 de julho de 2013

A pena de privação de liberdade e sua aplicação às condutas delituosas que não envolvem violência à pessoa

Se voltarmos na história, veremos a mão pesada de cada inquisidor, de cada “juiz”, recair sobre os carentes e miseráveis, e, de quando em vez, sobre aqueles contestadores do poder instituído. Raríssimas vezes as masmorras ou os carrascos serviram para aplacar ou reprimir deslizes criminais atribuídos aos membros do poder, ou aos seus protegidos.
Infelizmente isso não mudou. Abrandaram-se talvez os rigores das penas (martírio, decapitação, esquartejamento, etc.), mesmo assim em certas sociedades ainda vige a pena capital, inclusive algumas das mais poderosas economicamente, e ditas “evoluídas”.
Aqui no nosso País, através das nossas próprias experiências de convívio social, noticiários em rádios, jornais, televisão, internet, podemos constatar essa realidade, através de uma simples análise pautada pelo senso comum, mas atento e crítico.
Milhares de pessoas carentes são jogadas nas prisões (postos avançados do inferno) sob a pecha de delinqüentes. Não há sequer uma mínima discussão acerca dessas carências, as das pessoas e as dos estabelecimentos penais.
Aquelas por mais que alguns afirmem serem carências de cunho material principalmente, até para justificar os atos tipificados contra o patrimônio, são na realidade uma carência de “Estado”. Carência de educação, carência de saúde, de justiça, de condições propícias ao desenvolvimento pleno do indivíduo.
A Constituição “cidadã” de 1988, tão brandida, e já tão alterada (alteramos regras constitucionais como trocamos de roupa diariamente), diz que o nosso “estado democrático de direito” tem por fundamentos… a cidadania; a dignidade da pessoa humana… Que os objetivos dessa nossa república são uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza, a marginalização, reduzir as desigualdades sociais, promover o bem de todos sem qualquer forma de discriminação, sob o princípio da prevalência dos direitos humanos.
Enfim, elege como bens maiores do cidadão o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Cumprindo realçar o binômio fundamental: vida eliberdade. Afinal de que vale a vida sem liberdade?
Pois é justamente nesse ponto que devemos começar a perquirir o nosso direito penal, detidos principalmente na validade moral e ética das penas atribuídas, efetivamente aquelas privativas de liberdade, e tal perquirição se faz justamente a partir do valor da liberdade diante do bem penalmente tutelado através do tipo.
É de ser salientado que aqui não há a mínima pretensão de se apontar uma solução definitiva à ofensa do “delinqüente”, quer no sentido de evitar a ação (através do medo que a pena deveria impor), ou mesmo quanto ao fim punitivo, pois a atuação delituosa decorre da própria natureza humana e das circunstâncias que envolvem as mais variadas relações.
Em contrapartida, mesmo diante dessa impossibilidade, temos plena convicção de que a intensidade, freqüência, e violência que permeia a atuação delituosa, podem ser abrandadas conforme a atuação séria do Estado, de forma a oportunizar a evolução de cada conjunto humano. E isso, sem renegar opiniões contrárias, sem necessidade de imposição de penas mais severas, ou mesmo até prescindindo de punição.
A finalidade de nossa abordagem reside em discutir a verdadeira raiz da “delinqüência” e a efetividade, a necessidade e os reais destinatários do direito punitivo.
Sem mencionar nesse momento os crimes contra a pessoa, aqueles que envolvem violência física, ou mesmo morte, todos nós sabemos o quanto custa lapidar um patrimônio (o quanto é difícil ganhar dinheiro honestamente), sabemos também o custo de protegê-lo contra os “amigos do alheio”, até porque nossa polícia está mais preocupada em defender os bancos e seus caixas eletrônicos do que recuperar o televisor ou a geladeira dos próprios vizinhos, furtados e roubados pelos outros vizinhos dados ao delito.
Assim, enquanto vítimas, nós mesmos gostaríamos, e não raras vezes, de castigar nossos ofensores, quanto mais vê-los atrás das grades de uma prisão. Isso é do ser humano. Mas o nosso objetivo é justamente perquirir e pesar o real valor da ofensa experimentada (supressão ou dano a um bem material) diante da intensidade da pena a ser aplicada, ou seja: Qual o real valor do direito à liberdade do agente ofensivo, e qual o valor de um bem material?
Quem já tem alguma experiência, ou já viveu um tempo considerável, quarenta, cinqüenta, sessenta anos ou mais, certamente já experimentou vários e vários planos de governo, pacotes e pacotes econômicos, promessas e promessas de melhorias em todas as áreas, a possibilitar uma sociedade justa, igualitária, solidária, desenvolvida, com erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades, conforme os objetivos constitucionais.
Essa mesma experiência nos mostra a diferença cada vez mais acentuada entre os ricos e os pobres (principalmente ocasionada pelo desconhecimento e falta de capacidade de se posicionar e refletir sobre a realidade, afetando diretamente essa discrepância econômica). Tanto é verdade que, hoje em dia, os órgãos oficiais alardeiam aos quatro ventos que há evidente crescimento da classe média, e isso pelo simples fato de uma família conseguir adquirir um eletrodoméstico, ou um veículo popular, financiado em 60, 70, 80 vezes ou mais, como se essas simples aquisições servissem a comprovar essa ascensão.
Há isso sim um enriquecimento ainda maior das montadoras e dos agentes financeiros, despejando veículos e outros bens à custa de mais uma escravidão (a do financiamento, que consome os ganhos dos mais incautos), e dizem ainda que houve ascensão social pelo simples ato de comprar, impulsionados por necessidades artificialmente criadas pelo próprio “poder”.
Evidentemente que essas necessidades artificiais de consumo instam toda a população (aquinhoados ou não), proporcionando a violação da tênue barreira ética e moral que delimita as tendências entre uma atuação equilibrada e honesta de uma atuação delituosa, conforme a circunstância e a condição psíquica de cada um.
Posto isso, houvesse mesmo uma evolução social, certamente seria muito mais fácil a composição de um furto ou um dano causado ao nosso patrimônio. Bastaria uma simples reposição do estado anterior, agregada a alguma outra indenização, como já prevê o direito civil.
Fica bem claro então que a sanção penal fixada vem suprir a impossibilidade de o agente infrator (geralmente carente) indenizar o ofendido. Por isso se diz que “pobre vai pra cadeia”! Até porque há previsão no próprio texto penal de que a indenização pelo dano causado elide a aplicação da pena (prisão) a determinados delitos e em determinadas circunstâncias.
Há, porém, questões bem mais relevantes, como aquelas que envolvem os delitos praticados contra a vida, saúde, integridade física, liberdade sexual, etc.
A fim de elidir desde já qualquer discussão acerca da necessidade ou não da privação de liberdade, é de ser salientado que essa privação não necessariamente deve ser decretada em virtude de uma pena, e tão pouco advinda do próprio direito penal. Afinal o Estado, que deve garantir a segurança e a liberdade de ir e vir de cada cidadão tem condições plenas de evitar o contato prejudicial entre seus súditos, mesmo que seja através de medida segregatória, assim como se procede quanto aos doentes mentais e insanos perigosos.
E isso é muito fácil de ser constatado. Não é pelo policiamento ostensivo, ou pelo repressor, tampouco pelo receio da persecução e aplicação da pena, que a imensa maioria do povo não pratica atos delituosos de relevância, mais do que isso, é trabalhadora e honesta. São a índole desenvolvida, as noções básicas de convívio, inerentes a esmagadora maioria da população que resistem em romper os limites entre o certo e o errado.
Com o respeito devido aos demais entendimentos, creio que todo o criminoso não é saudável (mental ou socialmente), e bem assim acredito que nenhum de nós tenha plenitude ética, moral, e psicológica, a ponto de dispensar qualquer aprimoramento. Por isso, enquanto não houver as mínimas condições de desenvolvimento do ser humano, desde o momento de nascer, e digno até a idade adulta, não é a simples aplicação de uma pena privativa de liberdade que resolverá os problemas do ofendido, do ofensor e de toda sociedade.
É o entendimento, o exemplo dos próximos, dos líderes, o meio, que criam a capacidade de cada um se postar diante de situações com potencial de levar ao delito.
Enfim, devemos ter humildade para reconhecer que todos, sem exceção, podemos delinqüir, basta uma submissão a determinadas situações, pressões, ou eventos causadores de stress excessivo, que subjuguem nossos próprios limites.
Fosse carência econômica simplesmente, não estaríamos diante dos cotidianos escândalos políticos perpetrados por gestores da “coisa pública”, em todos os escalões de cada um dos “poderes” instituídos.
Há que se ressaltar ainda o soterramento da moral e da ética causado por essas verdadeiras doenças sociais. Ou será que alguém duvida que uma criança que foi criança, que foi alimentada, que freqüentou escola estruturada, que foi bem encaminhada, está muito mais distante de deliqüir?
Enquanto isso, aquinhoados que participam do “Estado” em todos os níveis de poder (uns projetando as leis incriminadoras enquanto editam outras criando foros privilegiados, uns executando e direcionando as regras de acordo com as conveniências de momento), geralmente de uma forma ou de outra, estão fora do alcance das punições.
Reflitamos então: quem são os destinatários das penas, e a quem efetivamente serve o direito punitivo.
* Qualificação da autora: Janice Jardim Zacca: Graduada em Administração de Empresas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e tem formação em Administração Pública pela UFRGS. Possui pós-graduação em Controladoria Estratégica de Gestão e em Gestão do Capital Humano, ambas pela FAPA, além de diversos cursos de aperfeiçoamento e artigos publicados. Ingressou no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul em 1991. Foi Diretora do Departamento de Artes Gráficas do TJRS de 2002 a 2006, quando assumiu a Direção do Departamento de Material de Patrimônio até o ano de 2008, atualmente, exerce o cargo de Diretora Judiciária Substituta, na Direção do Tribunal de Justiça. Recebeu o “Prêmio Mérito em Administração”, na categoria setor público, concedido pelo CRA-RS – Conselho de Administração, no ano de 2008.

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