quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O Direito Penal não pode ser o guardião da moral


Já se passam quase 25 anos da inauguração do estado (social) democrático de direito brasileiro, e o processo de constitucionalização dos direitos, amplamente discutido na década de 90 perdeu-se no tempo. Tanto os valores quanto os princípios constitucionais não conseguiram cumprir sua função de nortear o direito posto, uma vez que pouco ou nada foi alterado no sentido de alinhar-se aos princípios constitucionais.
Quando falamos em princípios constitucionais chamamos um conceito novo a partir do qual a norma jurídica justifica sua existência e permite alinhar seu sentido aos valores constitucionalmente vigentes. Assim como nos lembra constantemente Lenio Streck, não há norma sem princípio e não há princípio sem norma. Seria necessário, insuficiente, cremos, mas necessário um movimento legislativo que promovesse uma releitura sistemática dos diplomas legais para verificar a sua adequação ao novo modelo social que se implanta no Brasil pela constituição de 1988.
O direito é mecanismo de gestão de conflitos, de criação/preservação/manutenção de equilíbrio, e agora, mais que nunca de promoção de valores sociais, reconhecidos na constituição que é (ainda) compromissória[1], já que suas promessas (reedição de boa parte das promessas da modernidade na verdade) continuam incumpridas[2].
O fato é que a busca dos caminhos da efetividade dos projetos constitucionais tem sido bem mais complexa do que as escolhas que nos levaram a eles. É que o momento da contradição, da falta de sintonia entre o discurso (promessas) e a prática (benesses) chega a um grau de visibilidade que não suporta mais as máscaras dos discursos. As coisas que deveriam acontecer não aconteceram e a promoção daquele tão bem falado estado de bem estar social claudica. Não acontece, e se acontece é de maneira tão lenta e tão pouco sólida que não sacia a sede de quem por tanto tempo, tanto esperou e tão pouco tem colhido.
É este o panorama jurídico. Reconhecemo-nos como indivíduos, mais do que isso, como indivíduos plurais, estamos (pelo menos formalmente) inseridos em um estado social e senhores que somos, de direito, fazemos o que era de se esperar: sindicamos o que é nosso. As respostas não vem, se vem, vem de forma ambígua, incerta, aleatória. A cada dia que passa nos sentimos mais dependentes da bondade dos bons, da justiça dos justos. Apelamos para a caridade dos caridosos e aos argumentos das mais diversas vertentes das teorias argumentativas que nos levam de volta à filosofia da consciência, ao solipsismo moderno onde o homem, senhor da razão racional tudo pode a partir dela, e a partir dela tudo faz. Como deuses, decidimos à nossa imagem e semelhança. São os passos incertos que damos em busca do maior dos mitos da modernidade: o mito da segurança. A qual segurança nos referimos? A qualquer uma, a todas elas, tanto faz, o mito nos leva ao mesmo lugar. Ao sindicarmos saúde, educação, previdência, segurança (no sentido estrito – seja ela policial preventiva, policial repressiva ou judicial) pretendemos a mesma coisa. Garantias, certezas.
O tema precisa ser posto de maneira mais alongada, como fizemos, para que efetivemos a crítica proposta aqui: possuímos o vício recorrente de apostar muitas de nossas fichas no direito penal. Por várias vezes nos surpreendemos dizendo: isso deveria ser crime, ou aquele indivíduo deveria estar preso. Em suma, os que são diferentes de nós deveriam ser excluídos, de forma drástica e exemplar, para que todos fossem iguais a nós. A idéia não é estranha, imaginem todos compartilhando dos mesmos valores, respeitando aos mesmos bens e desprezando outros de menor importância. Não é estranha, mas é incorreta.
O direito penal não é e nem pode ser o guardião da moral perdida. Não é? Bem, acho que era, e continua sendo. E, agora nossa tristeza ao debruçar-mo-nos sobre o anteprojeto do novo código penal, parece ter a mesma pretensão.
O projeto do novo código se aproxima, se adéqua e seria mais coerente se protegesse os valores defendidos pelas constituições revolucionárias. Da parte geral à parte especial notamos claramente que a “Comissão de juristas gosta do Direito Penal do Risco”[3].
A crítica vem do fato de que o projeto não se preocupa em alinhar-se com o modelo sancionatório e com as razões de punir construídas pelo legislador constitucional. A constituição foi abandonada, não serve de norte nem encontra no projeto a busca da coerência e integridade de Dworkin. A título de exemplo: O “domínio da vontade” ampara estrategicamente o “domínio do fato” no artigo 38. Nele ainda não só o que devia, mas o que podia (o projeto não explicita circunstancias) agir para impedir o delito concorre para a sua prática: é a inação sem nexo como causa de responsabilização penal. Dolo e culpa insuficientes para determinar a vontade, ganham um parceiro: o dolo eventual “tertio genus” de vontade – o legislador esqueceu-se da culpa consciente, por que não uma quarta subdivisão da vontade[4]? Seriamos ainda fiéis à teoria finalistica?
Bem, tanto mais há para falarmos, pena que o espaço é curto. Bem encerro este pequeno ensaio com três questões: a primeira, a mais complexa, quando conseguiremos nos livrar do modelo individual e alcançar os criminosos que ofendem aos bens supra individuais como meio ambiente, grandes fraudes, crimes fiscais e outros? Precisamos nos lembrar que os que furtam galhinhas estão cansados (será?) de ser a clientela preferencial do direito penal.
A segunda é: por que recuperamos a figura do dirigir sem habilitação, da lei de contravenções penais[5], não recepcionada pela CF de 1988, em pleno vigor, apenando o condutor com prisão de um a dois anos, e ao mesmo tempo pretendemos punir o homicídio culposo no transito com pena de um a quatro anos? O primeiro é crime de risco, de risco abstrato, é a abstenção de mera formalidade que, diga-se de passagem, rende grandes somas de recursos aos cofres públicos. Qual é o referencial bem jurídico que nos permite traçar proporção tão absurda?
E, por fim e mais que isso, por hábito, onde fica o princípio da subsidiariedade quando insistimos em punir crimes contra a honra, tão bem e eficientemente resguardados pelo direito civil? É necessário reaprendermos direito penal para tentarmos fazer algo melhor. Caso contrário, que fique o velho código de 1944, reedição de tantos outros e mais tolerante que o novo projeto.

[1] Apesar de canotilho falar da morte da cosntituição dirigente ressalta que seu caráter histórico (o da constitucição) ainda a faz seu modelo dirigente vivo eonde historicamente ele se faz necessário.
[2] Expressão de Streck.
[3] http://www.conjur.com.br/2012-mai-08/lenio-luiz-streck-comissao-juristas-gosta-direito-penal-risco
[4] O interessante é que a culpa gravíssima entra no homicídio e somente nele, aumentando a penal, aqui está nosso quarto grau de vontade.
[5] Artigo 204.
Leandro Correa de Oliveira é professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito na Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Doutorando em Direito Público.
Edson Vieira da Silva Filho é professor da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Mestre pela Universidade São Francisco (USF) e pela UFPR. Doutor pela Universidade Estácio de Sá (Unesa) e pós-doutorando pela Unisinos.
Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2013

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